Engenho Teatral , o neoliberalismo e a prefiguração do comum
Esses espaço-tempos de conversa, interação e relação, não convencionais ao teatro, por meio dessa peça-festa, trazem uma dimensão primordial do sensível à tona
Prefigurar
verbo
1.transitivo direto – figurar, representar o que está por vir. (Dicionário Oxford)
Em uma busca rápida na internet, encontramos a definição do verbo “prefigurar”. À primeira vista, pode parecer apenas um termo incomum e de compreensão difícil. No entanto, quando levado ao universo teatral e crítico das relações capitalistas, esse verbo transitivo adquire profundidade. Nesse contexto, o verbo transitivo direto indica uma ação que, ao unir estética e política, pode romper com a lógica tecnocrática de produção e com o empresariamento que permeiam o campo artístico e o mundo contemporâneo, desafiando a ideia neoliberal acachapante de que “não há alternativa”¹.
Uma festa com temperos teatrais
Ao sair da estação Carrão, linha vermelha do metrô, andamos poucos metros e encontramos, ao lado de um CEU (Centro Educacional Unificado), uma fachada branca e vermelha com uma placa dizendo “TEATRO GRÁTIS”. Ao adentrarmos, vemos um espaço com gramado, árvores, mudas de plantas e uma tenda de circo. Parece que entramos em um oásis, desterritorializado do caos urbano da cidade de São Paulo, que nos leva a outro espaço-tempo e, após a experiência imersiva da festa-teatro, percebemos que não se trata apenas de outro espaço-tempo, nem de um produto cultural cujo objeto é o espetáculo, mas da experiência relacional e de subjetivação que a festa, com temperos teatrais, promove.
Quando entramos, recebemos um cardápio com os nomes das peças e o tempo de duração de cada uma delas. Na parte de trás, há um informe sobre o que acontecerá ali. Vemos um cenário de festa e teatro: um galpão, com um palco no centro, rodeado de arquibancadas com mesas; atores e atrizes com figurino; comidas, petiscos e bebidas gratuitos, com consumo à vontade. A primeira reação, dada a distribuição arquitetônica do espaço, é servir-se e escolher um lugar para sentar, cumprindo o manual do bom comportamento do mal chamado “público-alvo” dos editais da cultura. “Senta, escuta, recebe” — é isso que te compete na lógica quantitativa da também mal chamada formação de público. No entanto, logo percebemos que ninguém do elenco está interpretando algum personagem. O elenco conversa entre si, recebe o público, dialoga com as pessoas, canta músicas, circula pelo espaço e senta-se nas arquibancadas.
Após isso, recebemos algumas orientações gerais e escolhemos a ordem dos espetáculos que estão no cardápio por meio de votação por mesa, em que cada mesa tem um voto. Para votar, precisamos interagir com as pessoas que estão ao nosso lado e conversar sobre os interesses a partir dos títulos apresentados: Apagamento de Lutas, Educação, Privatização, Sonhos, Trabalho e Urbanização.
A partir da votação, cria-se uma ordem de apresentação e, após duas ou três delas, há uma pausa para ir ao banheiro, se servir novamente e para interagir e conversar. Neste momento, servem caldinho de feijão e pipoca, e os integrantes do grupo buscam conversar com a plateia a partir do conteúdo das cenas apresentadas, estimulando que o público debata entre si também. Tarefa que não é nada simples, dada a dinâmica elenco/público, mas que o grupo experimenta por meio de estratégias como poesias, frases ou palavras disparadoras, circulação entre as arquibancadas ou até mesmo uma conversa mais informal.
Retoma-se as últimas apresentações e, após a finalização, o público é convocado novamente a ser protagonista e a ajudar coletivamente na operação de limpeza dos materiais de alimentação: pratos, colheres, cumbucas e copos. Há uma estrutura de limpeza montada na lateral do teatro, por meio de bacias com água. A ideia é que a limpeza ocorra em etapas, divididas entre as pessoas, mas de uma forma que haja uma rotação. A dinâmica não é baseada na lógica de que cada pessoa limpa o seu, e algumas pessoas limpam o de todos. É rotativo: as pessoas permanecem um pouco, trocam, outras se dispõem e, neste momento de trabalho coletivo e horizontal, muitos dos temas encenados aparecem novamente.
Tudo isso lembra muito a elaboração de Antônio Bispo dos Santos, também conhecido como Nego Bispo (2023), a respeito da íntima relação entre comida e festa:
“A comida organiza a festa, organiza a recepção, tudo se organiza em torno da comida. Ǫuando fazemos arquitetura, pensamos na comida e na festa, nas formas compartilhadas de vida.” (p.40)
Engenho Teatral
O Engenho Teatral é um grupo que está em atividade desde 1979 e pode ser definido nas palavras dos próprios integrantes:
“O Engenho Teatral é um sonho de vida e de trabalho de artistas cooperativados, um coletivo sem patrão, sem donos, que não vende o que faz, não cobra ingressos e, mesmo assim, conseguiu se concretizar. Para nós, a função do teatro, da cultura, da educação, saúde, etc., etc., não é fabricar dinheiro nem gerar empregos”
( 31 de maio de 2024).
Falamos de um grupo teatral de esquerda, que se articula e está próximo a movimentos sociais de moradia, coletivos periféricos, cursinhos populares, dentre outros segmentos que lutam por justiça social, principalmente na zona leste da cidade. Em sua sede, o grupo busca fomentar atividades gratuitas e abertas ao público, que se contraponham à atomização, individualização e concorrência propagadas pelo neoliberalismo.
Pierre Dardot e Christian Laval analisam a sociedade neoliberal em sua obra A Nova Razão do Mundo (2016), por meio de um diálogo frutífero entre o marxismo e as teorias pós-estruturalistas. Para os autores, o neoliberalismo é muito mais do que uma ideologia, elaborada no Colóquio Walter Lippmann, ou uma política econômica formulada por economistas e instituições financeiras, articuladas no Consenso de Washington, para aplicar regimes de austeridade na periferia do capitalismo. O neoliberalismo é uma racionalidade que produz subjetividades, formas de existência baseadas em uma lógica contábil-financeira e de concorrência. É uma razão do mundo, pois opera como princípio de organização e gestão social, e se dissemina globalmente, adaptando-se aos regimes políticos locais. Nesse sentido, a arte, por mais crítica que seja, não está imune a esta fábrica de forjar sujeitos chamados neoliberalismo. Dessa maneira, somos do nosso tempo, não estamos à frente dele, como desejam alguns artistas que reivindicam a alcunha de criativos e visionários, mas que, na verdade, são operadores fundamentais da renovação do próprio capitalismo, como nos apontaram Luc Boltanski e Ève Chiapello em sua obra, que explicita a relação de apropriação do capitalismo das críticas artísticas na década de 60/70 na França. Como sujeitos influenciados, mas não determinados pelas condições econômicas, políticas, sociais e subjetivas do nosso tempo, há espaço para mudança, que podemos chamar de Linha de Fuga (Deleuze; Guattari, 1995), política dos governados (Chatterjee, Partha, 2004), contracondutas (Foucault, Michel, 2008). É nesse espaço para a mudança que o Engenho Teatral se insere e evidencia sua força estético-política prefigurativa.
A Companhia compreende que não há uma cisão entre política e estética em seus trabalhos. A dimensão estética está atrelada à política e vice-versa. Isso, no cotidiano do grupo, fica patente através da forma de organização do trabalho criativo, artístico e de produção. O trabalho de produção é realizado pelo próprio grupo, sem a contratação de uma associação ou prestador de serviço externo, sem ligação orgânica com o coletivo ou o projeto. Isso demonstra uma compreensão da importância da autogestão política e econômica, e como essas posições impactam as dimensões estéticas. A organização colaborativa, horizontal, ainda que com a figura de direção, e autogerida do grupo aparece também na encenação, como não poderia deixar de acontecer. Aqueles grupos teatrais com uma performance ou conteúdo radical, mas com uma política neoliberal, escamoteada às vezes por eufemismos como “técnico” ou “administrativo”, e autoritária no que diz respeito à produção ou à forma de organizar as relações de trabalho, não compreenderam a relação íntima entre estética e política, e também não se dão conta de como a política é revelada na estética. A radicalidade estética é imprescindível para a radicalidade política.
Jacques Rancière, em seu livro A Partilha do Sensível (2020), argumenta que a política tem uma base estética primordial, que é ocupada pelo que é factível, visível e pensável. Dito de outra forma, há um sistema a priori que determina o que é possível fazer, ver, pensar e sentir. É a partir disso que se pode estabelecer uma estética secundária, ligada às práticas, no sentido que comumente a entendemos. Um outro mundo possível, como dizem os zapatistas, que desafia as estruturas de poder atuais, só é viável se levarmos essa dimensão primeira da estética a sério. Para isso, é necessário a partilha de um comum contra-hegemônico, a redistribuição e o reposicionamento das partes.
As práticas artísticas e o teatro têm a potência de reformular e recriar o sensível, trazendo à cena sujeitos, práticas, visões de mundo, dentre outras, até então subalternizadas, e desenhando novas formas de subjetivação. O teatro, e a arte em geral, têm a possibilidade de criar outro regime do sensível e coletivizá-lo através do princípio político do comum (Dardot e Laval), ou seja, baseado na gestão coletiva, na democracia direta, no compartilhamento de recursos, na negação da propriedade privada, na cooperação e na solidariedade.
Nesse sentido, o estranhamento ao entrar na festa-peça do Engenho Teatral evidencia a interiorização de uma estética primordial na disposição das partes, que é rompida na escolha do cardápio e na interação entre os atores e o público. No intervalo das primeiras cenas, retoma-se a festa e a possibilidade de o público protagonizar os assuntos a serem debatidos, seja por meio dos estímulos das poesias, da provocação do elenco, ao brindar com uma cerveja disposta nos coolers, ou na fila para pegar um pãozinho com pasta de ora-pro-nóbis. Propor isso é correr o risco da ausência de adesão das pessoas, do público simplesmente não comentar nada, falar de outros assuntos ou apenas elogiar as cenas. O relevante desse teatro é pôr em relação, é tentar construir o comum. Ao final, conforme dito, o público é convocado novamente para protagonizar a experiência festa-peça na organização da limpeza. Aqui, novamente, coloca-se um aspecto central do quanto essa ação revela a íntima conexão entre a política e a estética do grupo, organização do trabalho, forma e conteúdo das cenas.
Gostaria de retomar o que anunciei no início: a força prefigurativa. Esses espaço-tempos de conversa, interação e relação, não convencionais ao teatro comercial europeu e possibilitados por essa peça-festa, trazem uma dimensão primordial do sensível à tona, ao passo que há uma proposta estética de reorganizar o que é possível fazer, sentir, ver e dizer no teatro. Além disso, os conteúdos da cena são críticos à meritocracia, à precarização do trabalho, ao empresariamento da vida e das relações sociais, ao individualismo, ao esvaziamento de espaços coletivos e sociais e às relações capitalistas de produção. O Engenho Teatral propõe uma reflexão e promove uma sociabilidade e subjetivação que são contrárias ao neoliberalismo; e produz, ainda que temporariamente, um ensaio para as revoluções do século XXI. A força prefigurativa está aí. Publiciza-se a crítica ao capital, encena-se a resistência, sacode-se a dimensão hegemônica do sensível e nos põe, enquanto público, a figurar o que está por vir. Por fim, implodir-se a fronteira entre elenco e público e entre teatro e vida, instaurando o comum através das práticas.
“Esta pesquisa está sendo realizada graças ao fomento do CNPq e INCT Brasil Plural”
João Martins é doutorando em Antropologia Social na Universidade Federal de Santa Catarina e pesquisador do Núcleo de Antropologia do Contemporâneo – Transes/UFSC
1 “There Is No Alternative” é uma frase comumente atribuída à Margaret Tatcher, Primeira-Ministra do Reino Unido de 1979 a 1990 responsável pela implementação do arcabouço de políticas neoliberais: privatização de empresas estatais, desregulamentação, redução do Estado de Bem- Estar Social, enfraquecimento dos sindicatos, dentre outros. Contudo, essa frase remete a Hebert Spencer, filósofo britânico evolucionista do século XIX, responsável por refundar o liberalismo e introduzir um dos aspectos mais relevantes para os neoliberais: a primazia da concorrência nas relações sociais.
2 Termo genérico utilizado pelas companhias de teatro de grupo para caracterizar o trabalho financeiro, administrativo, de articulação e de parcerias.