Em nome do patrimônio mundial
A Organização das Nações Unidas para as Ciências, a Educação e a Cultura (Unesco) lança este mês uma campanha para a salvaguarda e proteção do patrimônio mundial. A lista de lugares e monumentos considerados “em perigo”, não cessa de crescerRoland-Pierre Paringaux
Foi em 1972 que a Unesco adotou a Convenção relativa à proteção do patrimônio mundial, cultural e natural, ratificada, até hoje, por 173 países1. Desde então, o conceito de patrimônio evoluiu. Limitado, durante um período, aos monumentos obras-primas da arquitetura, propriedades do Estado, e às reservas naturais virgens, estendeu-se dos centros urbanos históricos ao patrimônio industrial, passando por paisagens culturais e por vastas reservas de biodiversidade, inclusive áreas submarinas2.
A maioria dos poucos 730 locais inscritos no grande registro do Patrimônio Mundial, e simbolicamente pertencentes a toda a humanidade, continua fundamentalmente muito bem protegida. Mas outros, que não são menores – os templos de Angkor (Camboja), as ilhas Galápagos (Equador), o vale de Katmandu (Nepal), o parque de Yellowstone (Estados Unidos), os sítios arqueológicos do Peru e outros menos célebres – foram atingidos em graus diversos e por diversas razões.
A ameaça das guerras
A maioria dos 730 locais inscritos no Patrimônio Mundial, e simbolicamente pertencentes a toda a humanidade, continua fundamentalmente bem protegida
Poluição, pilhagem, guerra, caça sem permissão e excesso de turismo, uns vítimas da pobreza e da violência, outros da degradação de seu ambiente. E também de um desconhecimento do patrimônio e de uma falta de recursos para que sejam respeitados. Uma tomada de consciência ainda mais difícil porque algumas políticas que afetam o patrimônio e o meio ambiente (por exemplo, a das grandes barragens) foram realizadas em nome do desenvolvimento. Além disso, apesar das alianças entre os Estados e dos esforços do Centro do Patrimônio Mundial da Unesco, encontramos lugares “em perigo” em todos os continentes. Seu desaparecimento constituiria, por definição, um empobrecimento não só para as regiões e populações dos países em que se encontram, mas também para toda a humanidade. Oficialmente, são cerca de vinte. Mas todos sabem que devido a manobras políticas, outros não menos ameaçados, não figuram na lista.
Evidentemente, a pior das ameaças é a guerra. Aliás, foi logo depois da de 1914-1918 que a idéia de uma ação internacional de proteção do patrimônio começou a se desenvolver. Em seguida, os conflitos mortais e seus “danos colaterais” sobre o patrimônio ou em outros lugares não faltaram. Ontem, na tormenta dos Bálcãs, as “vítimas” eram a cidade de Dubrovnik e a ponte de Mostar, duas raridades de muito valor3. Poucos anos depois, a guerra civil e a pilhagem ameaçaram gravemente o conjunto monumental de Angkor, no Camboja. As coisas andam melhores, mas os templos devem, a partir de agora, enfrentar as ofensivas do turismo de massa.
A proteção do Mont Saint-Michel
A tomada de consciência é difícil porque algumas políticas que afetam o patrimônio e o meio ambiente são adotadas em nome do desenvolvimento
Conflitos comunitários e intolerância religiosa, às vezes, agravam a situação, e colocam em risco alguns lugares e monumentos altamente simbólicos. O exemplo mais recente disso foi o ato de dinamitar os budas gigantescos de Bamian (em via de classificação pela Unesco), realizado pelos talibans, em nome de uma concepção intransigente do islamismo. No Afeganistão, todo o patrimônio nacional foi devastado e toda uma cultura pilhada, como o fora também, antes do reinado dos talibans, o museu de Cabul4. Da intervenção soviética às guerras civis, santa e norte-americana, a cólera destruidora dos adversários, o fogo dos canhões e o apocalipse dos B-52 parecem ter feito muito pouco caso do patrimônio.
Em sua agitação cega, o turismo de massa ameaça danificar locais que, muitas vezes, são verdadeiras galinhas dos ovos de ouro: a Acrópole de Atenas; as lagunas de Veneza; o santuário andino de Machu Picchu, no Peru; ou ainda a antiga Petra, na Jordânia; as pirâmides do Egito; o Grande Cânion do Colorado; a Grande Muralha da China; os sítios arqueológicos do México e até a antiga aldeia chinesa de Lijiang, anteriormente perdida ao pé do Himalaia e hoje atacada pelos turistas e pelo vaivém dos aviões.
Em um lugar ou noutro, são tomadas algumas medidas. Mas muitos não têm nem os meios nem a vontade de ir contra a corrente do sacrossanto turismo. Uma medida radical, como a que objetiva proteger o Mont Saint-Michel, ameaçado pela maré dos turistas e dos estacionamentos de automóveis, eliminando a faixa de terra que serve de estrada para ligá-lo ao continente e restabelecendo seu caráter de ilha, continua a ser uma exceção.
Turismo expulsa camponeses
No Afeganistão, todo o patrimônio nacional foi devastado e toda uma cultura pilhada, como o fora também, antes do regime dos talibans, o museu de Cabul
Os locais do patrimônio natural são também muito ameaçados. Com vários milhões de visitantes por ano, o parque de Yellowstone, nos Estados Unidos, esteve próximo da saturação nos últimos anos. A situação é particularmente preocupante nos três parques da África Oriental dotados de amplos espaços, de uma fauna sem igual e de grupos étnicos fotogênicos.
O primeiro caso diz respeito à vasta cratera vulcânica do Ngorongoro, na Tanzânia, que abriga a maior concentração de animais “selvagens” do mundo. Um recente relatório da União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN) indica que algumas espécies animais, especialmente as gazelas e os gnus, diminuíram em 25%, passando de 25 para 19 mil. Ao mesmo tempo, dentro da cratera, as atividades humanas aumentaram sensivelmente. No verão, dezenas de veículos com turistas provocam engarrafamentos ali.
Nas proximidades do local, o aumento da população engajada em atividades agrícolas e turísticas expulsa os massais, de quem as enormes pastagens foram reduzidas ao longo dos anos, para o cultivo de terras até as paredes da cratera. Tudo isso provoca desequilíbrios, diminui os espaços deixados para os animais e transforma o modo de vida dos pastores nômades5.
Ofensiva da pesca industrial
O turismo de massa ameaça danificar locais como a Acrópole de Atenas, as lagunas de Veneza, o santuário andino de Machu Picchu, no Peru, etc…
Igualmente situado na Tanzânia, a oeste do Ngorongoro, encontra-se o parque do Serengeti, famoso pela migração anual durante a qual um grande número de zebras e de gnus atravessam, de maneira muitas vezes dramática, o rio Mara bem cheio por causa das chuvas. Essa migração se vê ameaçada por um projeto de barragem hidroelétrica, que deverá inverter o curso do rio para cima, em território do Quênia, secando ao mesmo tempo seus afluentes, desequilibrando o ecossistema do parque e colocando sua fauna em risco. Por outro lado, o governo do Quênia anunciou, em 2001, a desclassificação das florestas protegidas, que ficam próximas da reserva natural do Monte Quênia, a terceira área do patrimônio mundial em perigo pelo mesmo motivo. 170 mil acres de florestas devem ser entregues ao corte, enquanto a cobertura florestal do Quênia não atinge mais que 10% do território. A Unesco teme, com toda razão, que o local sofra com esses acontecimentos.
Por sua vez, o parque nacional das ilhas Galápagos (Equador) submete-se a uma ofensiva da indústria equatoriana de pesca, que entrou em guerra contra uma lei que reforça a proteção na reserva marinha e impõe quotas. Trata-se fundamentalmente de limitar os massacres de tubarões, de morsas e de focas, dos quais alguns órgãos reputados afrodisíacos são muito estimados pelos chineses. Mas o governo de Quito não tem recursos para controlar uma zona de 133 mil km2.
Devastação pelas imobiliárias
O patrimônio natural também está ameaçado. Com milhões de visitantes por ano, o parque de Yellowstone esteve próximo da saturação nos últimos tempos
Na Rússia, o imenso lago Baikal (23 mil km2) concentra uma série de males, que ameaçam sua própria integridade. Forte poluição, acumulação de substâncias tóxicas, resíduos de águas usadas, mas também multiplicação de centros turísticos em setores ecologicamente sensíveis, derrubada ilegal de florestas, tudo acontece ali. Sem esquecer a caça e pesca ilegal. Segundo pesquisadores, a população de focas, avaliada em mais de 100 mil em 1994, foi reduzida à metade. A isso se somam novas ameaças. O governo deu autorização para explorações de petróleo dentro da área por um período de 25 anos. Uma situação que se torna mais inquietante porque o estado de saúde do lago, visivelmente, não é prioridade para as autoridades.
Votada em 1999, a lei federal sobre o lago Baikal nunca foi acompanhada de decretos que a tornassem operacional; a Comissão Intergovernamental do lago Baikal foi abolida em 2002; enfim, apesar de repetidas reivindicações, o Centro do Patrimônio Mundial registrou poucos progressos. Conseqüentemente, o debate em curso com o objetivo de inscrever o lago Baikal na lista dos lugares “em perigo”. Nos Estados Unidos, a zona dos Everglades, na Flórida, também foi colocada em risco pelas poluições industriais e agrícolas, que provocam uma baixa do nível das águas e reduzem as espécies animais.
Algumas áreas do patrimônio mundial enfrentam perigos bem particulares. É o caso dos arrozais cultivados em diferentes planos de terrenos escarpados da ilha de Luzon, nas Filipinas. Elaborados pelo homem há séculos, são cada vez mais abandonados pelas minorias étnicas que vivem no local, em razão da evolução dos modos de produção. No Peru, o sítio arqueológico de Chan Chan está ameaçado pelas variações climáticas do fenômeno El Niño. Em outros lugares, construções imobiliárias mal colocadas devastam o local e acabam com o panorama. É o caso da Acrópole, do centro histórico de Viena, ou ainda, o Potala, o palácio do Dalai Lama em Lhasa, no Tibete.
As limitações da Unesco
O Parque Nacional das ilhas Galápagos, no Equador, vem sendo submetido a uma ofensiva predatória da indústria equatoriana de pesca
Alguns casos, como o de Luang Prabang, chegam perto do absurdo. Nessa antiga capital real do Laos, à margem do rio Mekong, o Centro do Patrimônio Mundial da Unesco lançou, há vários anos, com a ajuda da cidade histórica de Chinon, da União Européia e da Agência Francesa de Desenvolvimento (AFA), uma operação considerada exemplar para salvaguardar o local histórico e seu ambiente natural (morfologia urbana, arquitetura tradicional, áreas úmidas). Ora, esse trabalho e o próprio local estão ameaçados por um projeto de construção do Banco de Desenvolvimento Asiático, que não parece levar em conta o valor patrimonial da antiga capital.
Na maior parte dos casos, as intervenções do Comitê do Patrimônio Mundial não são fáceis. Na verdade, embora tenha poder para inscrever os locais na lista do patrimônio, o Comitê não pode forçar um Estado soberano a tomar medidas e, menos ainda, intervir na área sem sua concordância. Alguns países fazem inclusive pressão para que a inscrição na lista “em perigo” obtenha o consentimento prévio do Estado interessado! Sendo assim, graças aos novos meios de comunicação, os documentos transmitidos por associações ou particulares que mencionam ataques ao patrimônio chegam, a partir de agora, diretamente aos computadores dos governos e aos da Unesco, que dificilmente podem ignorá-los.
O desafio de proteger o patrimônio
Na Rússia, o lago Baikal concentra uma série de males: poluição, substâncias tóxicas, derrubada de florestas, tudo… Sem esquecer a caça e pesca ilegal
Essa vigilância, junto à força da Convenção de 1972 e às virtudes do diálogo, permitiu, nos últimos anos, descartar ou interromper projetos potencialmente ameaçadores para lugares importantes do patrimônio mundial. É o caso do projeto de uma fábrica nas proximidades do santuário de Apolo, em Delfos, na Grécia; do projeto de uma via de acesso à auto-estrada no planalto de Gizé, nas imediações das pirâmides, no Egito, ou ainda da construção de um complexo imobiliário superdimensionado perto do palácio de Sans-Souci em Potsdam, na Alemanha. Mais recentemente, apesar da guerra civil, o governo do Sri Lanka abandonou um projeto de ampliação do aeroporto militar situado próximo da antiga área de Sigiriya. Na Romênia, um projeto de “Parque Drácula” nas proximidades do centro histórico de Sighisoara, na Transilvânia, recentemente teve o mesmo destino.
Para a comunidade internacional, o desafio que consiste em proteger o patrimônio, sem matar a galinha dos ovos de ouro do turismo, e em transmiti-lo às futuras gerações é enorme. A campanha da Unesco6, que terá início em outubro em várias capitais, por meio de um congresso virtual (www.virtualworldheritage.org), tem como objetivo, nessa perspectiva, colocar cada um dos atores interessados diante suas responsabilidades.
(Trad.: Wanda Caldeira Brant)
1 – A orientação é dada por um Comitê Intergovernamental de 21 Estados, eleitos pela Assembléia Geral. É ele que decide sobre a inscrição dos locais propostos pelos Estados. O secretariado é garantido pelo Centro do Patrimônio Mundial da Unesco.
2 – No total, mais de 730 locais culturais, naturais e mistos, sendo os últimos resultado de uma interação do homem com a natureza.
3 – A ponte de Mostar está em via de reconstrução. Ainda que nova, deverá continuar inscrita no Patrimônio Mundial.
4 – Na década de 1990, a Unesco preparou uma campanha de salvaguarda da cidade afegã de Herat, famosa por seus minaretes de cerâmica. A campanha foi interrompida devido à guerra.
5 – Ler, de Alain Zecchini, ” En pays masaï, la lutte de l?écologiste et du berger “, Le Monde d