Em nome da pátria e do poder
Quase um ano depois do 11 de setembro, a abulia política que engessou os democratas no Congresso parece ter contaminado a esquerda norte-americana, para quem o discurso patriótico de Bush é “admirável”, “sério” e “realista”Daniel Lazare
De importância secundária, o incidente, no entanto, foi esclarecedor. No dia 28 de fevereiro, diante dos jornalistas, o senador democrata Tom Daschle, líder da maioria, afirmava “ter necessidade de compreender melhor” para que serviria o aumento do fundo que ele e seus colegas deveriam alocar à cruzada antiterrorista do presidente George W. Bush. Engajado na preparação da guerra contra o Iraque, o presidente dos Estados Unidos parecia considerar que o conflito no Afeganistão estava definitivamente encerrado. Entretanto, observava Daschle, alguns objetivos permaneciam em suspenso, e em especial a captura de Osama bin Laden que, originalmente, motivara essa guerra. Os norte-americanos não “estarão em segurança enquanto não tivermos destruído a Al-Qaida, e ainda não o conseguimos”, acrescentou.
Por mais moderada que fosse essa declaração, era a primeira vez que os dirigentes democratas do Congresso ousavam questionar a política de guerra da Casa Branca. A resposta dos republicanos não se fez esperar. O representante de Virgínia, Thomas M. Davis III, acusou Daschle de “apoiar e incentivar nossos inimigos”. Por sua vez, Trent Lott, líder da minoria no Senado, ficou irritado: “Como ousa o senador Daschle criticar o presidente Bush no momento em que travamos nossa guerra contra o terrorismo e, sobretudo, quando nossos soldados estão lutando? Ele não deveria tentar dividir nosso país quando todos estamos unidos.” Outro parlamentar influente, Tom Delay, que exibe no gabinete chicotes de cowboy para simbolizar sua autoridade, resumiu numa palavra a opinião de seus amigos da Câmara dos Deputados: “Nojento.”
As aventuras militares de Bush
Esquecendo décadas de luta pela salvaguarda das liberdades civis, o Congresso cedeu à pressão da Casa Branca e aprovou o USA Patriot Act
E qual seria a reação de Daschle a críticas tão violentas e exacerbadas contestando seu direito de expressar uma opinião diferente daquela da Casa Branca? Algumas horas mais tarde, sua assessoria divulgava um comunicado negando que ele tivesse, minimamente, questionado o presidente. “Houve quem preferisse ver nas declarações do senador Daschle sobre a guerra contra o terrorismo, feitas esta manhã, uma crítica contra o presidente Bush. Na verdade, a declaração […] não contém crítica alguma ao presidente ou à sua campanha contra o terrorismo.” O apoio democrata à ampliação da campanha militar continuava incontestável.
Um observador pouco informado poderia, com certeza, ser desculpado por acreditar no contrário, mas o debate político não está completamente morto em Washington. Na realidade, os democratas do Congresso se contentam em criticar o governo a respeito de seus vínculos com a Enron ou seus projetos de exploração de petróleo no Ártico. No entanto, desde a guerra do Vietnã, parecia estabelecido que o Congresso deveria examinar escrupulosamente as aventuras militares da Casa Branca no exterior. Ora, o presidente Bush anunciou sua intenção de começar a guerra em cerca de sessenta países contra supostos agentes da Al-Qaida, e sem submetê-la ao poder legislativo1.
Liberdades civis no lixo
Setenta imigrantes – asiáticos e muçulmanos – continuam presos sem serem acusados de qualquer infração mais grave do que o visto de permanência vencido
Além do que, mesmo que, mesmo tendo o Congresso autorizado o presidente a utilizar “todos os meios necessários e adequados” contra os responsáveis pelo atentado ao World Trade Center em meados de setembro, Bush reagiu declarando virtualmente a guerra a três países – Iraque, Irã e Coréia do Norte (o “Eixo do Mal”) – que não tinham qualquer ligação com os acontecimentos do dia 11 de setembro. E, esquecendo décadas de luta pela salvaguarda das liberdades civis, o Congresso cedeu à pressão da Casa Branca e aprovou um projeto de lei – o USA Patriot Act – formulado em termos tão gerais que poderia permitir a promotores que acusassem de apoio e cumplicidade ao terrorismo indivíduos que apenas teriam contribuído com obras caritativas ligadas ao Exército Republicano Irlandês ou, na época do apartheid, ao Congresso Nacional Africano (ANC) 2.
No entanto, com exceção de alguns parlamentares de pouca influência, os democratas do Congresso não reagiram. A decisão do governo de não aplicar a Convenção de Genebra aos membros da Al-Qaida presos em Cuba, no “Campo X-Ray” de Guantanamo, provocou fortes controvérsias no exterior, mas pouca reação nos Estados Unidos. Nenhum dirigente democrata tomou a defesa dos quase setenta imigrantes originários do Sul da Ásia e do Oriente Médio, detidos por ocasião do atentado contra as Torres Gêmeas sem serem acusados de qualquer infração mais grave do que o visto de permanência vencido.
Velhas tendências conservadoras
O mesmo ocorre com a proposta do governo de submeter a julgamento em tribunais militares de exceção os supostos terroristas ou com sua decisão de se reservar o direito de manter presos indefinidamente, mesmo que sejam absolvidos, os membros da Al-Qaida. Tudo isso foi acatado pelo Congresso num silêncio quase total. Os democratas nem sequer se dignaram a comentar a reportagem publicada no New York Times sobre um presídio horroroso em Shibarghan (Afeganistão), dirigido por tropas favoráveis aos norte-americanos, espécie de campo da morte para os 3 mil talibans presos3.
Como diziam os ingleses durante a II Guerra Mundial, a política foi suspensa “até segunda ordem” – e o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, advertiu que a guerra contra o terrorismo poderia durar tanto quanto a Guerra Fria. Os Estados Unidos estão longe de ser uma ditadura. Mas, nesse país, a atmosfera é mais conformista e mais autoritária do que teria sido possível imaginar antes do dia 11 de setembro.
Nos Estados Unidos, a atmosfera é atualmente mais conformista e mais autoritária do que teria sido possível imaginar antes do dia 11 de setembro
O que aconteceu? Os atentados contra o World Trade Center e o Pentágono reforçaram tendências já presentes na política norte-americana desde 1978-1979. Desde essa data, que precedeu a eleição de Ronald Reagan para a Casa Branca, uma espetacular guinada à direita manipulou a sociedade norte-americana. Mesmo quando perdiam as eleições, os republicanos saíam de cada novo confronto mais fortes e mais confiantes, ao passo que os democratas ora buscavam compromissos com os conservadores, ora se esforçavam por disputar com eles o espaço mais à direita (abolição da ajuda federal aos pobres4).
A onda avassaladora de patriotismo
A derrota democrata agravou-se em dezembro de 2000, quando Albert Gore decidiu não discutir a sentença do Supremo Tribunal (controlado pelos republicanos) proclamando a vitória eleitoral de Bush. E o desmoronamento ocorreu quando, em seguida ao 11 de setembro, os líderes democratas do Congresso anunciaram o advento de uma nova era de “bipartidarismo” e declararam que, por conseqüência, não haveria nem sombra de diferença entre eles e o presidente quanto à cruzada internacional contra o terrorismo.
O desabamento das Torres Gêmeas num furacão de poeira e entulho quase pode servir como metáfora para o declínio da democracia norte-americana. Na avassaladora onda de patriotismo que se seguiu ao atentado – em poucos dias as bandeiras estreladas apareceram em todas as vitrinas de Nova York e nos carros, táxis e caminhões -, tornou-se quase impossível considerar a idéia de que a política norte-americana poderia ter estimulado o terrorismo ou, simplesmente, contribuído para a vaga de “antiamericanismo” no exterior. O veredicto pareceu unânime: os Estados Unidos não podiam ser culpados; não eram absolutamente responsáveis por isso; qualquer declaração em sentido contrário equivalia a tomar o partido do inimigo.
Esquerda lisonjeia clima patriótico
Os atentados contra o World Trade Center e o Pentágono apenas reforçaram tendências já presentes na política norte-americana desde 1978-1979
No Texas, um jornalista foi demitido por haver constatado que, depois do atentado, Bush tinha “voado de um extremo ao outro do país, como uma criança assustada”, enquanto o animador de um talk-show de televisão ficava praticamente fora do ar por ter chamado a atenção para o fato de que, gostando ou não Bush, “covarde” era a palavra menos apropriada para classificar homens que lançam um avião cheio de combustível contra os flancos de edifícios gigantescos. O presidente era corajoso e os terroristas eram covardes, ponto. Em dezembro, durante uma cerimônia de entrega de diplomas universitários na Califórnia, dez mil pessoas vaiaram um orador que ousara sugerir que a cruzada antiterrorista poderia ferir as liberdades civis5.
É evidente que a maioria dos países teria reagido violentamente a um ato tão sangrento e niilista quanto a destruição do World Trade Center. No entanto, dirigentes políticos e intelectuais – inclusive de esquerda – optaram por lisonjear as mais perigosas tendências norte-americanas. Uma coisa é ouvir George Bush afirmar que quem não gosta dos Estados Unidos é um ser mau, uma vez que a América defende “a liberdade e a dignidade de cada vida6“. Outra coisa é ver membros da intelligentsia de esquerda acusarem os mais críticos que eles de se regozijarem com a dor dos norte-americanos tão somente por ousarem sugerir que o imperialismo dos Estados Unidos poderia ter aberto o caminho para Bin Laden.
Hitler, Stalin… e Bin Laden
Esses patriotas de esquerda adotaram uma dupla estratégia. Depois de terem declarado que o terrorismo era a própria essência do mal, e que quem não admitisse isso de imediato era um deficiente moral, um covarde e um defensor da Al-Qaida, destacaram o caráter reacionário do fundamentalismo islâmico para melhor demonstrar a natureza progressista da sociedade norte-americana. Os Estados Unidos eram detestados porque eram livres e dinâmicos demais. Seu verdadeiro erro era o de serem bons demais. Combatendo-os, Bin Laden atacava a liberdade, o individualismo e todas as coisas excelentes que os Estados Unidos defendiam, eventualmente por meio de sofisticadas bombas7 de várias toneladas que atingem, por engano, inúmeros civis inocentes.
Na onda de patriotismo que se seguiu ao atentado, tornou-se quase impossível pensar que a política norte-americana poderia ter estimulado o terrorismo
Um mês depois do dia 11 de setembro, Paul Berman – membro do Conselho Editorial da revista social-democrata Dissent, feliz ganhador dos 260 mil dólares do prêmio Genius da Fundação MacArthur e admirador do “novo filósofo” André Glucksmann – publicou um texto em que explicava que a Al-Qaida era um produto do totalitarismo do século XX e que Hitler, Stalin e Bin Laden partilhavam o mesmo ódio contra o liberalismo ocidental tal como era magistralmente encarnado pelos Estados Unidos. Para Berman, “O crime dos Estados Unidos, seu verdadeiro crime, é justamente o fato de serem os Estados Unidos. Este crime consiste em respirar o dinamismo de uma cultura liberal em eterna evolução. […] O crime dos Estados Unidos é o de demonstrar que as sociedades liberais podem prosperar, ao passo que as sociedades antiliberais não podem. É isso que atiça a fúria dos movimentos antiliberais. Os Estados Unidos devem agir com prudência no Oriente Médio e, aliás, em toda parte, mas nenhuma prudência poderá evitar esse tipo de hostilidade8.”
Edward Said, persona non grata
Embora admitindo que nem tudo que os Estados Unidos fazem é admirável, Berman afirma que seus delitos não explicam nada no caso particular, porque são seus sucessos democráticos que alimentam o ressentimento no Oriente Médio. Nenhuma reforma da política externa poderá, pois, abrandar a hostilidade árabe – um raciocínio que satisfaz plenamente os partidários do statu quo: por que mudar a política dos Estados Unidos se esses povos se queixam de tudo que acontece? Por que, então, deixar de apoiar a política israelense nos territórios ocupados ou o boicote que atinge o Iraque?
Uma declaração bastante anódina de Edward Saïd deu a outro intelectual de esquerda, Todd Gitlin, autor de um livro famoso que avalia favoravelmente o radicalismo estudantil da década de 60, a oportunidade de se lançar a uma crítica feroz contra o escritor de origem palestina. Fustigando o “horror espetacular” e a “destruição absurda” que haviam atingido Nova York, Edward Saïd também chamava a atenção para o fato de que o atentado não se produzira ex nihilo, já que os Estados Unidos estão “quase permanentemente em guerra, ou engajados em todo tipo de conflitos, por toda parte nas terras islâmicas9“. Todd Gitlin ofendeu-se com essa observação e respondeu na revista liberal, mensal, Mother Jones: “Como se os Estados Unidos sempre procurassem a briga; como se o apoio norte-americano ao processo de paz de Oslo, quaisquer que sejam seus limites, pudesse ser varrido com um gesto de mão; como se defender os muçulmanos na Bósnia e em Kosovo lembrasse a política do canhão praticada no Vietnã e no Camboja10.”
O “crime” de Noam Chomsky
No Texas, um jornalista foi demitido por dizer que, depois do atentado, Bush tinha “voado de um extremo ao outro do país, como uma criança assustada”
Christopher Hitchens, editorialista do semanário de esquerda The Nation, interveio no mesmo tom, desta vez para estigmatizar Noam Chomsky. Este havia cometido a imperdoável ofensa de condenar a natureza profundamente reacionária do fundamentalismo islâmico, mas acrescentando que a CIA e seus aliados haviam, anteriormente, recrutado Bin Laden para lutar contra os soviéticos no Afeganistão e, depois, para colaborar em inúmeras operações terroristas na Rússia e nos Bálcãs. Por outro lado, o tratamento dado aos palestinos por Israel, aliado dos Estados Unidos, e o boicote norte-americano contra o Iraque haviam alimentado a onda de partidários da Al-Qaida. Em outros termos, não era apenas a democracia norte-americana que estava em discussão, mas também as ações lamentáveis e a política de Gribouille11 dos Estados Unidos.
Christopher Hitchens ficou indignado com esse tipo de enfoque: “Os piromaníacos de Manhattan representam o fascismo com rosto islâmico e nenhum eufemismo deve ocultar esse fato. As cantilenas fáceis do tipo ?Bem feito para nós? são um tanto parecidas com as indecências odiosas proferidas por Falwell e Robertson [dois pregadores protestantes que interpretaram o 11 de setembro como a punição divina pela imoralidade dos Estados Unidos (aborto, homossexualismo)] e revelam a mesma profundidade intelectual. Qualquer leitor desse semanário teria podido estar num dos aviões, ou num dos edifícios, sim, e até no Pentágono12.” Tentar entender o que havia acontecido significava solidarizar-se com os autores do atentado; era preferível solidarizar-se com Bush e perceber o “fascismo islâmico” somente em termos metafísicos.
A cruzada patriótica de Michael Walzer
A célebre declaração do presidente Bush do dia 20 de setembro de 2001 (“Cada país de cada região do mundo deve, a partir de agora, tomar uma decisão. Ou vocês estão conosco ou estão com os terroristas”) não teria tido semelhante impacto se membros influentes da intelligentsia não tivessem tido tanta pressa em defender a idéia segundo a qual liberalismo norte-americano e terrorismo são diametralmente opostos. Paul Berman considerou o discurso presidencial “admirável”, “sério em sua apresentação, realista em sua exposição sobre a natureza complexa do inimigo”. Para ele, a solução para o problema do terrorismo “depende [dependia] da possibilidade de realizar amplas mudanças na cultura política do mundo árabe e islâmico. […] É uma transformação que [exigirá] um arsenal de ações por parte do mundo liberal – operações militares e de comando, a manutenção permanente da ordem, pressões econômicas e muitas outras coisas ainda13“.
Os patriotas de esquerda adotam uma dupla estratégia: dizem que o terrorismo é essência do mal e destacam o caráter reacionário do fundamentalismo islâmico
Analisado como um produto exclusivo do Oriente Médio, cabia ao Ocidente aniquilar o terrorismo por meio de pressões econômicas e militares. Co-editor de Dissent, Michael Walzer afirmou, por exemplo, depois do dia 11 de setembro, que aquilo que tornava o terrorismo tão especificamente mau – e, portanto, absolutamente contrário aos valores liberais ocidentais – era sua propensão em atingir os civis inocentes. Civis que, para Walzer, tinham, “absolutamente, todo o direito de esperar viver por tanto tempo quanto todos os que não estão envolvidos ativamente numa guerra, numa escravidão, numa limpeza étnica ou na repressão política brutal. Chama-se a isso imunidade do não-combatente, princípio fundamental não só da guerra, mas de toda política digna. Quem o esquece não só busca desculpas para o terrorismo, como também já passou para o lado dos partidários do terror14” Para Walzer, amplos setores da esquerda norte-americana pensam que Bin Laden, pelo fato de ter destruído um símbolo mundialmente reconhecido da predominância econômica norte-americana, seria seu aliado na luta anticapitalista.
Robert Fisk, um esquerdista louco
Mas quem são esses esquerdistas loucos o bastante para confundir um milionário fundamentalista saudita com um aliado da causa progressista? Quando lhe pedimos que indicasse um desses militantes perversos, Walzer citou Robert Fisk, correspondente do diário The Independent de Londres. Pouco depois do 11 de setembro, num artigo publicado por The Nation, Robert Fisk observava que não era realista por parte dos Estados Unidos imaginarem que poderiam continuar eternamente protegidos da violência em seu próprio território depois de terem apoiado inúmeras ações violentas no Oriente Médio.
“Perguntem a um árabe”, escrevia Fisk, “como reage à morte de milhares de inocentes e ele – ou ela – responderá, como qualquer pessoa digna de respeito, que se trata de um crime abominável. Mas também perguntará por que não utilizamos os mesmos termos para classificar as sanções que mataram cerca de 500 mil crianças iraquianas, e por que não nos revoltamos diante da invasão do Líbano por Israel, em 1982, durante a qual 17.500 civis foram mortos15.” Mais que de malevolência, tratava-se, pois, de tentar lembrar que os adversários dos Estados Unidos não são simplesmente invejosos de seu liberalismo político ou de sua potência econômica e que alguns ficam chocados com os aspectos menos respeitáveis de sua política externa.
Debate limitado ao permitido
Admitindo que nem tudo que os EUA fazem é admirável, Paul Berman afirma que são seus êxitos democráticos que alimentam o ressentimento no Oriente Médio
A relação entre esse debate intelectual e a ausência de contestação parlamentar é difícil de ser separada. Uma escola de pensamento considera que os membros do Congresso ridicularizam o que pensam os intelectuais; estariam exclusivamente preocupados com seus eleitores e com alguns patrocinadores políticos de quem cobiçam o dinheiro para a campanha de reeleição. Mas a política norte-americana não é tão prosaica assim. Na ausência de um verdadeiro sistema de partidos, os think tanks, os lobbies e os jornais intelectuais são mais importantes do que se pensa. Formulam as questões políticas antes que cheguem ao Congresso. É por isso que os partidários de Bush trabalharam com tanto afinco para conter o debate dentro de limites que garantissem que dele não sairia senão o que lhes conviesse, que certas perguntas seriam apresentadas e outras não. A verdadeira natureza do terrorismo, a manipulação por parte dos Estados Unidos de personagens como Bin Laden, a história do apoio norte-americano ao fundamentalismo islâmico – são muitos os temas excluídos do debate.
Ainda que o 11 de setembro tenha abalado o sistema político norte-americano, a ordem ideológica foi prontamente restaurada. Entretanto, o comportamento do presidente, nos dias seguintes ao atentado, não fora tranqüilizador. Quanto mais se deixava levar pela retórica machista, fustigando criminosos que queria “vivos ou mortos”, e se preparava para “fazê-los saírem” de seu “covil”, mais ele parecia uma “criança assustada”. Mas bastou que Bush fizesse uma aparição convincente na televisão, no dia 20 de setembro, para que as personagens importantes da política e os jornalistas dominantes respirassem aliviados. O chefe estava de volta ao comando. Num sistema baseado numa crença quase religiosa na presidência e na Constituição, a fé estava restaurada. O debate sobre a necessidade de responder militarmente ao ataque foi abafado. O exame do papel dos Estados Unidos na criação da Al-Qaida foi desestimulado. Mais: o único tema de controvérsia admitido foi o de saber se os Estados Unidos deveriam contentar-se com a guerra contra o Afeganistão ou estendê-la a outros países. E mesmo sobre este ponto o debate foi controlado.
Um “tigre de papel”
O mesmo iria ocorrer com a recente “Revisão da posição nuclear” do Pentágono, relativa ao uso de armas nucleares táticas contra potências não-nucleares, tais como o Iraque, o Irã e a Coréia do Norte. A nova posição constitui uma reviravolta da política norte-americana sobre a questão e torna mais provável o uso de armamento nuclear tático nos próximos anos. Depois de ter investido bilhões de dólares na fabricação de ogivas nucleares capazes de destruir um edifício fortificado, enterrado dezenas de metros abaixo do solo, o Pentágono poderá resistir à tentação de utilizar tais engenhos?
Também a esse respeito o Congresso permaneceu calado. Embora a senadora democrata da Califórnia, Dianne Feinstein, tenha lamentado a pressa em encontrar novos usos para o arsenal nuclear norte-americano, Thomas Daschle, por sua vez, recusou-se a comentar a posição do Pentágono. Um outro senador democrata, Robert Graham, presidente do Comitê do Senado sobre a Informação, tomou o partido do Pentágono e acrescentou que alguns “grupos e países que combatem os interesses norte-americanos imaginaram que os Estados Unidos eram um tigre de papel”. Por esta razão, a nova política “parece dar um passo na direção certa16“. Provar que os Estados Unidos não eram um tigre de papel podia valer a utilização de algumas armas nucleares.
Do duque de Liancourt a William Clinton
Christopher Hitchens, do jornal The Nation, ficou indignado com Noam Chomsky, que ousou dizer que a CIA e seus aliados haviam recrutado Bin Laden
Quanto mais os Estados Unidos se mobilizam em favor da guerra, mais o povo norte-americano deve ser convencido a limitar sua visão do mundo a um conflito entre o bem e o mal, entre o liberalismo ocidental e o terrorismo islâmico ou, de modo ainda mais sucinto, a “eles” e “nós”. A nuança, o equilíbrio e o sentido da reciprocidade não têm mais razão de ser. A vontade de apreender o mundo a partir de diferentes pontos de vista deve igualmente ser sacrificada a fim de que um só ponto de vista prevaleça. E quem questionar este ponto de vista deve ser denunciado por ter tomado o partido dos terroristas e ser excluído da comunidade dos fiéis.
Se todos os Estados-nação institucionalizam o egocentrismo nacional, isso é particularmente verdadeiro nos Estados Unidos. Pode-se dizer que os Estados Unidos só têm como vizinhos potências militares insignificantes – ao Norte e ao Sul – e peixes – a Oeste e a Leste. Se o país negligencia a opinião pública internacional, também existe uma razão ideológica para tal. Os Estados Unidos, em última instância, se auto-inventaram. A Constituição dos Estados Unidos, praticamente inalterada desde sua redação em 1787, é um documento utópico que tenta reduzir a política a alguns princípios eternos que, uma vez adotados, transformarão os Estados Unidos na “união cada vez mais perfeita” mencionada no preâmbulo17.
Disso decorrem várias coisas relativas à maneira como os Estados Unidos se consideram e avaliam seu lugar no mundo. Por serem justos seus princípios fundadores, o dever das gerações que virão é velar para que sejam eternamente confirmados. Por serem morais, os Estados Unidos serão incapazes de fazer o mal enquanto esses princípios forem aplicados conscienciosamente. Por conseqüência, os estrangeiros que aderem a princípios diferentes devem ser lastimados ou censurados. Como salientava um viajante europeu, o duque de Liancourt, os norte-americanos estavam convencidos, desde 1790, “de que nada de bom se faz e de que ninguém é dotado de um cérebro em qualquer outro lugar fora dos Estados Unidos; de que o espírito, a imaginação, o gênio da Europa já se tornaram decrépitos18“. Dois séculos mais tarde, o presidente William Clinton não dizia outra coisa: “Não há nada de ruim nos Estados Unidos que não possa encontrar remédio no que os Estados Unidos têm de bom.” Por que, então, procurar em outros lugares?
Fazer justiça, o único debate político
No dia 11 de setembro, a Al-Qaida não só matou três mil pessoas, como também desencadeou uma reação política em cadeia cujas grandes linhas eram mais do que previsíveis. Para a maioria dos norte-americanos, Bin Laden e seus partidários não só declararam guerra aos Estados Unidos, como também atacaram os princípios eternos de justiça e de liberdade encarnados pelos Estados Unidos e que estão na origem de sua grandeza. Tendo atingido a comunidade espiritual norte-americana, devem ser perseguidos e destruídos. O presidente Bush explicou isso em seu discurso de Atlanta, no dia 31 de janeiro de 2002: “Se vocês não prezarem, no mais fundo de seus corações, nossos valores mais caros, então também vocês estarão em nossa lista […] Alguns se perguntam o que isto significa. Significa que fariam bem em cuidar de sua casa. Eis o que isto significa. Significa que fariam bem em respeitar a lei. Significa que fariam bem em não aterrorizar os Estados Unidos e nossos amigos e aliados. Ou então a justiça deste país será igualmente aplicada a eles”.
Quase um ano após o 11 de setembro, o debate político e intelectual nos Estados gira em torno de uma única e exclusiva idéia: como ter certeza de que se faz justiça – tal como os Estados Unidos a concebem, naturalmente?
(Trad. Iraci D. Poleti)
1 – Ler, de Philip Golub, “Retour à une présidence impériale aux Etats-Unis”, Le Monde diplomatique, janeiro de 2002.
2 – Cf, de Ronald Dworkin, “The real threat to US values”, The Guardian (Londres), 9 de março de 2002. Ler também, de Michael Ratner, “Les libertés sacrifiées sur l’autel de la guerre”, Le Monde diplomatique, novembro de 2001.
3 – Ler, de Dexter Filkins, “Marooned Taliban Count Out Grim Hours in Afghan Jails”, The New York Times, 14 de março de 2002.
4 – Ler, de Serge Halimi, “Les simulacres de la politique américaine”, Le Monde diplomatique, fevereiro de 1996; e, de Loïc Wacquant, “Quand le président Clinton ?réforme? la pauvreté”, Le Monde diplomatique, setembro de 1996.
5 – Ler, de Timothy Egan, “In Sacramento, a Publisher’s Question Draws the Wrath of the Crowd”, The New York Times, 21 de dezembro de 2001.
6 – Discurso do dia 29 de janeiro de 2002, sobre a situação da União.
7 – N.T.: No original, em francês, bombes à effet de souple. Trata-se de um tipo de bomba que provoca uma onda de choque, sob pressão. Tem um raio de ação bastante grande e é mortal a curta distância. Foi utilizada pelos norte-americanos no Afeganistão, na região de Tora Bora.
8 – Ler, de Paul Berman, “Terror and Liberalism”, The American Prospect, 22 de outubro de 2002.
9 – Ler, de Edward Saïd, “Islam and the West are inadequate banners”, The Observer, Londres, 16 de setembro de 2001.
10 – Ler, de Todd Gitlin, “Blaming America First”, Mother Jones, janeiro-fevereiro de 2002.
11 – N.T.: Gribouille: nome de uma personagem ingênua e atrapalhada. Aplica-se a uma pessoa ingênua e mal informada que se lança estupidamente em problemas e dificuldades que queria evitar.
12 – Ler, de Christopher Hitchens, “Against Rationalization”, The Nation, 8 de outubro de 2001. O ponto de vista de Noam Chomsky foi expresso em “Terrorisme, l?arme des puissants”, Le Monde diplomatique, dezembro de 2001.
13 – Ler, de Paul Berman, “Terror and Liberalism”, op. cit.
14 – Ler, de Michael Walze