Economias “verdes” e crescimento zero
Para sair da crise, vários governos estão propondo medidas de um “keynesianismo ecológico”, que combinam a retomada do crescimento com o respeito ao meio ambiente, mas para que o dispositivo funcione é preciso ir além e promover um rompimento radical com a política neoliberal
Os últimos meses, a ideia de um “New Deal verde” vem seduzindo um número crescente de dirigentes políticos no mundo todo. Em reação à crise financeira as autoridades americanas e chinesas decidiram investir na melhoria das infraestruturas públicas e na produção de energias renováveis, mas as virtudes sociais e ecológicas atribuídas a esse tipo de medida devem ser consideradas com precaução.
Mesmo havendo uma mudança incontestável das políticas neoliberais implantadas há algumas décadas, permanece a questão sobre a noção de “New Deal verde” ser ou não realmente apropriada para designar essa nova orientação. A expressão passou a integrar o vocabulário dos dirigentes antes mesmo de ter sido claramente definida1. Portanto, está mais do que na hora de submetê-la a um exame crítico.
Um “New Deal verde” consistiria em um conjunto de medidas governamentais que visassem estimular a atividade econômica de um país através de incentivos fiscais e facilidades de acesso ao mercado.
Historicamente, o conceito de “New Deal” já existia antes de John Maynard Keynes emergir entre os teóricos mais influentes das grandes economias capitalistas. E as recentes medidas tomadas podem muito bem ser analisadas através dos critérios de análise de Keynes. Porém, contrariamente às teorias prezadas pelo economista, um “New Deal verde” só têm sentido se atender simultaneamente a critérios sociais e ambientais.
Um “New Deal verde” se propõe enfrentar as consequências sociais mais nefastas da crise atual, como por exemplo o aumento brutal da taxa de desemprego. E deve traduzir uma reorientação geral da política para uma economia mais preocupada com o meio ambiente, o que implica especialmente a transição para uma economia independente das energias fósseis.
O New Deal de Roosevelt não ficou conhecido como um grande sucesso em matéria de intervenção do Estado na economia. Segundo os economistas Paul Baran e Paul Sweezy, por exemplo, a fraqueza crucial do dispositivo reside no fato de as medidas keynesianas de vocação social terem ficado muito limitadas.
Conta-se que, nos anos 1930, Keynes, durante uma animada discussão com Roosevelt, defendeu com ardor a necessidade de deixar o déficit público se acentuar substancialmente. Mas o presidente americano não pretendia flexibilizar sua política de equilíbrio orçamentário.
Medidas em dólares de hoje, as despesas do governo passaram de US$ 10,2 bilhões em 1929 para 17,5 bilhões em 1939 – ou seja, um aumento de 70% enquanto no mesmo período o produto interno bruto (PIB) caía de 104,4 bilhões para 91,1 bilhões2. Daí as críticas severas feitas ao New Deal de Roosevelt: os componentes sociais do dispositivo não estavam à altura da crise. Entretanto, analisando com certo recuo, o New Deal aparece como uma experiência fecunda.
Embora os investimentos efetuados pela administração Roosevelt não possam ser qualificados de “verdes”, eles apresentavam todas as características de um plano de despesas civis destinado à retomada da máquina econômica.
As despesas militares do governo americano certamente cresceram entre 1929 e 1939, mas em proporções modestas. Em 1929, essas despesas representavam 0,7% do PIB. Dez anos mais tarde, essa porcentagem era de 1,4%3. O que mostra que a etiqueta “New Deal” não pode de modo algum conviver com uma política de aumento dos gastos militares. A designação supõe, ao contrário, que se suprimam os programas de compra de novos sistemas de armamento4.
Somente um empenho firme e inequívoco para reduzir o orçamento do exército americano justificaria uma comparação com o New Deal de Roosevelt. Ora, sob a administração de George W. Bush as despesas militares representavam mais de 1 trilhão de dólares por ano, ou seja, 8% do PIB5!
Um novo New Deal – ainda mais se revestido do qualificativo de “verde” – só terá sentido se impulsionar um ambicioso programa de investimentos civis.
O segundo critério se refere à parte mais criativa das políticas públicas, na qual os governos declaram sua intenção de fazer com que a economia seja menos destrutiva em relação ao meio ambiente.
O que queremos realmente dizer quando empregamos a expressão “investimento verde” ou “despesas verdes”?
Um princípio aparentemente muito teórico, mas essencial, consiste em condicionar essas despesas à sua produtividade intrínseca, isto é, à contribuição concreta para a preservação da vida e da biodiversidade na Terra6.
E isso implicaria não apenas renunciar à produção de sistemas de armamentos excessivos, mas também colocar fim a investimentos que apresentem um caráter paradoxal: as despesas que colaboram para a melhoria do nível de vida, mas que ao mesmo tempo exercem efeito negativo sobre a saúde dos homens e seu meio ambiente natural.
Um verdadeiro “New Deal verde” exige uma ruptura radical com a política neoliberal. No atual contexto de recessão, é de se temer que os governos aceitem a contragosto uma injeção de keynesianismo sem questionar os fundamentos de sua estratégia econômica. Caso isso se confirme, os investimentos terão apenas um impacto muito limitado, como as autoridades públicas dedicarem a maior parte de suas reservas financeiras à salvação dos bancos e companhias de seguro privadas.
Um dos problemas fundamentais da economia globalizada é que o setor financeiro controla a economia real – uma mudança temida por Keynes, que, na sua época, tentou se opor a isso.
Enquanto prevalecer o sistema financeiro, cuja única vocação é acumular o máximo de benefícios em um tempo mínimo, a implantação de uma economia que respeite o meio ambiente permanecerá uma ilusão.
As economias capitalistas sempre defenderam uma expansão sem limites do consumo de energia. No entanto, é preciso questionar se esse consumo exponencial poderá se perpetuar no âmbito de uma substituição das energias fósseis pelas energias renováveis.
De um ponto de vista ecológico e estratégico apenas uma economia “estacionária” e de “fluxo circular” permitiria resolver o problema do esgotamento dos recursos naturais do planeta7.
Nesse sentido, a crise atual representa uma oportunidade histórica. Como é pouco provável que a economia mundial consinta espontaneamente em reduzir sua corrida descontrolada pelo crescimento, talvez seja preciso um traumatismo como o que estamos vivendo para levá-la a uma mudança de atitude.
O exemplo alemão
Para ilustrar as possibilidades de um “New Deal verde” tal como definido acima, tomemos um exemplo concreto. Um dos países que, na Europa, registrou progressos significativos nesse sentido foi a Alemanha. Sua economia, hoje, passa de uma dependência total das energias fósseis para a utilização crescente das energias solar, eólica, geotérmica, entre outras. Para favorecer essa evolução, o governo alemão adotou há alguns anos uma política de subsídios que, em certa medida, merece ser chamada ao mesmo tempo de verde e de keynesiana8.
Graças a isso, o consumo de energias renováveis registrou na Alemanha uma alta contínua de ao menos 1% ao ano. Em 2007, representava 14,2% do consumo total de eletricidade do país. Como a utilização de energias fósseis diminuiu nas mesmas proporções, a Alemanha pode se vangloriar de ter diminuído, de maneira substancial, suas emissões de gases que causam o efeito estufa. Segundo o alemão Herman Scheer, especialista em energia, Berlim obteve, nesse campo, resultados que vão bem além dos objetivos do Protocolo de Kyoto.
Devemos olhar um pouco mais de perto o sistema alemão e ver em que medida ele pode servir de exemplo. Esse sistema apresenta três características fundamentais.
Os fornecedores de energia são obrigados por lei a comprar também de produtores de eletricidade “limpa”, o que atenua sua situação de dependência das multinacionais nucleares ou do petróleo.
Geração de empregos
É o governo que fixa o preço para os produtores de energias renováveis, garantindo, naturalmente, que esse valor cubra os custos de produção. Os preços são flexíveis, pois são fixados em função da fonte de energia explorada. Porém, seu nível geral permanece garantido, e por um período bastante longo – cerca de 20 anos.
Enfim, os custos adicionais gerados pela produção de energias não fósseis são transferidos, isto é, repassados para todos os consumidores – inclusive para as empresas – através de uma taxa especial sobre o consumo do kilowatt/hora. Trata-se então de um sistema distributivo, no qual cabe à população assumir a escolha do desenvolvimento das energias renováveis.
Com esse sistema, a Alemanha parece muito bem armada para realizar a transição histórica que substituirá os materiais poluentes por fontes de energia não emissoras de CO2.
O caráter “verde” desse dispositivo dificilmente poderá ser contestado. Seus partidários ressaltam que o sistema tem também uma dimensão social, na medida em que gera empregos. Segundo diferentes estudos, nada menos que 60% dos empregos industriais ligados às novas energias (fabricação de painéis solares, construção de geradores eólicos etc) decorrem diretamente das medidas de incentivo governamentais9.
Eis a conclusão do que representaria um “New Deal verde”: investimentos públicos maciços que incentivam a exploração de fontes de energia limpa ao mesmo tempo em que contribuem para a luta contra o desemprego em um contexto de crise.
Tal transição só pode ser realizada se conduzida de modo radical, rompendo com uma prática enraizada nas sociedades ocidentais desde a Revolução Industrial do século XVIII10.
Como observam alguns especialistas, uma mudança dessa natureza teria, entre uma de suas consequências, a de tornar as potências capitalistas independentes dos países produtores de energias fósseis. Seria o fim do atual esquema, baseado na extração e na importação-exportação de gás e de petróleo.
Não se deve esquecer, porém, que as tecnologias utilizadas para a produção de energia limpa requerem matérias-primas – os componentes dos painéis solares, por exemplo – que também estão ameaçadas de esgotamento num futuro próximo.
Para garantir a viabilidade do sistema, a transição para as fontes de energia não poluentes deve ser acompanhada da transição para uma economia de crescimento zero, ou até de crescimento negativo.
Um governo que se diz “New Deal verde” deve enterrar o keynesianismo militar. Apenas devem ser aceitos os investimentos e as medidas estimuladoras claramente destinados à proteção da vida na Terra. Isso significa, por exemplo, que a produção de energia nuclear deve acabar, assim como qualquer investimento que agrave o problema dos resíduos e das emissões de gases que causam o efeito estufa.
O recurso às energias renováveis permitirá também a criação de novos empregos e a melhoria do bem-estar público. Um “New Deal verde” não pode ser concebido sem um “New Deal social”.
No final das contas, um dispositivo concebido segundo normas puramente keynesianas não levaria a nenhuma solução sustentável, pela simples razão de que as teorias de Keynes surgiram quando tinha início a era do crescimento descontrolado.
A economia capitalista, enquanto sistema de acumulação de riquezas e desperdício de recursos, está fadada a desaparecer, em prol de uma economia estacionária que preserve o planeta em vez de esgotá-lo.
Essa transição deve se efetuar, certamente, em escala mundial, e de modo a respeitar os interesses dos países do Sul. Essa perspectiva pode soar utópica hoje, exatamente como soaria o conceito de um New Deal verde se tivesse sido proposto há alguns anos.
*Peters Custers é pesquisador do International Institute for Asian Studies (IIAS), autor de Questioning Globalized Militarism. Nuclear and Miliatry Production and Critical Economic Theory, Merlin Press, Londres/Tulika Publishers, Nova Déli, 2007.