Em defesa das ciranças
Matar crianças é uma obsessão: nos últimos três anos, 700 palestinos e 100 israelenses com menos de dezesseis anos perderam a vida. Nesse mesmo período, o exército e os colonos israelenses mataram 382 crianças palestinas e 79 crianças judias morreramLeah Tsemel
Meus pais deixaram a Europa pouco antes do genocídio, no qual morreu a maior parte de minha família, para vir para esta região que, na época, se chamava Palestina – e que chamamos Israel – e me proporcionar uma vida melhor e a segurança de um Estado. Quase sessenta anos depois, não posso dizer que conseguiram, pelo contrário. Todos aqueles que queriam construir o Estado de Israel não parecem ter entendido que não se pode erigir um novo futuro em cima de uma base de opressão.
Há mais de trinta anos que defendo palestinos nos tribunais israelenses e ainda não consegui, apesar dos meus esforços constantes, fazer com que os juízes compreendam esta verdade elementar. A situação não pára de se deteriorar e, no ano passado, para dar um passo em frente, tive que recuar dois ou três.
O escritor David Grossman fala da “reciclagem” lingüística inventada pela invasão israelense. “Ocupação” transformou-se em “libertação”, “colonização” em “implantação pacífica”, “assassinato” em “alvos seletivos”? A esta tentativa de dissimulação, os palestinos respondem por uma radicalização da linguagem. Antigamente, os palestinos que vinham me consultar em Jerusalém falavam de “soldados” ou de “colonos” que tinham tomado suas ovelhas, por exemplo, mas agora as crianças palestinas, assim como as gerações mais velhas, não usam mais estas palavras: falam diretamente Elyahud (os judeus): “Os judeus confiscaram meus documentos de identidade”, “os judeus me bateram”, “os judeus destruíram?” etc. O fato do Estado de Israel se tornar, dessa maneira, o representante de todos os judeus do mundo me assusta, pois a todos os judeus será colada a imagem de soldados, de policiais e de colonos…
“Eu sabia que não havia esperança…”
A criança palestina que fala de Elyahud para se referir aos judeus, às pessoas fardadas, vai abraçar o fanatismo, um fanatismo nacionalista que se acrescentará ao religioso, em plena ascensão. Mas não nos enganemos. Um fanatismo do mesmo tipo está se reforçando do lado judeu. Um fanatismo religioso. Para as jovens gerações judias em Israel, todos os árabes devem ser banidos. Nos muros de nossas cidades pode-se ler, em hebraico: “Fora os árabes” ou “Morte aos árabes”. Aliás, nosso governo israelense discute abertamente o destino de Yasser Arafat, o presidente eleito pelos palestinos: devemos matá-lo? Deportá-lo? Apelar para a eleição de outro presidente palestino suficientemente fraco para que consigamos obter dele o que queremos?
Há uma “reciclagem” lingüística: “ocupação” transformou-se em “libertação”, “colonização” em “implantação pacífica”, “assassinato” em “alvos seletivos”?
As principais vítimas da ocupação e da opressão são, naturalmente, de ambos os lados, as crianças. As leis promulgadas antes de 1948, em vigor sob o mandato britânico, antes da independência do Estado de Israel, ainda persistem. Permitem a qualquer potência ocupante, a qualquer governo, impor punições coletivas.
Recentemente, perdi um processo. Tentava, em nome de uma entidade de defesa dos direitos humanos, impedir a destruição da casa de um jovem palestino que se suicidou com uma bomba perto de um campo militar, não muito longe de Tel-Aviv, matando oito pessoas. A lei mandatária (promulgada pelos britânicos) estipula que a casa do autor de um atentado seja destruída. Quando chamei a família para dizer que tinha perdido o processo e que a casa ia ser destruída, a mãe daquele jovem disse: “Eu sabia que não havia esperança e faz horas que já evacuamos a casa.”
O esporte inédito das crianças
Num caso desses, é raro termos tempo para recorrer à justiça. A demolição da casa não pune quem violou a lei, mas sua família. E, muitas vezes, o exército age sem aviso prévio. “Vocês têm cinco minutos para deixar o local”. Quebram tudo, inclusive os móveis e os pertences pessoais. Perguntei muitas vezes a essas famílias o que elas levavam embora quando dispunham de alguns minutos: “Os diplomas escolares das crianças”, me responderam. “Que otimismo!”, pensei, contente.
Os filhos, ou os irmãos dos terroristas serão marcados para a vida toda. Enquanto durar a ocupação militar, não terão o direito de deixar o país, de se deslocar de uma cidade para outra, de estudar em outro lugar, de visitar seus parentes na cadeia. Nos últimos anos, as famílias de presumíveis terroristas foram deslocadas por medida punitiva. Faz agora três anos, desde que teve início a nova Intifada, que todas a cidades e todos os vilarejos palestinos dos territórios ocupados são submetidos a cercos e toque de recolher completos, e os tanques israelenses entram e saem destas localidades como bem entendem. As crianças palestinas praticam um esporte inédito que consiste em escalar colinas, montanhas e todos os obstáculos erguidos por Israel para impedir a passagem de uma cidade ou de um vilarejo para outro. Se esta disciplina existisse nos Jogos olímpicos, os palestinos ganhariam, sem dúvida, a medalha de ouro..
Uma bomba, dezesseis crianças…
Para as jovens gerações judias, todos os árabes devem ser banidos. Nos muros de nossas cidades pode-se ler: “Fora os árabes” ou “Morte aos árabes”
Ariel Sharon está erguendo entre Israel e a Palestina uma “cerca de segurança”, que não é propriamente uma fronteira, pois não corresponde ao traçado das fronteiras de 1967. Trata-se de um muro visando, ao mesmo tempo, criar uma forma de apartheid entre as populações judia e palestina, ao isolar os palestinos, e colocar as terras palestinas ainda não confiscadas pelas colônias judias sob controle do Estado de Israel.
Se o espetáculo das mães palestinas, escalando muros e barreiras, chega a ser divertido, os incidentes trágicos se multiplicam: recentemente, soldados israelenses, com dezoito anos de idade, impediram a uma jovem palestina quase dando à luz de passar um ponto de controle, provocando a morte do bebê.
A opressão e a humilhação pesam a cada vez mais. Para poder tratar seu filho, um pai que mora num vilarejo perto de Ramallah terá que andar horas para chegar a um hospital. E que humilhação vai passar esse pai, aos olhos de sua comunidade, quando terá que suplicar aos soldados, nos postos de controle, para que o deixem passar? Que imagem terão os filhos de seus pais?
Sem falar do assassinato de jovens, como o de uma criança de dez anos que foi morta, perto de um posto de controle à saída de Jerusalém, por um soldado em quem havia jogado uma pedra, ou o da bomba de uma tonelada jogada por um avião israelense sobre Gaza (onde a densidade demográfica é a maior do mundo), e que matou dezesseis crianças… O pequeno Mohamed Al-Dura, morto nos braços de seu pai há três anos, não é apenas um símbolo; ele representa uma experiência cotidiana.
Arbitrariedade prevalece sobre justiça
Uma criança palestina de dez anos foi morta, perto de um posto de controle à saída de Jerusalém, por um soldado em quem havia jogado uma pedra
Esta ampla tragédia se deve em parte à grande similaridade entre as duas nações. A um amigo europeu que me perguntava como os soldados podiam diferenciar os judeus dos árabes, sendo que todo o mundo se parece, respondi o que tinha ouvido dizer: “O soldado olha para a pessoa direto nos olhos e, se esta tem os olhos de um judeu, com certeza é árabe.”
Outro dia, na fronteira entre Jerusalém Oriental e Jerusalém Ocidental, vi 150 palestinos de uma certa idade juntos, num jardim público. Vinham da Cisjordânia e não tinham autorização reconhecida pelos israelenses. Certa de poder resolver tudo – enquanto mulher, branca, judia e advogada -, tentei falar com aqueles homens e com os soldados. Estes tinham confiscado as baterias dos telefones celulares e lhes deram ordem de não falar. Permaneceram silenciosos e, de repente, me senti uma idiota, pois eles entendiam a situação bem melhor do que eu: sabiam que me responder lhes custaria caro e que a minha intervenção… não adiantaria nada.
A arbitrariedade imposta pelos soldados e policiais tem muito mais peso do que o sistema jurídico que represento. Lembrei de Primo Levi, dizendo-me que deveria sentir-se feliz por não ter vivido o momento em que outros, os outros, seriam oprimidos por judeus.
Voluntários para a morte
A ex-primeira-ministra israelense Golda Meir afirmou, provocando um escândalo, que a demografia acelerada dos palestinos lhe causava pesadelos. No dia 29 de agosto, o Knesset (parlamento) aprovou um projeto de lei prevendo que em caso de “casamento entre um israelense e uma palestina dos territórios ocupados, a esposa não terá o direito de vir para Israel e qualquer criança que nasça dessa união e que não seja registrada durante o primeiro ano após o nascimento não constará nos registros israelenses”. Vimos tentando com todas as nossas forças lutar contra esta política de diferenciação, ousemos a palavra: racista.
Lembro-me de Primo Levi, dizendo-me que deveria sentir-se feliz por não ter vivido o momento em que outros, os outros, seriam oprimidos por judeus
Como não mencionar os autores de atentados suicidas? São filhos palestinos desta guerra. Conheço aqueles que não morreram, represento-os, e conheço os que morreram. Não nos enganemos: eles não se entregam à morte pelas setenta virgens que lhes seriam prometidas uma vez tornados shahid, nem porque tenham sofrido lavagem cerebral.
Se estes jovens, egressos de todas as camadas da sociedade, se candidatam a voluntário para morrer, é porque sentem um imenso desespero: têm o sentimento de ter muito pouco a perder e, talvez, alguma glória a ganhar. O que dizer de uma sociedade – como a palestina – que produz crianças prontas para morrer, ou que – como a nossa – distila um grupo clandestino de colonos capazes de colar um carro-bomba perto de uma escola de meninas palestinas em Jerusalém?
As vítimas e a “vitimologia”
Matar as crianças, é uma obsessão! Desde a última Intifada, 700 palestinos e 100 israelenses com menos de dezesseis anos perderam a vida. Nos últimos três anos, o exército e os colonos israelenses mataram 382 crianças palestinas, e 79 crianças judias morreram.
Atualmente, ser uma criança israelense em Israel parece um pesadelo. A gente tem medo de pegar o ônibus, de ir ao mercado ou à casa de um amigo; antes de entrar onde quer que seja, é revistado por guardas. E tem aquele amálgama insano, contra o qual me ergo, entre a lembrança do holocausto (“o mundo detesta os judeus, sempre fomos vítimas”) e a nova “vitimologia” israelense (“somos vítimas, pois os palestinos nos matam”).
Vimos tentando com todas as nossas forças lutar contra uma política de diferenciação, de segregação, ousemos a expressão: uma política racista
A comparação não é aceitável: no passado, fomos vítimas, mas nos dias de hoje somos nós quem fazemos os outros de vítimas. Após 36 anos de ocupação, uma segunda geração de colonos nos territórios ocupados fala em nome da Bíblia: “Como podem nos desenraizar de nossa nova pátria?” Logo após 1967, os jovens soldados se perguntavam: “Temos o direito de conquistar as terras de outro povo?” Atualmente, não se fazem mais perguntas, na prática. Todos os jovens soldados de dezoito anos estão contaminados. Não tem um que não tenha sido colocado num posto de controle, não tem um que não tenha acordado pelo menos uma vez uma família em plena noite para vir prender alguém.
“Vocês vão ganhar”
Uma pequena minoria, que vem aumentando aos poucos, se recusa a fazer o serviço militar nos territórios ocupados. Um número cada vez maior de israelenses pensa: “Eu não quero me envolver nisso.” Nossa outra esperança vem dos pais, esses heróicos pais palestinos que, apesar da ocupação, não ensinam o ódio aos seus filhos, não os autorizam a considerar todos os israelenses como demônios, falam das diferenças entre israelenses, ensinam os filhos a julgar as pessoas em função de seus atos, e não em função do que são, ou de sua origem.
Eu gostaria de dizer às mães palestinas: “Sejam pacientes, sejam otimistas, um reconhecimento mútuo é possível, já conseguimos o da Organização da Libertação da Palestina (OLP). Hoje em dia existe no mundo – o que não era o caso em 1967 – um consenso favorável à criação de um Estado palestino ao lado de Israel. Preparem a próxima geração, pois o futuro é portador de uma promessa.”
Às mães israelenses que lutam pela paz, gostaria de lembrar que elas ganharam uma guerra e que devem continuar. A organização das Quatro Mães, em alusão às mães da Bíblia, já conseguiu que o exército israelense se retire do Líbano. [?] Outra organização, a das Mulheres de Preto, protesta semanalmente, há vinte anos, contra a ocupação. E eu lhes digo: “Vocês vão ganhar”.
“Não levante a mão contra a criança?”
Escolhendo a paz ao invés do ódio, Nourit Peled criou uma organização que reúne palestinos e israelenses vítimas do terrorismo e que luta pela paz
Existe também um grupo de mulheres israelenses que vigia os postos de controle rodoviários onde atrocidades são cometidas. Elas vão de manhã e de tarde, e ficam perto dos soldados, seus filhos, dizendo-lhes, assim como aos palestinos: “Nós não temos nada a ver com este racismo, somos contra.”
Nourit Peled, cujo pai era general e ocupava um cargo importante, milita pela paz. Sua filha, uma adolescente, foi morta no centro de Jerusalém durante um atentado suicida cometido por um adolescente palestino. Escolhendo a paz ao invés do ódio, ela criou uma organização que reúne palestinos e israelenses vítimas do terrorismo e que luta pela paz.
Quando recebeu o prêmio Sakharov da paz, em 2001, Nourit Peled mencionou Abraão perante o Parlamento europeu, o pai mitológico de Isaac e Ismael, símbolo das duas nações. Abraão queria sacrificar Isaac para demonstrar a Deus sua confiança total, mas Deus o proibiu sacrificar seu filho e deu-lhe uma cabra em seu lugar