Edward Said, arqueólogo de si mesmo
Em ’Out of Place’, autor mostra por que é, além de um grande erudito, rebelde e estrangeiro em qualquer parteGilles Perrault
Ele nasceu em Jerusalém em 1935. Chamaram-no Edward porque o príncipe de Gales, naquele ano, era a coqueluche das mulheres. Sobrenome: Said. Nunca ninguém lhe pôde explicar de onde vinha esse nome, que não era o de nenhum de seus avós. Nacionalidade?
Norte-americana, já que seu pai, também nascido em Jerusalém, emigrou para os Estados Unidos em 1911, alistou-se em 1917 e voltou para a Palestina com passaporte norte-americano. Some-se a essas particularidades o fato de sua família pertencer de longa data à religião protestante. A família vivia no Cairo, onde o pai, gênio dos negócios, acumulou uma bela fortuna, de maneira que o jovem Edward (ele odeia seu nome), vestido com um uniforme de estudante inglês, freqüenta instituições inglesas em que professores ingleses, na atmosfera lúgubre do desmantelamento do Império, oferecem um ensino desprezível aos rebentos da burguesia egípcia cosmopolita, os quais também não se sentem parecidos em nada com a massa nativa.
Com 17 anos, com o futuro escolar já comprometido devido a uma atitude sistematicamente rebelde, Edward Said viajou para os Estados Unidos, onde faria um brilhante curso universitário em Princeton e em Harvard, e onde se instalaria definitivamente. Depois
de 40 anos de vida em Nova York, ele escreve: “Continuo me sentindo longe de casa”. Que fique claro que ele não se sente em casa em parte alguma: o estrangeiro absoluto.
Um “romance de formação”
Ele é um dos grandes espíritos do nosso tempo. Professor de Literatura Comparada na Universidade de Columbia, musicólogo renomado, ensaísta fecundo, seu pensamento e suas posições suscitam entusiasmo e escândalo. Ninguém arriscaria prever que esse respeitado intelectual tentaria um dia nos seduzir com as lembranças de sua tia-avó Mélia e de sua avó
Munira. Para isso, foi necessária a revelação fulminante, em 1991, aos 56 anos, de que tinha uma leucemia linfática crônica, um câncer incurável. Fuga para o passado ou retomada das origens para melhor lutar contra a doença? Said decide desenterrar sua
infância e juventude, sem nenhuma nostalgia, com a paixão de um arqueólogo atento, desvendando o passado. O título francês de seu livro – A contre-voie –
descaracteriza um pouco o título original Out of place (embora a tradução seja excelente) 1 . Trata-se da história de uma pessoa que, sempre e em toda parte, se sentiu deslocada, fora das normas, um estrangeiro. Como não pensar, lendo-o, e apesar das evidentes diferenças entre o teórico e o prático, em um Henri Curiel, outro natural do Cairo que também foi, até sua morte, um estrangeiro?
Inesperado, o livro é tão apaixonante quanto tocante. Insere-se na tradição clássica do “romance de formação”, dominado pelo relacionamento difícil com um pai, que no fundo, não era má pessoa, embora um pouco bruto, e o relacionamento apaixonado com uma mãe,
carinhosa e manipuladora, sobre quem o autor escreve: “Ela foi certamente a amiga mais próxima e a mais íntima dos primeiros 25 anos da minha vida”.
A tragédia vista por uma criança
Apaixonante e tocante, o livro insere-se na tradição do “romance de formação”, dominado pelo relacionamento difícil, com o pai, e apaixonado, com a mãe
Said gastou muito tempo e força para se livrar da fôrma em que seus pais, e depois seus professores, o moldaram, e cujo símbolo, a seus olhos, era o seu detestável nome. Escrito com um humor tipicamente britânico (obrigado, Edward!), o livro dá, deliberadamente, as costas à política, já que o jovem Said não se interessava por ela. No entanto, ele a recupera por vias sutis. O drama palestino, por exemplo, que causava estranha indiferença aos pais de Edward, é evocado apenas pela tia Nahira, personagem extraordinária que, também residente no Cairo, desenvolveu, depois de 1948, a atividade sobre-humana de socorrer os refugiados palestinos abandonados numa miséria total. Percebida pela sensibilidade de uma
criança que ignorava as causas e as conseqüências, a tragédia ganha mais força ainda.
Na busca de sua identidade profunda, Edward Said não procura atingir uma unidade fictícia, pois suas raízes geográficas e emocionais formam um emaranhado inextricável. Retomando, com ele, um percurso quase retilíneo, compreende-se melhor por que seu pensamento é muitas vezes considerado herético. Para alguns, a inteligência consiste em simplificar uma realidade espessa e espinhosa. Para Edward Said, ela consiste em lhe acrescentar sempre mais complexidade. Assim é esse livro, no qual sua personagem multiforme nos ajuda a tomar uma medida mais justa do complicado Oriente.
(Trad.: Denise Lotito)
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