Enfrentando o neonazismo
Conduzida à política através de do movimento pela cidadania, uma das oito chefes de polícia mulheres da Alemanha tenta aplicar, em seu trabalho com gente habituada a estruturas autoritárias, os princípios de uma “democracia de base”Brigitte Pätzold
Que ninguém se iluda. O apelo feito pelo governo alemão à formação de um “pacto contra a extrema-direita” coincide com uma escassez de mão-de-obra nos setores de alta tecnologia. Com uma população envelhecendo, a República Federal tem necessidade de “imigrantes úteis”. Do ponto de vista pragmático, este súbito despertar das autoridades não deixa de constituir um incentivo a todos os que, há anos, vêm lutando contra a escalada neonazista no país. Associações anti-racistas foram se formando à medida que os skin-heads tomavam conta das ruas na ex-Alemanha Oriental. Elas constituem uma contra-corrente na qual o poder público pode agora buscar apoio. É o caso de Eberswalde, cidadezinha do land [1] de Brandeburgo, a cinqüenta quilômetros de Berlim.
Por volta da meia-noite de 24 de novembro de 1990, uma horda de cerca de trinta skin-heads armados de facas e bastões de beisebol dirigiu-se ao “Hüttengasthof”, único bar de Eberswalde que recebe estrangeiros. Decididos a “rebentar um crioulo”, depararam com Amadeu Antônio, de Angola, a quem atacam barbaramente. A alguns metros dali, no portão de segurança de uma indústria química, três policiais assistem à cena sem intervir. A ambulância só chegaria três horas mais tarde. Tarde demais: Amadeu Antônio foi o primeiro trabalhador estrangeiro assassinado, após a unificação, na ex-República Democrática Alemã (RDA). Seus assassinos foram condenados de dois a quatro anos de prisão.
Carta aberta aos concidadãos
“Isso jamais poderia ter acontecido”, desabafa, indignada, Uta Leichsenring, uma senhora lourinha de uns cinqüenta anos, transbordando de energia, que foi nomeada chefe de polícia de Eberswalde um ano após o crime. Em toda a Alemanha, somente oito mulheres ocupam um cargo equivalente. Sua jurisdição abrange os distritos de Barnim e Uckermarck, cerca de 322 mil habitantes. Ela dispõe de mil servidores sob suas ordens. Formada em informática e conduzida à política através de do movimento pela cidadania, ela tenta aplicar, em seu trabalho com policiais habituados a estruturas autoritárias, os princípios de uma “democracia de base”, com maior ênfase na persuasão — inclusive discussões em particular — que no comando.
Com os seguranças que não socorreram Amadeu — dos quais, dois continuam no mesmo trabalho —, a discussão deve ter sido bastante elétrica. “Na época, eles nem dispunham de um telefone celular. E, principalmente, ficaram com medo” explica a senhora Leichsenring. Uma atitude de indulgência que chega a surpreender, considerando que, em 1994, a chefe de polícia não somente demitiu como fez de tudo para que fossem condenados oito policiais acusados de terem torturado vendedores de cigarros vietnamitas — apesar das pressões administrativas e… sindicais. Quando, no ano passado um cidadão asiático foi derrubado da bicicleta que dirigia e uma moça africana era sistematicamente insultada durante seu trajeto de ônibus, ela escreveu uma carta aberta aos 46 mil habitantes da cidade: “Por que vocês não fizeram nada? Nós lhes pedimos que vocês demonstrem um pouco mais de coragem de cidadãos.”
Sob vigilância
A chefe de polícia Leichsenring não é muito amável com seus concidadãos. Ela sabe que a xenofobia nasce no coração da sociedade, que a maioria silenciosa de há muito não só tolera, como aplaude atos criminosos. [2] A explicação da xenofobia exclusivamente pelo desemprego não a satisfaz. É verdade que 20% dos habitantes de Eberswalde não têm emprego. Implodiram o antigo complexo de indústria química. A fábrica de guindastes reduziu o número de funcionários de 3 mil para 160. E a velha cervejaria está caindo aos pedaços. Porém, “nada justifica a violência”, diz ela.
É por isso que ela lançou os programas de “pactos contra a extrema-direita”, uma “rede em defesa da tolerância” e equipes de policiais jovens que patrulham regiões ocupadas por jovens neonazistas, como parte do bairro de Leibniz, um dos tristes conjuntos habitacionais pobres da cidade. A outra parte é ocupada por punks. E as duas comunidades de jovens travam uma guerra. Prova disso são as pichações que se vêem nos muros, onde neonazistas e anarquistas se xingam mutuamente. Mas, ao contrário dos anarquistas punk, que se encontram no clube “Exil”, os skin-heads já não têm onde ir. “Eles ficam escondidos nas salas dos fundos de alguns bares porque já nem ousam se mostrar” ressalta a senhora Leichsenring, que considera esse um dos resultados de suas ações. “Eles sabem que estão sendo vigiados.”
Canções para os bons velhinhos
Pelo menos, em Eberswalde, cabeças raspadas, botas e blusões de couro preto não chamam a atenção do turista como nas ruas de Schwedt, [3] Wurzen ou Frankfurt-sobre-o-Oder. Nem como em Delitzch, na Saxônia, cidade que ofereceu a um clube de skin-heads uma subvenção de 262.500 francos (cerca de 65 mil reais) e contratou um notório neonazista como “assistente social”. Muito na moda até as recentes declarações do governo, o conceito de “integração dos jovens de extrema-direita” representou quase sempre um enorme desperdício de dinheiro. E pior ainda: contribuiu para reforçar as “zonas nacionais libertadas” — clubes de jovens, supermercados, estações ferroviárias e outros espaços públicos “conquistados” pelos neonazistas, onde qualquer estrangeiro, punk ou antifascista é declarado indesejável e fisicamente ameaçado.
A expressão “zonas nacionais libertadas” apareceu pela primeira vez em 1991, num documento da direção do Partido Nacional-Democrata (PND), definindo uma estratégia para os novos länder: “Devemos criar zonas onde possamos exercer o poder e onde sejamos como peixes dentro d’água.” Na cidade de Frankfurt sobre o Oder, o cantor neonazista Jörg Hähnel interpretou essa “linha” à sua maneira. Com o seu violão e a sua banda, visitou todos os abrigos para idosos, tocando canções “tipicamente alemãs” sob os aplausos dos velhinhos. Atualmente, ele é vereador pelo NPD na cidade.
Tática da terra arrasada
A chefe de polícia Leichsenring está longe de ter ganho a batalha. Embora tenha ganho, com sua “rede em defesa da tolerância”, a medalha Theodor Heuss (entregue, desde 1964, em homenagem à “coragem de cidadão”), o seu engajamento não conseguiu impedir os skin-heads de cometerem, neste verão, mais um crime: um jovem punk de 22 anos, Falko Lüdtke, foi empurrado para baixo de um táxi durante uma briga. A cidadã Uta Leichsenring participou então de uma passeata, junto a todos aqueles a quem esses atos revoltam.
Seu engajamento também não conseguiu impedir o incêndio do clube de cultura africana “Palanca”, no mês de março. Um dos incendiários explicou que pretendia afugentar os estrangeiros de sua cidade. No entanto, Eberswalde não tem senão 1% de estrangeiros, entre eles uns 40 de Angola e Moçambique. Os instrumentos musicais e as vestimentas, que os membros do clube pretendiam mostrar aos alemães, desapareceram. Mas o proprietário da casa ofereceu-lhes gratuitamente um outro local.
Fazendo “o que bem entendem”
No Instituto Universitário Técnico, o professor Norbert Jung, de 57 anos, coordena a “rede em defesa da tolerância”. “Fico indignado com os esquemas simplistas usados pelos políticos e intelectuais ocidentais para explicarem o avanço da extrema-direita junto aos jovens orientais. Enquanto uns acusam a educação antifascista da RDA, outros, como o criminologista Christian Pfeiffer, denunciam a educação coletivista nas creches. Como eu próprio fui criado numa dessas creches, considero as teses humilhantes”, diz ele, que, enquanto egresso do “Leste”, se considera um azarão, já que os “Ocidentais” ocupam quase todos os postos de professor.
Para este biólogo, a origem do mal está na perda de autoridade de pais e mestres. “Os jovens sabem muito bem que os novos senhores são os do mundo ocidental. E interpretam a sua democracia como o direito de fazerem o que bem entendam.” Mais ainda devido à subversão de valores e às frustrações provocadas pela reunificação, que reforçam a atração pelas idéias simples da extrema-direita. Dessa forma, a juventude encontra propostas de estruturas nacionalistas, autoritárias e hierárquicas, que substituem o rigor do regime em que viviam: as gangues de hoje parecem-lhes sucedâneos das associações de jovens de ontem.
A nova estrela do NPD
“Os jovens não são bobos”, continua Norbert Jung. “Eles constatam a contradição entre, de um lado, o humanismo e a solidariedade que lhes ensinam, e, de outro, o individualismo desencadeado em que implica uma sociedade guiada pelo chamariz do lucro.” Ora, o imigrante ou o refugiado político, assim como os sem-teto — principais alvos das agressões — estão na base da escala social. Em busca de um bode expiatório para suas frustrações e impregnados pelo novo darwinismo social reinante, os jovens se acreditam autorizados a desprezar, ou mesmo eliminar, esses “parasitas sociais”. É provável que a sua condição de alemães fundamente o sentimento de superioridade que sentem.
Talvez um dia, um jovem como Gordon Reinholds, a nova estrela do NPD, venha a entrar em contato com “Exit”, um programa de reinserção social destinado a qualquer pessoa que deseje afastar-se da extrema-direita. Até agora, o dito Gordon — um belo rapaz de olhos azuis e cabelos louros que ele deixa caindo sobre os olhos — continua um militante exemplar, engajado de corpo e alma na “resistência nacional”. Trabalha de 12 a 14 horas por dia, deslocando-se diariamente de Eberswalde até Köpenick, bairro oriental de Berlim onde fica a sede da direção do NPD desde que se transferiu de Stuttgart, em novembro de 1999. Antes, ele era marceneiro — primeiro aprendiz, depois profissional com emprego fixo. Quando caiu o muro, tinha 11 anos. Com 14, começou a ler as Landserhefte, revistas racistas que glorificam os soldados da Wehrmacht.
Os extremos se tocam
Gordon acha escandaloso que o chanceler Gerhard Schröder queira trazer técnicos em informática do exterior, ao invés de contratar alemães. “Já tem estrangeiros demais na Alemanha. Uma vez eu fui a Frankfurt e, no meio de todos aqueles imigrantes, nem me sentia em meu país. Se todos eles voltassem aos seus países, não teríamos desemprego.” Em seguida, rosnando contra capitalistas e especuladores que se aproveitam de pobres trabalhadores, ele dispara: “Não são os homens que devem servir à economia, e sim a economia que deve servir aos homens.” Uma frase que se poderia acreditar saída do livro “O Horror Econômico”, de Viviane Forrester.
Na coletiva à imprensa organizada pelo NPD no dia 7 de setembro em Berlim — em protesto contra o projeto de interditar o partido — cartazes pediam: “Trabalho para os alemães, em primeiro lugar”, “Por uma economia do povo, contra a globalização”, “Trabalho, e não lucros”. Ex-quadro do Partido do Socialismo Democrático (PDS, ex-comunista), o professor Michael Nier pede a palavra. Em sua nova função de assessor do NPD, é ele quem fornece a base teórica para a crítica do capitalismo — com os mesmos argumentos de antigamente. “Udo Voigt, secretário-geral do partido, é um ex-general, como eu sou um ex-comunista”, diz ele. “Mas estamos de acordo numa questão: os social-democratas, assim como os democrata-cristãos, abandonaram o trabalhador pobre. O NPD é o único partido que o defende.”
No NPD, o ex-comunista reencontrou um ex-terrorista e teórico da Fração do Exército Vermelho (também conhecida como “Grupo de Baader-Meinhoff”), o advogado Horst Mahler, que se filiou em protesto contra o projeto de interdição do partido. Citando Marx, Lênin e Gramsci, Mahler esbraveja contra a ditadura do dinheiro, a globalização e “os cartéis de interesses particulares que monopolizaram o Estado e traíram o povo. Hoje em dia, não há mais esquerda nem direita. O que conta é o centro, e o NPD é o partido