Uma barreira também pode esconder outra
“Nosso sistema” persegue um duplo objetivo. De um lado, reorganizar a paisagem ideológica em torno de uma divisão entre liberais-atlantistas e todos os outros – ambição que converge, aliás, com a da FN (“patriotas contra globalistas”).
A chegada de Marine Le Pen, candidata da Frente Nacional (FN), ao segundo turno das eleições presidenciais francesas serviu pelo menos para eliminar os pudores e meneios éticos que em geral revestem o discurso jornalístico. E para mostrar os grandes meios de comunicação como eles realmente são: uma força política, aquela cujos tempos de fala nos esquecemos de contar. Um título do Libération (6 maio 2017) resume a linha desse partido não declarado: “Faça o que quiser, mas vote em Macron”.
“Vote em Macron” senão o quê? Como em abril de 2002, quando Jean-Marie Le Pen causou rachaduras no segundo turno, as direções editoriais sabiam que a vitória da FN era impossível.1 Nem por isso elas deixaram de executar as figuras impostas da chantagem moral, jogando com o antirracismo sincero que anima a grande maioria da população francesa. “Nem-nem no domingo, Le Pen na segunda”, preveniu a capa do L’Obs (4 maio). “Não votar em Macron é votar em Le Pen!”, avisou Franz-Olivier Giesbert (Le Point, 4 maio). “Abster-se é entregar os refugiados à perseguição policial, à expulsão”, disparou Laurent Joffrin; “Os abstencionistas de esquerda devem pensar nisso” (Libération, 6 maio). Votem em Macron, portanto. Ou se tornem cúmplices da chegada de Adolf Hitler ao poder, do aprisionamento em massa de judeus, dos afogamentos de migrantes. Todas as manhãs, os balanços de imprensa repercutiam junto a milhões de ouvintes esses convites infantilizantes a “fazer uma barreira”, cujo eco se amplificaria após o debate entre os finalistas, no momento preciso em que a nulidade da candidata da FN os tornava ainda mais vãos.
O choque entre as forças de coalizão do Bem (abertura, inteligência, capitalismo liberal) e as do Mal (fechamento, estupidez, capitalismo de Estado) era recolocado em cena. Ali, Pierre Arditi, Daniel Cohn-Bendit e Nagui faziam uma petição contra “a rejeição do outro e do ódio de si mesmo” (1º maio 2017); acolá, a historiadora Sophie Wahnich teorizava sobre o voto revolucionário em Macron: “Votemos, mesmo dando um placar terrível a esse neoliberal preocupante e destrutivo, e organizemos a batalha. […] Ouçamos a sabedoria de Robespierre” (Libération, 4 maio). Yanis Varoufakis e Angela Merkel, Barack Obama e Bernard Arnault, a associação Liberdade de Instalação dos Tabeliões Diplomados e a Sociedade Civil dos Autores Multimídia convidavam a se colocar “em marcha” (En Marche! é o nome do partido de Macron) atrás do anjo branco da desregulamentação.
Que o Le Figaro de Serge Dassault e o L’Opinion de Nicolas Beytout fizessem em coro “a escolha da razão” era algo que expressava um interesse bem claro. O entusiasmo dos jornalistas em relação a Macron inscrevia-se, em contrapartida, no registro de uma paixão da qual todos podem adivinhar os frutos amargos. Na RTL (5 maio), o futuro presidente não escondia o destino que reservava aos perdedores: “Tipicamente, você hoje é jornalista, Yves Calvi, você está demitido, não há mais perspectivas nessa bela profissão de jornalista… Portanto, você tem uma dificuldade, há perspectivas na caldeiraria. Em três meses, não vou fazer de você, Yves Calvi, um caldeireiro. Por outro lado, uma formação de um ano permite que você reencontre perspectivas nesse setor”. Abalado por essa visão – a de um holerite com um zero a menos –, Calvi foi resgatado por sua colega Elizabeth Martichoux: “Mas, ei… Yves Calvi vai ser obrigado a aceitar sua formação de caldeireiro?”.
Ao contrário do período entre os dois turnos de 2002, em que cada artigo, cada programa, cada boletim meteorológico incluía um apelo cheio de pânico para votar contra Le Pen, o teatro da frente republicana foi encenado dessa vez com um tom mais calculista, porque o bloqueio contra esse fascismo que não vinha escondia outra barreira, dirigida contra uma ameaça mais tangível.
Duas semanas antes do primeiro turno, o candidato da França Rebelde, Jean-Luc Mélenchon, passava à frente do candidato dos Republicanos, François Fillon. No barômetro semanal da Le Point (13 abr.), um salto de 15 pontos catapultava o primeiro para a categoria de personalidade política preferida dos franceses. “A probabilidade de assistir, em 7 de maio, a uma final Marine Le Pen vs. Jean-Luc Mélenchon não pode mais ser considerada nula”, tremia a revista. Era o cenário negro: nessa hipótese, os colunistas multimeios Raphaël Glucksmann e Jacques Julliard se viam constrangidos em pedir que as pessoas votassem em Mélenchon em nome da “barreira contra a Frente Nacional”. Certamente, o ex-ministro de Lionel Jospin no fundo só propunha uma atualização ecológica do programa keynesiano e um fortalecimento do Parlamento. Mas imaginar nem que fosse por um segundo levar ao pináculo um candidato que prometia aos ricos elevar impostos e aos grupos de comunicação o desmantelamento estava além daquilo que os grandes contribuintes da caneta e do verbo podiam aguentar. “Le Pen-Mélenchon, os gêmeos da ruína”, fulminava Pierre-Antoine Delhommais (Le Point, 13 abr.). “Le Pen, Mélenchon, mesmo perigo”, alinhava-se o Le Monde (13 abr.), cujos colunistas Françoise Fressoz, Arnaud Leparmentier e Gérard Courtois tinham havia muito tempo consagrado Macron. Copiado-colado até o outro lado do Atlântico, esse tema inundou as redações. “Um enfrentamento Mélenchon-Le Pen é hoje plausível”, estremeceu o Wall Street Journal (18 abr.). “Uma e outro defendem um projeto devastador para o Ocidente.”
Desde então, a confraria dos papagaios inseriu na acusação contra o réu toda referência à atualidade internacional. “A paz”, evocada por Mélenchon em seu discurso de Marselha: “Isso remete aos anos 1950 e à URSS”, lançou Ruth Elkrief na BFM TV (10 abr.).2 A Venezuela: como antes ele era próximo de Hugo Chávez (morto em 2013), opôs-se a ele a situação atual do país. Vinte minutos após a abertura das seções eleitorais, em 23 de abril, a France Inter transmitiu por um incrível acaso um “retorno a uma semana de violências” em Caracas, onde se travava uma “guerra civil”…
Num libelo intitulado “Tantas maneiras de ser fascista” (Les Échos, 13 abr.), o “filósofo” Roger-Pol Droit implodiu o “admirador inebriado de ditadores obscenos – sangrento como Fidel Castro, débil como Hugo Chávez – fã de Robespierre, sonhando ressuscitar seu ‘despotismo da liberdade’”, e concluiu: “Em matéria de possível desvio autoritário, o chefe da Frente de Esquerda nada tem a invejar da chefe da Frente Nacional”. Na hora de inventar comparações, aquela entre a França Rebelde e o movimento En Marche! impunha-se ainda mais. Criados contra os partidos tradicionais em torno de indivíduos carismáticos, esses dois partidos misturam a desconcentração da animação militante e a centralização das decisões estratégicas, a vertical do poder e a personificação. Mas isso teria embaraçado o candidato dos “letrados”.
Na noite do primeiro turno, apesar da eliminação da França Rebelde, a “frente republicana” assumiu uma forma inédita: ela combateu não somente Marine Le Pen, como também Mélenchon. Este não conclamou o voto em Macron? “Sua proximidade com Le Pen é agora assumida”, replicou incontinente Bernard-Henri Lévy (BHL) no Twitter (23 abr.). A maioria escolheu votar em branco ou se abster? “Balanço de uma assombrosa ausência de pedagogia antifascista: 65% dos Rebeldes dizem não querer votar contra Le Pen”, tuitou também Edwy Plenel (2 maio). Aos olhos do fundador do site Mediapart, essas crianças grandes ignaras exigem uma reeducação, um pouco como os apoiadores do “não” contra os quais ele se colocara no plebiscito sobre o Tratado Constitucional Europeu em 2005, ou como os sindicalistas refratários à “pedagogia das reformas”.
Do Le Canard Enchâiné contra “a extrema esquerda populista” (26 abr.) ao Le Monde, que fustigou “o perigoso ‘nem-nem’ de Mélenchon” (30 abr.), um clamor se elevou contra “a esquerda que pode fazer a FN ganhar” – slogan que enfeitou a capa do L’Obs (4 maio). Na Maison de la Chimie, em Paris, Manuel Valls, Jean-Pierre Raffarin, Christian Estrosi e Pierre Moscivici – o arco-íris das utopias francesas – animaram um “fórum republicano contra a abstenção” convocado por BHL (ingresso mais um bóton “Contra a abstenção”: 20 euros). O ensaísta preveniu: “Há hoje dois ‘sistemas’: o mélenchono-lepenista, que representa um risco considerável, e o outro, o nosso”.
“Nosso sistema” persegue um duplo objetivo. De um lado, reorganizar a paisagem ideológica em torno de uma divisão entre liberais-atlantistas e todos os outros – ambição que converge, aliás, com a da FN (“patriotas contra globalistas”). Mas se trata também de quebrar o bloco de esquerda antiliberal, que, com 19% dos votos, ameaça a existência do Partido Socialista. Formada de classes populares e médias, de ativistas aguerridos e de jovens, de moradores das cidades e das periferias, essa nebulosa incoerente apresenta um ponto em comum: uma oposição ao sistema midiático e suas injunções.
Desde o início da campanha, Mélenchon modulou sua relação com os meios de comunicação. “Mais que enfrentá-los, eu os contorno” (Le Journal du Dimanche, 2 abr.). Ele não respondia mais às solicitações do Libération, do Mediapart, da participação matinal de Patrick Cohen na France Inter. Em 1º de maio, o apresentador da rádio pública tinha escolhido como convidado especial… um jornalista, também ele boicotado por Mélenchon, que pedia que se votasse em Macron: Plenel, hoje tratado igualmente por BHL ou por Michel Onfray como um “líder de opinião”. Ansioso para exortar seus ouvintes, presumidos como de esquerda, a não se absterem, Cohen entrevistou seu convidado num tom de conivência que faz cócegas nos tímpanos: “Então, a propósito do cesarismo, já que é uma das críticas feitas a você, ‘Jean-Luc Mélenchon, aprendiz de feiticeiro’, você escreveu nesse texto esta manhã…”. Macron será grato ao chefe do Mediapart por seu apoio ao oferecer em seu site sua última entrevista antes da eleição.
Em 1º de maio de 2002, a grande marcha contra Le Pen mobilizou jovens que exibiam capas do Libération e bandeiras europeias: assinantes em potencial. Quinze anos depois, os meios de comunicação compreenderam que nem os “mélenchonistas” nem os abstencionistas iriam engrossar as fileiras de seus futuros clientes.
*Pierre Rimbert é jornalista do Le Monde Diplomatique..