Em defesa da igualdade
Ao contrário do que dizem os liberais, ela pode abrir a cada indivíduo múltiplas possibilidades de ação e de existência, e permitir a afirmação das singularidadesAlain Bihr
Desde a Revolução Francesa, em 1789, o tríptico “Liberdade, Igualdade, Fraternidade” passou a ocupar a fachada das escolas francesas. O segundo termo desta trindade republicana foi submetido a uma ofensiva generalizada ao longo das décadas de 80 e 90, sob o disfarce de crítica do igualitarismo. À medida que as desigualdades sociais prosperavam, que os novos pobres e os yuppies faziam sua aparição no cenário social, e que a igualdade entre homens e mulheres demorava em se concretizar, [1] a idéia cara a Jean-Jacques Rousseau era questionada.
Houve quem tentasse, em vão, substituí-la pela noção mais vaga de eqüidade. Na França, por exemplo, o ensaísta Alain Minc, revezando-se em inúmeras revistas e programas audiovisuais, buscou, com a ajuda de outros intelectuais, desembaraçar-se daquilo que chama “velha resposta igualitária tradicional”. Esse autor chegou ao ponto de afirmar, num relatório oficial, que os trabalhadores franceses que recebem o salário mínimo (Smic) teriam visto seus rendimentos crescerem de modo “muito rápido” entre 1974 e 1994. [2] No entanto, nesse período, seu nível de vida progrediu menos rapidamente do que o da média dos assalariados (respectivamente 40% e 60%), sem falar da progressão dos rendimentos dos detentores de capital. Essa ofensiva veio acompanhada por uma valorização dos “vencedores”.
Desigualdade como um direito
A defesa das desigualdades no interior da sociedade foi construída por diferentes correntes ideológicas, cada uma delas contribuindo à sua maneira. Articula-se em torno de três temas principais.
A igualdade, em primeiro lugar, seria sinônimo de uniformidade. A desigualdade passa então a ser defendida em nome do direito à diferença, implicando numa dupla confusão: entre igualdade e identidade, por um lado, e entre igualdade e diferença, por outro.
Além disso, a igualdade seria sinônimo de ineficiência. Ao garantir a cada cidadão uma mesma condição social, o Estado desmotivaria os indivíduos e arruinaria as bases da mobilidade social e da concorrência. A igualdade seria, portanto, contra-produtiva, tanto para o indivíduo quanto para a coletividade. As desigualdades, por seu lado, seriam distribuídas entre todos, “vencedores” e “perdedores”. Esta é, por exemplo, a posição de Friedrich Hayek e de seus epígonos. De maneira análoga, a Teoria da Justiça, de John Rawls, permite justificar toda desigualdade a partir do momento em que ela é considerada como capaz de melhorar a sorte dos mais desfavorecidos.
A fragilidade do argumento liberal
E, em terceiro lugar, chegamos ao argumento principal do discurso defensor das desigualdades: a igualdade seria sinônimo de constrangimento, de alienação da liberdade, representando uma ameaça principalmente ao “livre funcionamento do mercado”. Ela conduziria inevitavelmente à via dos piores infernos totalitários.
Esta argumentação, porém, é bem frágil. Contrariamente ao que afirmam estes críticos, a igualdade não implica na identidade (ou a uniformidade), assim como a desigualdade não garante a diferença. Muito pelo contrário. Por exemplo: as desigualdades de rendimentos produzem as camadas sociais, no interior das quais os indivíduos são prisioneiros de um modo de vida, o qual são mais ou menos forçados a seguir para estar (e permanecer) em seu devido lugar. Inversamente, a igualdade de condições sociais pode abrir a cada indivíduo múltiplas possibilidades de ação e de existência, que seriam mais favoráveis à afirmação das singularidades.
A “liberdade” do desemprego
Além disso, a eficiência capitalista tem um preço, e cada vez mais pesado — do desperdício dos recursos naturais ao das riquezas sociais. As desigualdades produzidas pelo mercado envolvem, na verdade, uma inacreditável confusão. Podemos medir esta formidável dilapidação da riqueza social, caracterizada pelo desemprego e pela precariedade da vida de grandes massas populacionais? A eficiência econômica da sociedade não seria maior se fosse utilizada a força de trabalho de milhões de pessoas afetadas pelo desemprego e sub-emprego?
E finalmente, a desigualdade oprime. Qual é a liberdade do trabalhador que fica desempregado durante um longo período, da trabalhadora de tempo parcial, de quem recebe salário mínimo, do sem-teto ou do analfabeto, de quem morre aos 30 ou 40 anos num acidente de trabalho ou cuja vida é abreviada pela exploração no trabalho?
Complacência dos sociólogos
A única liberdade garantida pela desigualdade é a faculdade de uma minoria se arrogar privilégios materiais, institucionais e simbólicos, em detrimento da maioria. Na França, mais de cinco anos após a campanha eleitoral do candidato Jacques Chirac, centrada sobre a fratura social e a necessidade de sua redução, e graças ao movimento social de novembro-dezembro de 1995 e à mudança da atmosfera ideológica que o tornou possível, os ataques contra a igualdade passaram a ser menos grosseiros. Passaram a ser utilizados caminhos rebuscados, acrescentando sistematicamente à palavra igualdade um qualificativo que atenua ou altera seu significado.
A expressão de inspiração liberal “igualdade de oportunidades” tende, dessa forma, a substituir a palavra “igualdade”. É evidente que essa expressão já era utilizada na década de 60, mas permanecia restrita aos debates que atravessavam a sociologia da educação, através da questão: a escola contribui para tornar iguais as oportunidades de acesso a uma carreira correspondente ao talento ou à vocação de cada um, para manter ou reforçar as desigualdades? Se os sociólogos se opunham vigorosamente aos mecanismos geradores destas desigualdades e a certas interpretações teóricas, eles estavam de acordo quanto aos fatos. Ou seja: que a escola não diminuía globalmente as desigualdades de oportunidade de acesso a tal ou tal caminho, e que a reprodução social superava largamente a sua mobilidade.
O discurso da Terceira Via
Esta noção de “igualdade de oportunidades” não equivale, porém, nem à de igualdade de resultados nem à igualdade de condição. Mas para muita gente ela designa implicitamente a igualdade pura e simples, sem qualificativos. Seu uso sistemático pelos dirigentes políticos, de variadas colorações ideológicas, ou pela imprensa — inclusive a de esquerda, e mesmo da esquerda radical — produz um efeito insidioso. [3] A “igualdade de oportunidades”, inicialmente, permite justificar a desigualdade de resultados. Na escola, onde assume um caráter de mito ou mistificação, ela permite justificar desigualdades bem reais.
O primeiro-ministro britânico, Anthony Blair, não hesita em dar este passo, quando avaliza a idéia de que os mais desfavorecidos, em última análise, seriam responsáveis por sua própria situação e, portanto, por seu infortúnio. O mesmo vale para o chanceler alemão, Gerhard Schröder, quando proclama: “Eu não acho que seja desejável uma sociedade sem desigualdades…Quando os social-democratas falam de igualdade, deveriam pensar em igualdade de oportunidades, e não em igualdade de resultados.”
A igualdade como loteria?
Essa guinada contribui para um verdadeiro deslocamento semântico. O procedimento não é novo. Em sua mensagem ao povo francês, em 11 de outubro de 1940, após ter fustigado “as fraquezas e vícios do antigo regime político”, o marechal Philippe Pétain preconizava já a substituição dos princípios igualitários inspirados por Jean-Jacques Rousseau pela idéia de igualdade de oportunidades: “O novo regime será uma hierarquia social. Ele não se apoiará na falsa idéia da igualdade natural dos homens, mas na idéia, necessária, da igualdade de oportunidades, dadas a todos os franceses, de provar sua aptidão a servir… Dessa forma, renascerão as verdadeiras elites que o regime anterior se dedicou a destruir nos últimos anos e que constituirão os quadros necessários ao desenvolvimento do bem-estar e da dignidade de todos”. [4] Para Pétain, tratava-se então de renovar as elites e de romper com certos aspectos da Terceira República, prolongando as discriminações republicanas.
Nos dias de hoje, a expressão “igualdade de oportunidades” nos remete mais banalmente à concepção liberal anti-igualitária ou à sua variante dita “social-liberal”. Não resta dúvida, que ela permite diluir e desnaturalizar a idéia de igualdade, ao mesmo tempo como realidade e como horizonte. Pois onde há igualdade, por definição, não há necessidade de oportunidade; e onde há oportunidade não há igualdade, e sim o acaso, a sorte grande ou um prêmio de consolação. A palavra “oportunid