Em busca da Pachamama
Muitas organizações procuram consolar os ocidentais inquietos com a crise ecológica. Longe de suas frenéticas metrópoles, na América Latina, os indígenas teriam conservado sua proximidade com a natureza, erigida à categoria de divindade: a Mãe Terra, ou Pachamama. No trabalho de campo, procurar por essas comunidades protegidas pode trazer algumas decepções
Nos últimos meses de 2017, atravessamos o Atlântico para chegar ao Equador, em busca da Pachamama.1 Em nome dessa divindade ameríndia, indígenas, ativistas ambientais, dirigentes políticos e intelectuais empenham-se em “frear as agressões do capitalismo”,2 principalmente as que envolvem a extração de matérias-primas.
“A Pachamama é uma realidade no mundo indígena”, explica Alberto Acosta, com quem falamos logo que chegamos a Quito. Ele foi ministro de Energia e Minas em 2007 e presidente da Assembleia Constituinte que, em 2008, sob a liderança do presidente Rafael Correa, reconheceu a Pachamama como um sujeito de direito – algo inédito no mundo. Agora hostil ao ex-chefe de Estado, a quem acusa de traição e perpetuamento da exploração dos recursos naturais do país, Acosta encarna uma corrente ambientalista que conta com grande atenção no exterior. “Para os povos autóctones, a Pachamama não é uma simples metáfora, ao contrário do que ocorre no mundo ocidental. Os indígenas identificam a Terra como uma mãe. Eles têm um relacionamento muito estreito com ela. Claro que nem todos os indígenas veem as coisas dessa maneira, afinal de contas, eles foram submetidos a quinhentos anos de colonização, e ela ainda não acabou. O mundo indígena não é poupado pelas lógicas do capitalismo, do individualismo, do consumismo e do produtivismo. Mas ainda há comunidades que organizam sua vida social, política, econômica e cultural em torno de noções como Pachamama e Sumak Kawsay [bem viver].”
No Equador, mais que em qualquer outro lugar, a influência do conceito de Mãe Terra ultrapassou o círculo das comunidades indígenas “protegidas”. “Eu não coloco botas em meus filhos quando vão ao quintal, para que sintam a terra, para que sintam o contato com a Pachamama”, explica Rocío G., diretora e produtora de programas relacionados ao mundo indígena, que mora em um bairro residencial da capital. Antes de lamentar: “Mas minha irmã, para quem nada disso tem importância, calça os filhos sempre que eles saem”.
Estranha aos olhos da cineasta, a decisão de sua irmã é a mesma dos indígenas quíchuas dos altos platôs com quem falamos alguns dias depois: para que seus filhos não peguem friagem ou se machuquem, eles também calçam as crianças quando saem de casa… Devemos concluir que os Quíchua esqueceram sua cultura? Não em Otavalo, onde funciona, o ano inteiro, um dos maiores mercados artesanais da América Latina. Aqui, tudo é feito para promover a identidade quíchua. Essa atitude acabou levando à “indigenização” de algumas festas que antes não faziam nenhuma referência à cultura quíchua. É o caso da festa do equinócio de verão, que se tornou o Inti Raymi, e do Carnaval, celebrado em todo o país, mas aqui rebatizado como Pawkar Raymi. As festividades ocorrem na comunidade de Peguche, a poucos quilômetros do centro de Otavalo, em uma curiosa mistura: uma procissão em torno de um xamã é acompanhada por um show de reggae, um torneio esportivo, uma missa católica, a eleição de uma rainha da beleza quíchua e uma gigantesca batalha de água, farinha, ovos e tinta. Edwin T., filho de artesãos e músicos da comunidade vizinha, que atualmente estuda em Paris, explica sorrindo que a maioria dos líderes locais não fala quíchua. A seu ver, essa reindigenização “baseia-se essencialmente em uma reinterpretação incerta de tradições relatadas em livros de antropólogos ou intelectuais brancos”.3
– O que é Pachamama, Luis? – a questão traz uma lembrança dolorosa para Luis Tuytuy, um dos líderes da nação Sápara, no coração da Amazônia equatoriana.
– Pachamama? Bem, é uma fundação equatoriana que apoiava as comunidades indígenas na luta em defesa da natureza. Ela não existe mais.
– Ah, claro. Mas eu estava falando sobre a divindade, sabe, a Mãe Terra? Aliás, como se diz Mãe Terra na língua sápara?
– Ah… Espera um pouco… Sinto muito, na verdade eu não sei.
“Também temos menus vegetarianos”
Quando fizemos essa pergunta, a maioria das reações foi semelhante à de Tuytuy. Nos (raros) casos em que o termo evocava algo, era uma terra que precisa ser defendida como território ancestral: um espaço vital constitutivo de uma identidade. Conversamos com os Achuar das comunidades de Wisui, Chumpi e Cotapaza, localizadas às margens do Rio Pastaza – às quais se chega somente depois de horas de ônibus, canoa e trilhas na floresta partindo da cidade de Puyo, ao pé da Amazônia –, e com os Quíchua das comunidades da região de Curaray – separadas de Puyo por três horas de ônibus em estrada de terra e mais de oito horas de canoa no Rio Curaray, quando seu nível permite. As aspirações dos moradores locais estão menos relacionadas ao meio ambiente do que à melhoria das condições de vida: acesso aos centros de saúde – as picadas de cobras, por exemplo, representam quase 10% das causas de morte na Amazônia equatoriana –, à educação, às redes rodoviárias, especialmente para vender sua produção na cidade, e aos meios de comunicação a distância (rádios de onda curta e internet) “para entrar em contato com o exterior em caso de emergência”, explica o ancião da comunidade Cotapaza. E depois acrescenta: “Diesel para o barco é bom. Antes, só com o remo, era muito mais difícil vencer a corrente”.
No entanto, eles também se inquietam com o impacto da modernidade sobre as práticas culturais. Alguns se preocupam com a educação; outros, com o acesso à rede rodoviária, mas todos temem que os jovens esqueçam suas raízes. Assim, uma tensão estrutura a forma como a população local vê os projetos de mineração ou extração de petróleo colocados em prática pelo governo: por um lado, a ameaça do desaparecimento da cultura dos antepassados e do modo de vida a eles associada, com o sentimento de abandono por parte de um governo que só se interessa pela terra por causa da “riqueza do [seu] solo”; por outro lado, o fato de que esses projetos, embora poluidores, poderiam melhorar condições de vida hoje miseráveis.
Essa ambivalência nem sempre é expressa por aqueles que falam em nome dos povos indígenas no Equador, a exemplo de um dos líderes da formação indígena Pachakutik, Salvador Quishpe, atual governador da província de Zamora-Chinchipe, que apoiou o riquíssimo banqueiro Guillermo Lasso, candidato da direita às eleições presidenciais de 2017. Equipado com dois smartphones, o tempo todo atravessando o país de avião, Quishpe expõe seu credo: quando os povos indígenas usam sua pobreza como argumento em defesa da mineração, ele os convida a rejeitar o “estilo de vida ocidental”. Lembra-lhes que a “floresta magnífica” que os cerca, com suas cascatas, é a única “riqueza verdadeira” e explica que o desenvolvimento econômico provocado pelas grandes operações de mineração ameaça “corrompê-los” e “destruir sua cultura”.
A consciência ambiental dos indígenas não tem muito impacto. Quando viajamos pela região andina e amazônica, onde essas populações estão particularmente representadas, vemos estradas cheias de painéis instalados pelo Estado com recomendações: “Cuide do meio ambiente”, “Cuide da natureza, você depende dela”, “Natureza é vida”, “A Terra merece respeito, cuide dela”. Para Carlos Freire, no entanto, a Pachamama é bem real: “Ela é sagrada, é nossa mãe. Devemos respeitá-la”. Mestiço e habitante de Puyo, ele dirige a agência Hayawaska Tour, que oferece passeios turísticos na Amazônia. “Organizamos o programa de nossos passeios de acordo com o que os turistas querem ver e em seguida os apresentamos às comunidades. Em nosso Full Day Tour [passeio de um dia], oferecemos oficinas com essas populações. Mas o mais pedido é o Ayahuaska Tour. Trabalhamos com xamãs que sabem fazer o bom uso da ayahuasca [bebida alucinógena].4 É um momento especial em que as pessoas podem viver coisas profundas em perfeita conexão com a natureza. No dia seguinte, elas se levantam e comem um caldo de frango puro, sem produtos químicos. Também temos menus vegetarianos.”
A promoção de circuitos neo-New Age de Freire passa por uma oposição militante aos projetos petrolíferos, em nome da defesa da Pachamama – uma luta à qual se dedica totalmente o Toxi Tour da associação dirigida por Diocles Zambrano, nas proximidades de Coca, cidade amazônica localizada perto de poços petrolíferos. A visita tem o objetivo de ilustrar “o horror da exploração petrolífera”, em parceria com a ONG Acción Ecológica. Com sede em Quito, a organização tem Acosta entre seus mais eminentes apoiadores. Resultado? Ela se tornou obrigatória para os jornalistas que queiram investigar a questão ambiental no Equador. Bastante profissional, a Acción Ecológica dá tudo mastigado, fornecendo todos os contatos úteis.
Para Acosta, bem como para movimentos ambientais próximos à Acción Ecológica, como os Yasunido,5 e muitos dos atuais líderes da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), ecologia, antiextrativismo e indigenismo se tornaram inseparáveis. Assim, as reivindicações sociais, territoriais e culturais tradicionais são feitas em nome da Pachamama. É a mesma lógica para alguns líderes políticos, indígenas ou não, para os quais a divindade seria um vetor da luta contra o aquecimento global e o capitalismo.
A situação não é exclusiva do Equador. A antropóloga Sarah Quilleré pesquisa as lutas do povo Wayuu na Colômbia. Segundo ela, “a retórica indigenista e a ecologização do discurso dos líderes wayuus são certamente o elemento mais marcante” em seu movimento “contra a destruição e a espoliação do território”. O fenômeno responderia “à crescente preocupação ecológica nos países mais industrializados”. A tendência dos pensadores “nos quais se inspiram amplamente as organizações indígenas e as ONGs é dizer que devemos procurar nas tradições pré-coloniais as lógicas alternativas ao modelo racional europeu. Essas novas correntes de pensamento propõem reabilitar os valores tradicionais como único meio de emancipação e sobrevivência autônoma das populações”.6
Marx e Freud, poncho e ioga
No Equador, ninguém encarna melhor o fenômeno da “pachamamização” da política – uma forma de ecologização indigenizante, ou de indigenização ecologizante – do que Carlos Pérez, presidente da Ecuarunari, que representa os indígenas da região montanhosa. Muito respeitado pela esquerda ambientalista internacional e radicalmente oposto ao ex-presidente Correa, Pérez explica que, não tendo sido contaminados pelo Ocidente, os indígenas detêm uma “verdade ancestral” sobre o mundo “que pode salvar a humanidade”. A internet daria os meios de “globalizar a resistência” aos projetos de mineração e extração de petróleo e, de maneira mais geral, à política “capitalista, ‘ecocida’ e ‘etnocida’”. Como globalizar a resistência? “Globalizando a Pachamama, as cosmovisões, as cosmoexperiências”, explica Pérez. Ou melhor, “Yaku” Pérez, já que ele recentemente decidiu indigenizar seu nome.
Aqueles que, como os Sápara, escolhem outra via para satisfazer suas necessidades básicas observam que não apenas as ONGs frequentemente desistem de ajudar as comunidades que optaram por “colaborar” com o Estado, mas que a própria Conaie os marginaliza. Essa situação não surpreende Antonio Vargas, ex-presidente da confederação: à medida que a organização se envolveu no jogo das alianças políticas, ela “se separou de sua base”, avalia.7
Se alguns dos atuais líderes da Conaie aprovaram a decisão de apoiar o banqueiro Guillermo Lasso em 2017, talvez seja porque os militantes históricos de orientação marxista – como Humberto Cholango, Ricardo Ulcuango, Pedro de la Cruz e Miguel Lluco –, para os quais a luta indígena é entendida em termos de luta de classes, decidiram apoiar Correa durante toda a sua presidência. O fenômeno deixou o campo aberto para outros líderes, como Quishpe e Pérez, partidários de uma forma de essencialismo indígena.
“As questões dos direitos da natureza ou do Sumak Kawsay não faziam parte das reivindicações indígenas na década de 1990”, explica o cientista político Franklin Ramírez. “Foi no início da Revolução Cidadã [após a eleição de Correa] e principalmente com a Assembleia Constituinte de 2008 – sob a liderança de Acosta – que esses temas realmente entraram no cenário político e ganharam grande visibilidade. Muita gente pensa que o movimento indígena sempre usou a retórica ecologista, mas não é o caso.”
Depois de mergulhar nos documentos programáticos da Conaie dos anos 1990, Ramírez observa que as reivindicações indígenas da época giravam em torno da plurinacionalidade, da terra, da representação no Estado e da promoção de uma forma de autogestão, de democracia comunitária. “Nesse quadro entrava, de maneira colateral e periférica, a questão da natureza e dos recursos naturais. Para os movimentos indígenas dessa época, a resposta para o problema da proteção do meio ambiente, da natureza, era a autonomia indígena e a aquisição do poder territorial sobre os recursos.” Ramírez concorda com Floresmilo Simbaña, líder e intelectual da Conaie, em dizer que a decisão de levantar a bandeira do Sumak Kawsay e da Pachamama foi uma forma de Correa neutralizar a delicada questão da plurinacionalidade, colocando-a em segundo plano.
A despolitização da Pachamama – que possibilitou sua repolitização conservadora – teve início, segundo Ramírez, quando as lutas políticas indígenas ganharam grande visibilidade, na década de 1990: “Na época, eu tinha colegas na universidade que eram marxistas ou freudianos e se indigenizaram. Começaram a usar trança, chapéu, poncho. Iam falar sobre a Pachamama na TV. Houve um processo impressionante de reindigenização, acompanhado do surgimento de serviços espirituais étnicos: xamãs, rituais de ayahuasca, igrejas etc. Muita gente do meu círculo, gente urbana de Quito, mergulhou nessa onda, sobretudo a pequena e a grande burguesia. Agora é a ioga. Aliás, essa visão pachamamista do mundo lembra um pouco algumas formas de ioga: os problemas estão no interior. É uma forma de personalizar a questão da transformação das coisas e de abandonar as lutas políticas fundamentais”.
A redução da Pachamama à sua dimensão espiritualizante e ecologizante assegura a Acosta certo sucesso no exterior. “Estou sempre viajando para a Europa, especialmente para a Alemanha, a Áustria, a Espanha e a Itália”, explica por Skype, por causa de suas viagens constantes. “Mas também para muitos países da América Latina. Sou convidado pelas universidades e pelos movimentos sociais. Por exemplo, hoje vou para a Alemanha – onde vou receber um prêmio – para falar sobre direitos da natureza e sobre todas as transformações civilizacionais que permitem sair de um mundo antropocêntrico para um mundo biocêntrico.”
*Maëlle Mariette é jornalista.