Edmundo Heleno de Carvalho
Os pinos e parafusos estavam bem expostos e saíam da pele marcada por cicatrizes da coxa direita. Todos tinham se afastado, para que o enfermo, usando muletas, pudesse se aproximar da porta de ferro e assim mostrar o ferimento ao juiz responsável pela execução de sua pena. Edmundo Heleno de Carvalho era mais um detento que eu encontrava na prisão, com problemas de saúde e que apelava por misericórdia.
Naquele momento, agi como sempre, perguntei qual era o problema, o que o médico havia falado, se os remédios chegavam. O assessor anotou todas as respostas. Mais tarde, no Fórum, buscaria o processo e verificaria o que poderia ser feito. Quem sabe uma prisão domiciliar para tratamento de saúde. Tudo dependeria dos laudos técnicos e das informações da administração prisional sobre a possibilidade de manutenção dos cuidados do preso, o que, naquele caso, já era certo não haver. A insalubridade da cela, aliada à superlotação, era ruim para quem gozava de saúde, imagine-se para quem precisava se recuperar de uma grave lesão.

Edmundo havia se acidentado de motocicleta, em uma madrugada chuvosa, logo após romper uma barreira policial. O jovem tinha drogas consigo e, quando avistou a blitz, não teve dúvidas, cruzou em disparada. Perseguido por algumas quadras, acabou rodando em uma esquina, vindo a cair. Na queda, a perna direita sofreu o maior impacto, resultando em fratura exposta.
Acusado da prática de tráfico de drogas, o processo foi marcado por algumas inconsistências e dúvidas. Foram colhidos depoimentos de dois policiais, que diziam, em uníssono tom, que a atitude suspeita do réu, ao furar a barreira policial, indicava, “sem sombra de dúvidas”, que o “elemento” era um traficante. Por seu turno, Edmundo declarou que a droga que portava, dez buchas de maconha, era para consumo próprio. Nada mais se apurou, não se soube da origem do psicotrópico, seu destino ou se haveria comprador.
Mas o réu foi considerado culpado e a pena postulada pelo Ministério Público veio com todas as letras e números. Edmundo, que era negro, tinha 19 anos, trabalhava como motoboy e vivia com os pais em um bairro periférico e precário, foi sentenciado a 5 anos de reclusão, em regime inicialmente fechado.
Da alta hospitalar à prisão, estava recolhido há seis meses e a saúde só deteriorava. Edmundo deambulava com dificuldade, não possuía acesso fácil aos remédios prescritos e uma dor intermitente persistia. Face à ausência da recomendada fisioterapia, ele também estava perdendo os movimentos da perna, que ficava cada vez mais atrofiada.
Por mais que em algumas unidades prisionais existam equipes de saúde, nos moldes do Sistema Único de Saúde, uma coisa é um doente/acidentado ser atendido e diagnosticado, para, após a alta hospitalar, voltar para casa e continuar o tratamento; e outra, bem diferente, é ser mandado para o confinamento de uma cela sem ventilação cruzada, sem insolação, úmida e com mais seres humanos nela vivendo do que o espaço físico permite.
Depois de tantos anos entrando no cárcere, meu comportamento pode fazer parecer, aos olhos menos atentos, que me acostumei aos corpos presos que sofrem. Assim, o caso do Edmundo seria mais um em um oceano de dores e tristezas. Porém, não para mim. Nunca me acostumei com o estado de privação de liberdade, nunca deixei de sentir. Por algum motivo que desconheço, as imagens entram em meu ser e permanecem. Carrego um peso que aumenta a cada dia e do qual não posso me livrar já falei algures sobre Sísifo.
O fato é que eu já tive a idade de Edmundo, só que aos 19 anos fazia faculdade, vivia em uma república com amigos e, branco, nunca tive meu destino obstaculizado por órgãos da segurança pública. E mais, sempre possuí acesso aos equipamentos da saúde. Em resumo, jamais fui cerceado nos meus sonhos e projetos de vida.
Quando naquele dia aquele jovem detento se aproximou de mim, com dificuldades para andar, e, sob o olhar solidário dos companheiros de cela, levantou a bermuda para apontar os ferros na perna, suplicando ajuda, o sofrimento tomou forma.
Tempos antes, Edmundo morava com os pais, trabalhava de moto, certamente tinha amigos, namorava, vivia a juventude. Agora, ele definhava em uma cadeia.
Nosso sistema de justiça criminal ceifa as energias daqueles que estão exatamente no momento de descoberta dos seus potenciais e seus talentos. A juventude, negra em sua maioria, periférica na totalidade, é jogada para a margem da cidadania, sendo alcançada pelo Estado apenas por sua mão punitiva. Ainda que escapem temporariamente da pena de morte, não escapam da dura pena da prisão.
O encarceramento em nosso país é reflexo de uma monstruosa sociedade. A nação, com seus estertores racistas, volta as costas para populações inteiras, cuja única esperança é de um dia serem libertas, não só das grades, mas da miséria.
Pelo menos, o caso que eu enfrentava naquele momento, daquele detento acidentado, não teria o mesmo desfecho, não sob minha responsabilidade. A prisão domiciliar estava a caminho e o rapaz teria melhores condições para se tratar.
Como juiz, devo agir na retaguarda da Constituição e dos tratados e pactos internacionais de direitos humanos; como juiz, devo resistir, por mim, pelo Estado democrático de direito e, especialmente, por Edmundo Heleno de Carvalho.
João Marcos Buch é autor e juiz de direito.