Em terra de Ciclopes: reflexões sobre cultura e barbárie no Brasil de hoje
Dados do disque 100 mostram que em 2019 foram registradas mais de 17 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes
Muitos de nós ficamos perplexos ao saber da notícia de que um grupo de fanáticos religiosos tentou invadir um hospital no Recife para protestar e impedir o aborto de uma menina de 10 anos que vinha sendo violentada pelo próprio tio desde os 6 anos. Infelizmente, é preciso dizer que este está longe de ser um caso isolado de abuso sexual infantil e aborto. Dados do Disque 100 mostram que em 2019 foram registradas mais de 17 mil denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes. Some-se um estudo recentemente publicado no Cadernos de Saúde Pública[1], que mostra uma média de 200 mil internações por ano por procedimentos relacionados ao aborto, entre 2008 e 2015, e 770 óbitos com causa básica aborto, entre 2006 e 2015. Uma análise mais desagregada dos dados aponta ainda que as mulheres negras e indígenas, com baixa escolaridade, com menos de 14 e acima dos 40 anos e sem companheiro formam o perfil com maior risco de óbito por aborto.
Contudo, este caso acabou se destacando perante a frieza dos números, assustadores, acima mencionados. Rodas de orações e gritos de “assassino” direcionados ao médico que conduziria a tarefa marcaram o show de horrores cuspido e escarrado em uma enxurrada de vídeos que se espalharam pela internet quase instantaneamente. A falta de empatia e o desejo de eliminação do Outro, do diferente que abala as certezas infundadas em bases racionais, estão por trás da falsa alegação de defesa da vida e da moral cristã exibida pelos fanáticos religiosos no episódio em questão. Aqueles que ainda guardam algum sinal de lucidez assistem atônitos a mais esse sinal de que aquilo que entendemos por cultura e civilidade se aproxima do fim, dando lugar à barbárie.
Momentos como esse trazem em si mesmos o questionamento sobre quais são os elementos que definem a cultura e nos separam do estágio em que nos deixaríamos ser guiados pelos impulsos violentos da natureza e da libido.
Talvez parte da resposta esteja em um retorno ao início da cultura ocidental, na Grécia antiga. Adorno e Horkheimer[2] identificam na Odisseia de Homero – obra que conta a história errante de Ulisses após o fim da Guerra de Tróia em sua travessia por um mundo místico, povoado por deuses e monstros, no seu caminho de volta a Ítaca, à ordem familiar e às leis dos homens – um paralelo com a dominação da natureza e dos impulsos como condição necessária para a entrada do homem na cultura. Assim, a sutil ironia é que Homero, representado como um poeta cego, teria estabelecido as bases da cultura e do mundo contemporâneo calcado na racionalidade e na produtividade.
Uma passagem particularmente interessante se dá quando Ulisses e seus homens desembarcam na terra dos Ciclopes em busca de comida. Como nos lembra Jeanne Marie Gagnebin[3], os Ciclopes eram conhecidos como seres grosseiros, que não dominavam a agricultura, comiam cru, não respeitavam os deuses e não tinham leis. Para Ulisses e seus homens, o respeito às leis estabelecidas pela sociedade estava associado ao respeito aos deuses. Portanto, desrespeitar os deuses e, em particular, Zeus, que derrotou os Titãns instaurando a lei e a ordem, seria um retorno ao caos.
Voltando ao ocorrido do final de semana, sabemos que o crime cometido pelos fanáticos religiosos contra a menina que estava prestes a se submeter a um aborto foi motivado por postagens feitas pela extremista Sara Giromini, que se autointitula Sara Winter. No Brasil de hoje, nada mais precisa ser velado. Logo, estando tudo exposto, não é coincidência a inspiração da extremista: vem de Sarah Winter (1870–1944), com “h”, que foi uma ativista nazista britânica e membro da União Britânica de Fascistas nas décadas de 1920 e 1930. Também não espanta que foi a mesma Sara Winter, agora sem “h”, que há poucos meses liderava um grupo chamado “300 do Brasil”, segurando tochas e proferindo, aos gritos, ameaças contra o STF. Para além da óbvia associação à Ku Klux Klan feita em muitos meios de comunicação, chamo a atenção para a metáfora que revela o sintoma. O uso do fogo nas tochas não é para produzir ou cozer. É como se disséssemos que esse grupo não domina o fogo e come cru. Além disso, o protesto em frente ao STF é emblemático. O enfrentamento às leis remete à eterna ameaça de retorno ao caos.
A escolha do nome do grupo, “300 do Brasil”, tão pouco espanta. A alusão é ao filme 300 dirigido por Zack Snyder que é uma alegoria da Batalha de Thermopylae que ocorreu no norte da Grécia em 480AC entre os gregos de Esparta e o exército de Xerxes da Pérsia. O filme exalta o aspecto nacionalista dos espartanos, que buscam defender o genos das ameaças externas trazidas pela corrupção política e pelos estrangeiros, xenos, multicoloridos e deformados. A palavra xenos, no grego, se refere ao estrangeiro, àquele de fora do grupo. Vale lembrar que xenos é a raiz etimológica tanto de “hóspede” quanto de “hostil”, dissociação esta que demarca e reflete a relação dicotômica de amizade e inimizade entre grupos diferentes ao longo da história.
O Ciclope Polifemo não reconhece Ulisses e seus homens como sendo do grupo, o que o desobriga de estabelecer relações de reciprocidade. Polifemo mostra isso ao devorar impiedosamente alguns homens de Ulisses. O ardiloso Ulisses oferece o vinho que lhe restava a Polifemo e recebe a promessa de que será devorado por último. Contudo, Polifemo fica embriagado e adormece. Ulisses, então, se aproveita desse momento para furar o olho do Ciclope e escapar com seus homens da ilha.
Por sua incapacidade de reconhecer o estrangeiro, o Outro, como merecedor de sua hospitalidade, Polifemo instaura a guerra em vez da paz. Com isso, a lição que a Odisseia nos traz é a de que inserção do homem no campo da cultura exige, por meio do domínio da natureza e repressão de suas pulsões libidinosas, gestos de hospitalidade, troca, empatia e respeito em relação ao diferente, ao estrangeiro, ao Outro. Traços esses que têm se tornado cada vez mais raros e deixado de permear as relações sociais em um país polarizado que caminha a passos largos para se transformar em uma terra de Ciclopes.
Rafael Ribeiro é professor de Economia na UFMG
[1] Cardoso, B.B,; Vieira, F.M.S.B. e Saraceni, V. “Aborto no Brasil: o que dizem os dados?”. Cadernos de Saúde Pública, vol. 36, supl. 1, 2020.
[2] Dialética do Esclarecimento, Tradução Guido de Almeida, Rio de Janeiro: J. Zahar, 1988.
[3] Lembrar Escrever Esquecer, São Paulo: Ed. 34, 2006