Elogio da gratuidade
Renda universal ou gratuidade, eis o dilema: vale mais dar dinheiro aos cidadãos ou fornecer-lhes serviços gratuitos? Propor remunerar os pais pela educação dos filhos, os estudantes por suas lições ou os camponeses pelos serviços que prestam ao meio ambiente não provocaria, ao fim, o aprofundamento da lógica da mercantilização?
O projeto de renda universal suscita o entusiasmo de alguns, em sua imensa maioria animados pelo anseio de equidade e generosidade. Mas será que sua ambição repousa em alicerces sólidos, uma vez que postula a ideia de uma “crise do trabalho” nos termos da qual uma parte cada vez maior da população não encontrará mais emprego? O aumento da produtividade se estabilizou num nível historicamente fraco desde o fim da Segunda Guerra Mundial; podemos, portanto, concluir que os seres humanos ainda não esgotaram o potencial do trabalho. Não seria melhor tentar identificar outra crise: a da mercantilização?
O capitalismo, cuja vocação consiste em transformar o mundo em mercadorias, não pode continuar dando rédeas a esse processo sem ameaçar a humanidade de uma ruína ao mesmo tempo financeira, social, política e ecológica. Compreender essa situação leva a sugerir outro tipo de renda mínima, desmonetarizada. Em outras palavras: a gratuidade, cuja ampliação seria o caso de defender, pois ela jamais desapareceu de todo. Renda universal ou gratuidade, eis o dilema: vale mais dar dinheiro aos cidadãos ou fornecer-lhes serviços gratuitos?
Podemos identificar três tipos de resposta. Em 2017, o University College de Londres comparou o custo de uma renda universal básica com o da adoção da gratuidade para os serviços universais elementares (casa, comida, saúde, educação, transporte, informática etc.) no Reino Unido.1 A segunda custaria 42 bilhões de libras esterlinas (cerca de R$ 200 bilhões); a primeira, 250 bilhões de libras esterlinas (cerca de R$ 1,2 trilhão). De um lado, o equivalente a 2,2% do PIB britânico; do outro, 13%. Resultados similares se observariam em toda parte, sugerindo uma primeira constatação: a gratuidade parece, a priori, mais “realista” economicamente que a renda universal.
Além do custo, a renda universal apresenta uma armadilha: a perspectiva de manter, ou mesmo aumentar, o mecanismo de equivalência de todos os aspectos da vida com uma certa soma de dinheiro. Propor remunerar os pais pela educação dos filhos, os estudantes por suas lições ou os camponeses pelos serviços que prestam ao meio ambiente não provocaria, ao fim, o aprofundamento da lógica da mercantilização? Uma reflexão desse tipo levou o intelectual André Gorz a abandonar a ideia de alocação universal (que antes ele considerava “a melhor alavanca para redistribuir o mais amplamente possível o trabalho pago e as atividades não remuneradas”) em proveito da tese da gratuidade.2
Mesmo os melhores projetos de renda universal só percorrem metade do caminho: por um lado, nada garante que as somas entregues sejam utilizadas em produtos de valor ecológico, social, democrático; por outro, o dispositivo mantém a sociedade presa a uma lógica de definição individual das necessidades – ou seja, da sociedade de consumo.
Além de responder igualmente à urgência social e ecológica, a gratuidade oferece meios de derrubar os quatro cavaleiros do Apocalipse que ameaçam a humanidade e o planeta: mercantilização, monetarização, utilitarismo e economismo. Ela nos leva rumo ao que está além das lógicas das necessidades e da raridade.
A gratuidade que devemos defender exige uma construção. Em primeiro lugar, econômica: a escola pública é gratuita porque o imposto a financia. A gratuidade libera o serviço do preço, não do custo. Em seguida, cultural: não se trata de ensejar uma liberdade selvagem de acesso aos bens e serviços, mas de impor-lhe regras.
Primeira regra: a gratuidade não se limita aos bens e serviços que permitem a cada um sobreviver, como a água ou o mínimo alimentar. Ela se estende a todos os domínios da existência: o direito aos parques e jardins públicos, aos espaços esportivos, ao embelezamento das cidades, à energia básica, à saúde, ao alojamento, à cultura, à participação política… O desafio consiste em multiplicar as ilhas de gratuidade na esperança de que formem amanhã arquipélagos e, depois de amanhã, continentes.
Segunda regra: se tudo tende a se tornar gratuito, isso deve conduzir a algumas elevações de preços. Paradoxo? De modo algum: a gratuidade avança de mãos dadas com a sobriedade. Um exemplo. A gratuidade de um bem como a água responde não apenas a uma preocupação social, mas também à urgência ecológica, convidando, digamos, a construir redes de distribuição menores a fim de reduzir as perdas (estimadas em mais de um terço) ou desconsiderando o princípio do sistema mercantil segundo o qual a água só serve uma vez. A reciclagem das águas servidas (oriundas do uso doméstico) para consumo continua proibida na França por motivos sanitários. Ocorre, porém, em outros países (Estados Unidos, Japão, Austrália), onde nem por isso as pessoas ficam doentes com mais frequência. Mas conseguimos imaginar que se possa pagar a água ao mesmo preço para beber ou para encher a piscina? Não existe definição científica, e ainda menos ética, do que seria o bom ou o mau uso dos “bens comuns”. Caberá então aos cidadãos – isto é, aos processos políticos – definir aquilo que deve ser gratuito, caro ou proibido. Longe de engendrar o desperdício, como propala a fábula da “tragédia dos comuns” de Garrett Hardin,3 a gratuidade contribui para responsabilizar as punções realizadas no meio ambiente.
Terceira regra: a passagem à gratuidade pressupõe transformar os produtos e serviços preexistentes. A alimentação escolar, por exemplo, deve ser local, respeitando as estações, com pouca água e sem dúvida com pouca carne, feita no próprio estabelecimento.4 As midiatecas atrairiam novos leitores, mas modificando os comportamentos, com muito menos empréstimos por cartão, pois se sairia da lógica do consumo segundo a qual cada um toma emprestado ao máximo conforme o dinheiro que tem. Serviços funerários gratuitos, já autorizados por lei, podem ensejar a ocasião de instaurar uma cerimônia republicana ou de legalizar a humusation e a promession,5 em suma, instaurar políticas de acompanhamento social e psicológico para as famílias.
As cidades, laboratórios de gratuidade dos transportes em comum urbanos e suburbanos, provam que seria um engano contentar-se com a supressão das catracas: trata-se também – sobretudo – de aprimorar o serviço, adotar outras tecnologias e infraestruturas. Essa escolha não está relacionada apenas a cidades pequenas e médias, mas também a metrópoles como Tallinn, a capital da Estônia, ou, em certos momentos, a cidade chinesa de Chengdu, com seus 14 milhões de habitantes. Na Île-de-France, o relatório encomendado pela presidenta da região, Valérie Pécresse, reconhece que a gratuidade não provocaria problemas de financiamento, mas um risco de saturação da rede, prova de que o sistema mercantil não satisfaz o direito à cidade e não consegue responder à crise ecológica. Por isso, esse mesmo relatório opta pelo impossível carro “próprio”. Em nenhuma das áreas envolvidas a gratuidade induz a uma queda na qualidade do serviço, contrariamente ao rumor disseminado segundo o qual seria imperioso escolher entre gratuidade e qualidade. A experiência mostra: a gratuidade não contribui para o fomento das incivilidades nem para a recrudescência das degradações. Muito ao contrário.
Alguns, entretanto, acham que apenas a mercantilização permitiria proteger os recursos naturais: por exemplo, quanto mais o petróleo se tornasse raro, mais seu preço aumentaria, forçando a limitação de seu uso. Assim, denunciam a gratuidade como a organização do desperdício. Nada mais falso. Tomemos o caso da energia: não se trata de tornar toda a energia gratuita, nem mesmo de atingir o máximo de nossas capacidades de produção. Sabe-se agora que a sobrevivência da humanidade impõe deixar no subsolo uma boa parte do petróleo disponível, pois sua utilização agravaria o aquecimento global. Imaginar a gratuidade da energia requer que se elabore uma transição rápida e suave entre um modo de vida devorador de energia e um modo de vida sóbrio. Essa política se harmoniza perfeitamente com o cenário “negaWatt”, fundado sobre uma redução, na fonte, das necessidades energéticas partindo-se de diferentes tipos de uso.
Em 1º de outubro de 2018, o apelo “Por uma civilização da gratuidade”, lançado concomitantemente ao manifesto Gratuité versus capitalisme [Gratuidade versus capitalismo], contou com o apoio de diversas personalidades, bem como de organizações políticas de esquerda e ecologistas. Ele opõe aquilo que depende de uma gratuidade de acompanhamento do sistema – a das tarifas sociais, destinada aos que “caíram”, sem jamais deixar de levar em conta a condescendência e a avaliação – àquilo que participa de uma gratuidade de emancipação – a da escola pública e do princípio de segurança social tal qual entendido pelo programa do Conselho Nacional da Resistência (CNR) durante a Segunda Guerra Mundial. E propõe romper em definitivo com toda ecologia culpabilizante.
Voltada à emancipação, a gratuidade constitui um hino ao “mais a fruir”. Podemos lançar mil censuras contra a sociedade de consumo, mas ela consegue fascinar nos convidando a consumir cada vez mais. Romper com essa “fruição do ter” implica opor-lhe outra: a do ser.
*Paul Ariès é cientista político, diretor do Observatoire International de la Gratuité e autor de Gratuité vs. capitalisme [Gratuidade vs. capitalismo], Larousse, Paris, 2018.