Economia louca e “matadores loucos”
Vez por outra, nos últimos vinte anos, um louco entra num Parlamento ou num campus universitário e mata dezenas de pessoas, suicidando-se em seguida. Estariam os patrões-especuladores de hoje, como os “matadores loucos”, roubando e destruindo as riquezas dos povos para se destruírem depois?Denis Duclos
Na hora do “capitalismo da mentira” e das megafalências fraudulentas – Enron, WorldCom, Qwest, Tyco, Lucent, Xerox etc. – que levam à ruína milhares de assalariados acionistas, que relação poderia haver entre “matadores loucos”, como Richard Durn, e os “senhores do mundo”, como (era) Jean-Marie Messier? Assim como os “patrões loucos”, obcecados em inchar suas empresas até a explosão suicida, os “assassinos de multidões” também pretendem fundir-se com os outros num abraço demente e mortal. Enojados e fascinados com essas loucuras assassinas, será que aceitaremos por muito tempo ainda os desvios desses empresários “globalizados”, essa espécie de seita global entregue à sanha de dominar pessoas e recursos?
A crise de 1929 foi alimentada, como lembrou John K. Galbraith1, pelos investimentos mais absurdos. Já naquela época, banqueiros jogavam-se das janelas dos arranha-céus de Wall Street, fato que intrigou os psicanalistas: estariam eles se suicidando devido à humilhação, ou, pelo contrário – como jogadores inveterados que arruinam suas famílias antes de se destruírem a si próprios – seria aquele o último ato de uma loucura em que se entretinham arrebanhando o máximo possível de crédulos, como fazem os gurus das seitas suicidas?
A abolição do destino
Irão as pessoas aceitar por muito tempo os propósitos dessa espécie de seita global entregue à sanha de dominar a humanidade e os recursos naturais?
Nestes tempos conturbados, os desvios individuais respondem aos impulsos coletivos. Os lucros absurdos em função da ambição fatal dos “senhores do mundo” refletem-se na criminalidade resoluta dos “matadores loucos”, ampliando as tendências societárias para proporções execráveis até a caricatura sinistra. Cada vez mais motivados pela crise cultural em que se inserem suas ações sangrentas, os terríveis “matadores loucos” tentam, por exemplo, abolir simultaneamente seu próprio destino e o da multidão, exatamente como fazem os patrões especuladores que apostam a fortuna dos povos e se destroem com eles.
Alguns casos famosos (dentre dezenas) de massacres em público que terminam em suicídio ocorreram, durante os últimos cerca de vinte anos, no Québec, nos Estados Unidos, na Suíça, na França e, mais recentemente, na Alemanha. Em 8 de maio de 1984, Denis Lortie metralhou o quartel do exército de Québec (esperando ser morto) e depois o Parlamento (três mortos). Em 6 de dezembro de 1989, Marc Lépine matou 14 estudantes da Escola Politécnica de Montreal antes de voltar a arma contra si próprio. Em 28 de setembro de 2001, Friedrich Leibacher invadiu o Parlamento do cantão de Zoug, na Suíça, matando 14 pessoas e suicidando-se em seguida. No dia 26 de março de 2002, Richard Durn matou oito vereadores do município de Nanterre, jogando-se por uma janela no dia seguinte. Em 26 de abril de 2002, Robert Steinhauser matou 16 pessoas (entre as quais, treze professores) no liceu de Erfurt, na Alemanha, onde estudava, suicidando-se em seguida. Numa carta que deixou explicando suas intenções, Steinhauser cita explicitamente o massacre de treze pessoas, perpetrado em 20 de abril de 1999 (dia do aniversário de Hitler) por Eric Harris e Dylan Klebold em sua escola de Littleton, antes de se suicidarem.
A falta do valor social próprio
Todos esses “matadores loucos” atacaram lugares que representavam simultaneamente amor e ódio, próximos a eles e abominados: o exército canadense, e depois o Parlamento provincial, no caso de Lortie; “o rosto de [seu] pai” e a “gangue de feministas radicais (sic)” denunciada na carta-testamento de Lépine; “a máfia de Zoug”, no caso de Leibacher. Já no caso de Richard Durn, tratava-se da “mini-elite local”, personalizada pela “prefeita” (único alvo “intencionalmente” escolhido). Para Steinhauser foi o conjunto dos professores, enquanto para Harris e Klebold, todos os alunos.
O “matador louco” está sempre envolvido no “mundo” que vai agredir: um comitê, uma assembléia, o Parlamento, uma turma, uma instituição, a cidade. O cabo Lortie era um “excelente elemento” na opinião de seus superiores, Marc Lépine2 poderia ter entrado para a Escola Politécnica, Leibacher era um funcionário modelo do município e Durn era militante em algumas organizações, humanitário e poliglota. Steinhauser, que gozava da simpatia de seus colegas de turma, era um brilhante programador. Finalmente, Harris e Klebold eram bons alunos.
No entanto, todos eles se queixavam de não ter um valor social próprio, de ser “uma coisa” manipulada pelos “poderes”. Atraem para si a hostilidade que irá servir de detonador. Para existir, o “matador louco” deve destacar-se da mediocridade reinante. Decide – muitas vezes por antecipação – comparar-se ao grupo que vai exterminar, como se somente a chacina o valorizasse perante a coletividade. A enormidade dos atos erige seu autor em estátua heróica “reconhecida por todos” (como disse Steinhauser) e se conclui por uma relação de equivalência: sua própria morte equipara-se à de todos os outros. Quando não se suicida, o assassino reivindica ser morto pela sociedade que agride (colegas militares, no caso de Lortie, ou membros do coletivo da prefeitura, no caso de Durn) 3.
O assassino atingido por essa loucura oscila numa fusão trágica entre o si e o outro, entre a individualidade e a sociedade. Ora, essa vertigem não é específica dos “loucos”. É um fascínio pela união entre o corpo (individual) e o espírito (cultural) a que aspiram todas as pessoas.
A seita-mundo da globalização
Durante a crise de 1929, os banqueiros jogavam-se das janelas dos arranha-céus de Wall Street, fato que intrigou profundamente os psicanalistas
Por seu lado, os adeptos frenéticos da globalização constituem uma espécie de seita-mundo que aspira a superar as diversas sociedades, recusando o projeto de democracia-mundo4. Não estão muito distantes da trágica vontade de fusão dos “matadores loucos”. Essa seita-mundo constitui um grupo simultaneamente fascinante e repugnante, uma comunidade deliciosa e atroz que prevê os desejos, administra as necessidades, verifica os contratos, define cientificamente os assuntos normais e anormais, esvaziando-os de sua capacidade de encontro espontâneo.
Na hora da globalização, a classe financeira não se limita mais à economia, mas ocupa o palco da governança. Desestabilizando uma moeda ou apoiando um determinado regime dócil às suas ordens, ela exerce seu poder gerencial e desafia a democracia. Brincando com o imenso aumento de capitais dos últimos quinze anos, já se apropriou de setores inteiros da economia-mundo, controlando o restante por meio de sua capacidade de efetuar ataques rápidos e destruidores.
Esse vaivém de capitais especulativos eletrocutou sucessivamente, por exemplo, as economias do México (1994), da Tailândia (1997), da Coréia (1998), da Rússia (1999), do Brasil (1999), da Turquia (2001) e da Argentina (2002), ilustrando, aparentemente, a anarquia dos mercados. Na verdade, o que ocorreu nesses países foi o teste de um estilo de influência estratégica em relação a quem deva ser chamado, por ocasião de opções cruciais, à consciência do verdadeiro poder. Uma espécie de cassetete elétrico, com efeitos geopolíticos que envolve o acesso ao controle dos esbirros geoeconômicos, cuja violência oculta, arte da mentira e espírito fraudulento – da Enron à WorldCom, passando pela Global Crossing, Tyco, Qwest, Imclone Systems, Lucent e Xerox, sem esquecer a Vivendi Universal e inúmeros escritórios de consultoria, como Arthur Andersen – apenas começam a ser revelados ao público.
Jogo fatal do poder financeiro
Os “matadores loucos” tentam abolir simultaneamente seu próprio destino e o da multidão, exatamente como o fazem os patrões-especuladores
O poder financeiro consiste, basicamente, em esfolar os outros. Com condições de despejar quantias astronômicas, durante anos seguidos, para dominar quando ninguém mais puder bancar, as finanças mundiais lembram a história daquela velha senhora norte-americana, do célebre filme de Luigi Comencini5, a qual vinha a Nápoles todos os anos para arruinar um bairro miserável no jogo do scopone scientifico. Trata-se de um jogo em que basta ter mais cacife que o adversário para ganhar o último lance. Apesar disso, a cada ano um jogador é delegado pela população miserável do bairro para vir perder todas as suas economias para essa figura da morte. Azar ou masoquismo? Talvez o fascínio pelo próprio poder do dinheiro, ao qual é preferível ser sacrificado a ter de suportar a idéia de um mundo mais igual.
A realidade supera a ficção. Jean-Marie Messier, por exemplo, antes de ser afastado da presidência da Vivendi Universal, detinha o mandato das vítimas consentidas, espertalhões iludidos pelos muito mais ricos, fascinados pela chama do jogo supremo. Também ele se queimou nesta chama, assim como os bens que lhe tinham sido legalmente confiados, riquezas industriais e culturais que honravam os povos que as haviam criado e que, num lance de dados, se encontraram espoliados. Um blefe de pôquer (articulado por algumas famílias internacionais que fizeram a Vivendi despencar) obrigou-o a renunciar e ameaça agora levar à falência o Canal Plus, esse soberbo mecenas do cinema europeu, ou entregar a Générale des Eaux, gigante francesa da tecnologia de ponta, para conservar investimentos de baixa qualidade nos meios de comunicação norte-americanos.
Quantos dirigentes empresariais – da France Télécom, da Alcatel, da Arcelor, do Crédit Lyonnais, do Crédit Agricole, do finado Péchiney ou da Gemplus – não terão imitado Messier em suas tentativas junto a jogadores profissionais ambiciosos, antes de serem trucidados e aniquilados, deixando aos contribuintes de seus respectivos países empresas destruídas e dívidas de várias centenas de bilhões? Quantas elites, consideradas cultas, não se deixaram levar pelo entusiasmo, arrastando seus povos a cada fracasso (inevitável, diante da supremacia do poder financeiro) para a humilhação e a pobreza?
Êxtase e ruína
O assassino enlouquecido vacila na fusão trágica entre o si e o outro, entre a individualidade e a sociedade, vertigem que não é específica dos “loucos”
Nesse meio tempo, não há como duvidar: entre as bajulações arquitetadas para atrair outro trouxa para a mesa do jogo fatal, patrões inescrupulosos e assessores podres zombam daqueles que organizam, nolens volens, a subordinação ativa de seus povos e de suas elites ao verdadeiro domínio centralizado. Veja-se o caso das empresas européias ou asiáticas que, ao passarem a ser controladas pelo capital financeiro norte-americano, perdem progressivamente os cargos estratégicos reservados aos “nativos”.
Mas, para além da excitação e das amarguras do jogo do poder, há uma questão de fundo: seria razoável essa obsessão por dominar pessoas e recursos, mesmo do ponto de vista dos vencedores? Ao destruir, por toda parte, profissões e lealdades que possam contestar o seu poder, o que obtém, afinal, a autoridade brutal do poder financeiro? Atualmente, o desemprego grassa de forma endêmica nos Estados Unidos como por todo lado, e os “senhores do universo” mostram-se incapazes de apresentar projetos de valor planetário. Obcecados em transformar os fluxos de dinheiro em poder sobre o homem, esses “senhores do mundo” preferem as despesas militares e policiais e investem menos na aventura científica. Destroem a natureza de forma progressivamente mais rápida e atormentam um número enorme de trabalhadores e consumidores que têm que venerá-los – sem qualquer outro objetivo que não o da própria veneração.
Esse balanço cada vez mais claramente negativo do capitalismo das Bolsas (que se tornou o “capitalismo da mentira”) remete a um motivo irracional que opera no espírito do senhor. Não estaria ele em busca de uma situação irreversível? Não estaria procurando o êxtase na ruína – a do outro em primeiro lugar, mas também a sua? Mesmo um especulador inveterado como George Soros – que, curiosamente, também é o teórico sutil das “sociedades abertas” – afirma que a vocação dos mercados não é o equilíbrio (em que os mais cegos ainda acreditam piamente), mas, pelo contrário, uma catástrofe auto-ampliadora.
A desconstrução do bem comum
Os adeptos frenéticos da globalização constituem uma espécie de seita-mundo que aspira a superar as sociedades, recusando o projeto de democracia-mundo
Vale lembrar a hipótese segundo a qual uma classe política que se perpetua excessivamente no poder está fadada, em virtude dos erros acumulados, ao fracasso total. Não seria este o caso das elites mundiais que, combatendo a baixa dos lucros ao invés de buscar a frutificação das riquezas a longo prazo, parecem fascinadas pela perda? Os discursos frios de controle de gestão, que os grandes acionistas e seus agentes de governança dirigem às massas disciplinadas de seus subordinados, talvez escondam uma paixão ardente: a de se expor a perigos juntamente com outras pessoas – como os “matadores loucos” – num derradeiro êxtase efusivo.
O verdadeiro objetivo das supostas success stories é a queda de Ícaro, a morte do gladiador febrilmente esperada pelos ávidos espectadores do circo mundial. O papel unificador do Eu e do Universal só foi representado por Jean-Marie Messier (e mais uma multidão de outros fanáticos) para antecipar o único momento dramático: quando os verdadeiros senhores – a família Bronfman e outros pesos pesados da acumulação capitalista – começaram a fazer despencar as ações da Vivendi para pôr em seu devido lugar essa arrogante “francesinha” metida a querer fazer o jogo dos grandes.
Parecemos atraídos pela proposta de um imenso jogo em que a aposta é o “perde tudo”. Seria apenas pelo fato de sermos manipulados por consultores inescrupulosos que entregamos nosso futuro a “produtos derivados” aleatórios ou a fundos especulativos destinados à falência? Seria pelo fato de esquecermos um passado de desilusões sucessivas (os milhões de aposentados arruinados antes da guerra, na Europa e nos Estados Unidos, por meio de fórmulas de poupança semelhantes)?
Excluindo-se a hipótese de uma tendência suicida partilhada, estaríamos diante de um absurdo jogo de faz-de-conta. Por que destruir o que foi construído para o bem comum – serviços públicos eficientes, competências profissionais, tradições universitárias imemoriais, centros de pesquisa fundamental, aposentadorias satisfatórias, respeito cívico pelos desfavorecidos, consolidação de patrimônios culturais, equilíbrio internacional, independência das cidadanias nacionais?
A liberdade das “opções imbecis”
Desestabilizando uma moeda ou apoiando um regime dócil às suas ordens, a classe financeira exerce seu poder administrativo e desafia a democracia
Questionar instituições demasiado burocratizadas ou patrioteiras pode, logicamente, despertar poderes com tendência a se perpetuar. Mas a obsessão por uma reforma permanente torna preocupante o objetivo libertador. É por meio de uma perseverança incondicional que o pensamento ultraliberal se torna o sinal de uma vontade perversa, autodestruidora de fato, ainda que servida pelas melhores elites, austeras, sejam elas socialistas ou liberais.
Não é difícil constatar alguns guinchos lancinantes: a oferta das “opções” mais imbecis (tais como: escolher a que “operadora”, do tipo Enron, deverá ser paga a conta mensal de eletricidade), que passaram a tomar o lugar da verdadeira possibilidade de se libertar da escravidão consumista; um ativismo ardente pela privatização financeira esvaziando de qualquer conteúdo as empresas não submissas ao poder global, roubando suas informações com fins estratégicos não revelados e paralisando, a longo prazo, sua autonomia e seu papel “cívico”; a denúncia permanente dos funcionários públicos (sempre em número excessivo e por demais “privilegiados”, esperando, com isso, que os correios, a pesquisa, as escolas, os trens e os hospitais sejam levados à ruína); a difamação sistemática do princípio republicano em proveito da idéia de uma delimitação do espaço público entre etnias, lobbies, comunidades e potências mercantis; condenação do tempo livre e exaltação dos pequenos trabalhos neurotizantes; “marcação” em cima dos pobres que vão de guichê em guichê para merecer as “provas” burocráticas dos direitos que reivindicam, generosamente concedidas pela grande dama social-democrata, que sente calafrios de culpa e horror ao ouvir falar de bons salários ou de divisão do trabalho; isolamento dos jovens na categoria de delinqüentes enquanto se esperam as novas muralhas dos reformatórios etc.
A adoção dessas lógicas de automutilação social mal esconde o desejo por um desastre econômico e político. Além do mais, essa perspectiva absurda é agravada, de forma solerte, por duas propostas sedutoras que a acompanham sempre implicitamente: mesmo reduzido a uma posição servil, posso esperar, do sistema de escravidão, que um dia serei senhor; embora esmagados pelo grande Todo, todos participamos juntos da Potência plena.
Moldando a própria desgraça
Um blefe de pôquer obrigou Messier a renunciar e ameaça levar à falência o Canal Plus ou entregar a Générale des Eaux, gigante francesa da tecnologia de ponta
Por mais estranha que possa parecer a atual ofensiva mortífera rumo à servidão voluntária, ela perpetua a eterna tendência a arriscar a vida, a liberdade e a dignidade das pessoas na esperança de dominar o outro por meio da violência ou de ferozes artimanhas. Dos circos romanos ao “Big Brother”, das “pirâmides financeiras” norte-americanas ao jogo de sentar nas cadeiras quando a música pára, a aspiração a moldar nossa própria desgraça baseia-se no desejo de usufruir de sistemas de poder englobantes e na tentação de “se fechar para se destruir6“.
Ao lado de inúmeras revoltas e revoluções libertadoras, é necessário ousar lembrar que, das fábricas do modelo taylorista à atual chantagem da “empregabilidade”, um longo passado de infantilização servil revela uma propensão dos homens para suportarem o inaceitável e, às vezes, para se conformarem com ele. Atualmente, a auto-eliminação dos candidatos ou de empregados infelizes (os “elos fracos”) é a regra básica do liberalismo empresarial cujo sadomasoquismo mórbido se esconde detrás de uma suposta “racionalidade econômica”. Não existe um único grande grupo industrial em que, nos últimos anos, o jogo social, conduzido em nome dos acionistas, não tenha consistido no confronto entre jovens e velhos, funcionários públicos e “privados”, nacionais e estrangeiros, e mesmo mulheres e homens.
À primeira vista, o fechamento em lutas internas permite obter trabalho mais dedicado a custo mais baixo. Porém, olhando com mais atenção, para além do prazer de atormentar os subordinados e da alegria passiva em suportar os chefes, manifesta-se uma orientação autodegradante. Por um curioso acaso, a corajosa rejeição de qualquer tendência fascistizante faz-se acompanhar, em muitos militantes do ultraliberalismo, por um apetite pela subserviência cultural (utilizar sempre uma palavra norte-americana no lugar de uma palavra de sua própria língua), pela abnegação (preferir sempre uma “consultoria internacional” a empresas locais), pela traição (permitir sempre que determinada agência – repleta de espiões a serviço da potência – pesquise os arquivos mais confidenciais da empresa), pela delação (denunciar sempre a mínima resistência à hierarquia que possa ocorrer), pelo fracasso (aceitar sempre o desmembramento do instrumento de produção e seu resgate, em pedaços separados, pelo investidor hostil), pela culpabilização piegas (desprezar sempre sua própria condição de “privilegiado” para se inclinar hipocritamente, e solícito, sobre a do “mais desfavorecido”).
Fascistização globalitária
Ao destruir por toda parte profissões e lealdades que possam contestar o seu poder, o que obtém, afinal, a autoridade brutal do poder financeiro?
Na empresa, como no consumo de massa, o esmagamento autoadministrado diante da presença do “senhor-de-todos” (de quem se usufrui, coletivamente, da capacidade de usar as pessoas como se fossem coisas) funciona a todo o vapor. Quando se revelará a verdade – impedida por todos os meios – sobre o imenso remanejamento que se opera hoje em proveito do dominador central? Não seria ele, em nome da resistência aos populismos, uma fascistização globalitária, o instrumento de uma trituração de todos por um poder, em última instância, supremo?
Todos desejamos pertencer à seita suicida que reunisse a parte mais íntima de nós mesmos e sua parte mais universal. E desejaríamos que essa parte universal ditasse sua lei à nossa intimidade, que pusesse fim a qualquer resistência “local” ou pessoal. Defendemos que sejam substituídas as velhas e as novas formas de poder coletivo sobre a cultura espontânea dos seres humanos por meio da discussão, pois – até para os “liberais” – nada assusta tanto quanto a liberdade.
Nesse contexto, os desvios paranóicos da hiperpotência norte-americana são preocupantes para a paz do mundo. Mas são bem mais perigosos em relação a ela mesma, cuja contribuição para a liberdade foi crucial e, muitas vezes, magnífica. As coisas ocorrem como se, no próprio interior da sociedade-mundo norte-americana, se debatessem convulsivamente dois princípios opostos: o da abertura a uma vida independente e ousada, orgulhosa e desafiadora quanto à contínua usurpação por hordas burocráticas – um valor maravilhoso que nenhum adepto da emancipação humana pode negar ou desconhecer – e, por outro lado, o de um ideal de arrumação ordenada dos corpos (assexuados) e dos espíritos (infantilizados) numa vasta estrutura mercantil que se encarregue do destino de todos.
Até quando iremos acalentar a fantasia do “senhor do mundo”, fraudadora desse devaneio coletivista-liberal como o paradigma da razão? Quando nos conscientizaremos da necessidade vital de frear essa iniciativa delirante e suicida? Quando ousaremos tomar de assalto essas agências “globalizadas” – de Londres a Hong Kong, passando por Nova York – onde se elaboram os planos para arruinar sistematicamente as construções sociais, coletivas e culturais que servem os povos ou ajudam suas alianças com base no respeito?
(Trad.: Jô Amado)
1 – La crise économique de 1929: anatomie d?une catastrophe, ed. Payot, Paris, 1989.
2 – Ler, de Hélène Y. Meynaud, o artigo “Blanche-neige et l?épine: femmes, technologie et folies” (com a carta-testamento de Marc Lépine em anexo), revista Chimères, nº 38, primavera de 2000, Paris.
3 – Na realidade, vários dos chamados serial killers não passam de “matadores loucos” que dão vazão a seus atos ao longo do tempo: muitos deles concentram-se numa categoria de pessoas, organizam uma escalada dramática designando um inimigo principal (em geral, uma figura materna) e terminam por suicidar-se ou por provocar suas mortes.
Denis Duclos é antropólogo e diretor de pesquisa do Centre National de la Recherche Scientifique – CNRS, na França. Autor de Éloge de la pluralité – Conversion entre cultures et continuation de l’humanité, Bibliothéque de la Revue du Mass permanente, Paris, 2012.