Ensino à distância, lucros e mediocridade
Tomadas por uma febre comercial, e incentivadas pela OMC, as universidades voltam-se cada vez mais para o ensino via Internet, apesar da suspeita sobre a eficácia pedagógica destes métodos. Vale a pena examinar o passado deste método, bem menos “moderno” do que se imaginaDavid Noble
“Quem não pode se lembrar do passado
está condenado a repeti-lo”
George Santayana
Com o advento da Internet, o ensino à distância foi tomado pelo entusiasmo. As universidades descobriram “o mercado do século 21” e investem uma energia colossal no desenvolvimento dos serviços da rede. Mas os fomentadores desta transformação do ensino superior têm conhecimento do que foi a bancarrota de seus antecessores?
Antes de fincar o pé na universidade, o ensino por correspondência começou como uma empresa comercial. Um dos estabelecimentos mais antigos, particular e com fins lucrativos, foi constituído na Pensilvânia no final dos anos 1880. Seu fundador, Thomas J. Foster, criaria, em seguida, a International Correpondence Schools, que iria tornar-se uma das maiores e mais duradouras empresas desta fértil indústria. Em 1924, estas empresas comerciais, que visavam principalmente um público em busca de qualificações profissionais para o comércio e a indústria, puderam orgulhar-se de ter recrutado um número de estudantes quatro vezes maior que os estabelecimentos de ensino superior e de formação profissional juntos. Já em 1926, os Estados Unidos computavam mais de trezentas destas escolas, cujo rendimento anual ultrapassava os setenta milhões de dólares.
“A força das escolas é seu poder de venda”
Em seu material promocional, estas empresas ofereciam instrução personalizada para os estudantes: “O estudante conta com a atenção individual do professor e trabalha de acordo com o seu ritmo (…) sem deixar-se conduzir pela média do rendimento dos numerosos alunos que trabalham simultaneamente. Pode acelerar quando lhe convier, estudar a qualquer hora, e terminar assim que se sinta capaz”. Em todas estas instituições, a prioridade era o recrutamento de clientes e a maior parte dos esforços e rendimentos era destinada à promoção, em prejuízo da instrução. De 50% à 80% das taxas escolares eram normalmente investidas em campanhas de marketing direto, publicidade em revistas e jornais e na contratação e formação de vendedores que ganhavam comissão sobre as vendas obtidas. “A força de trabalho de todas as escolas é, de fato, direcionada ao desenvolvimento de seu poder de venda”, apontava, em 1926, em pleno apogeu do movimento de ensino à distância, um estudo financeiro da Carnegie Corporation. “É, sem dúvida, seu departamento mais organizado”.
A busca por lucros teve como conseqüência a subversão das nobres intenções — ou pretensões — das empresas, principalmente daquelas que haviam se transformado em instituições altamente competitivas (a maioria sem regulamentação nenhuma), por onde transitavam várias empresas, dentre as quais algumas fizeram belas fortunas. Os estudantes recrutados deviam pagar a totalidade ou uma parte importante dos estudos no momento da assinatura do contrato. A maioria dos estabelecimentos havia adotado uma política de não-reembolso para os quase 90% de estudantes que não conseguiam finalizar o curso.
A elevada taxa de abandono era reflexo não apenas dos métodos de recrutamento desrespeitosos, mas também da qualidade medíocre do produto oferecido. Para a “entrega” efetiva do curso, ou seja, a correção de trabalhos e provas, a maioria das empresas valia-se de um conjunto ordinário (e sempre “sub-profissional”) de “leitores” em tempo parcial remunerados “por peça”, a cada lição ou trabalho corrigido. Estas pessoas eram sempre exploradas, pois era necessário entregar um volume grande de trabalho para conseguir uma remuneração decente. Conseqüentemente, era impossível oferecer um trabalho pedagógico de qualidade. Nestas condições, bem entendido, não havia compromisso algum com o ensino atencioso e personalizado prometido nos anúncios. A falta de contato pessoal entre estudante e professor (era) a maior fragilidade.
Toda esta situação obedecia, entretanto, a uma perfeita lógica econômica, que a indústria acabou chamando, no seu jargão, de “lucro da desistência” (drop-out money). Se o aluno desistisse do curso, a escola conservava o pagamento integral, mas não tinha mais que pagar as taxas de ensino e, em particular, os professores. Deste modo, a economia deste sistema educativo cínico não encorajava as escolas a manter os estudantes através da melhoria de qualidade dos cursos e das condições de ensino. Na realidade, ela incentivava o oposto: concentrar todos os esforços no recrutamento e negligenciar o ensino.
A universidade vai a reboque
A instrução por correspondência conduzida pelas universidades seguiu uma evolução comparável, sob todos os aspectos, à das escolas comerciais. O movimento começou, realmente, nos anos 1890. Entre 1910 e 1920, transformou-se numa loucura parecida com o atual entusiasmo em torno da tele-educação em rede. Na trilha aberta pela Universidade de Chicago, várias universidades públicas (Wisconsin, Nebraska, Minnesota, Kansas, Oregon, Texas, Missouri, Colorado, Pensilvânia, Indiana e Califórnia) juntaram-se ao movimento. Em 1919, quando a Universidade Columbia (Nova York) lançou seu programa de estudos a domicílio (home study), 73 estabelecimentos de ensino superior já ofereciam cursos por correspondência.
Alegando a democratização do ensino e esperando abocanhar uma fatia deste mercado lucrativo, as universidades também adotaram os argumentos de venda das escolas particulares. “Na sala superlotada da universidade americana comum é impossível tratar os estudantes individualmente, permitir-lhes superar a pressão conformista do grupo, ou encorajá-los”, assegurou o chefe do Departamento de Estudos à Domicílio da Universidade de Chicago, Hervey F. Mallory. O estudo à domicílio, ao contrário, “leva em consideração as diferenças individuais no aprendizado”. Assim, a educação à distância, mais que uma continuação do ensino tradicional, era uma ferramenta, ao mesmo tempo, mais barata e de melhor qualidade. O ponto de partida para uma revolução do ensino superior.
Mas, mesmo não estando constituídos como organizações com fins lucrativos, os programas por correspondência das universidade eram obrigados a se auto-financiar. Enquanto a educação à distância buscava obter melhor produtividade que a tradicional sala de aula, os pioneiros percebiam, rapidamente, que ela custava mais caro que o previsto, principalmente devido às taxas suplementares de administração. Assim, quase desde o início, caíram no mesmo jogo de seus concorrentes. Era necessário inventar mecanismos para compensar as sobre-taxas administrativas e reduzir os gastos ligados à elaboração das aulas, padronizando seus produtos, recorrendo aos “cursos enlatados” e, acima de tudo, precarizando a situação dos professores mediante o pagamento “no ato”. Estes sabiam, conseqüentemente, que tal filão não tinha futuro algum. Com um produto deteriorado e as taxas de desistência praticamente iguais às das empresas comerciais, foi preciso pouco tempo para que as universidades aderissem, também, à corrida ao “lucro da desistência”.
Confusão entre formação e educação
No final dos anos 20 os programas universitários de ensino à distância acabaram merecendo as mesma críticas que seus equivalentes comerciais. Abraham Flexner, um dos críticos mais influentes e respeitados do ensino superior americano, censurou as universidades por sua preocupações comerciais, por ter comprometido sua independência e integridade, e ter, assim, abandonado suas obrigações sociais essenciais. A competição pela exploração de cursos comercializáveis e o entusiasmo provocado pelo ensino à domicílio, argumentou Flexner, “mostra a confusão entre educação e formação que impera nos estabelecimentos de ensino superior. “As universidades voltaram-se, de maneira irracional e excessiva, às solicitações imediatas, fugazes e passageiras e, sem motivo, tornaram-se desvalorizadas, vulgarizadas e mecanizadas”, insistiu.
Julgando “escandaloso” que o “prestígio da Universidade de Chicago ajude à enganar pessoas mal informadas (…) por meio de publicidades extravagantes e enganosas”, Flexner também criticou “a apropriação, por parte da administração, dos deveres do ensino” e a banalização dos professores. “O corpo docente americano é um proletariado”, declarou. Esta crítica chamou a atenção dos meios de comunicação de massa e desencadeou uma sucessão de conflitos em toda a universidade. Conseqüentemente, provocou uma série de tentativas de ajustes do ensino e levou à eliminação dos anúncios mais mentirosos. Em Columbia, isto foi um golpe fatal para o programa de formação por correspondência.
Trinta anos depois, o General Accounting Office encorajou os veteranos do Vietnã a não desperdiçarem suas bolsas de estudos em cursos por correspondência. Todas as investidas posteriores, como as tentativas de reforma ou de regulamentação, fracassaram, mesmo quando os programas à distância adotaram os últimos meios de difusão — filmes, telefone, rádio, fitas cassete, televisão. As universidades continuaram, obviamente, a oferecer cursos por correspondência, mas tratava-se de programas bem mais modestos em suas declarações e ambições. Parentes pobres da instrução em sala de aula, eles estavam em sua maioria limitados às entidades independentes e cuidadosamente separadas do campi, provavelmente para livrar a instituição-mãe do custo, da contaminação comercial e das críticas.
Nova corrida do ouro
Como seus antecessores esquecidos, os modernos adeptos da tele-educação acreditam ser a vanguarda de uma revolução que vai transformar a paisagem educativa. Enfeitiçados pela tecnologia e pelo futuro, eles não dão importância às lições desta experiência exemplar. O fator comercial, porém, é ainda mais forte desta vez. Pois, longe de distinguir-se de seus adversários comerciais, as universidades lançaram-se avidamente em parcerias com eles, alugando sua “marca” a empresas com fins lucrativos em troca de uma participação nas ações. As quatro instituições mais em evidência no movimento de ensino por correspondência estão novamente na competição. A Universidade de Wisconsin estabeleceu um acordo com a Lotus, a IBM e outros contratadores privados; a Universidade da Califórnia trabalha com a América Online e Onelinelearning.net; Columbia e Universidade de Chicago estão entre os exploradores mais motivados desta nova corrida do ouro. Não se trata mais de multiplicar os benefícios a partir dos anúncios, mas, acima de tudo, de colher os lucros da especulação financeira na indústria da educação, através das stock-options e entradas na Bolsa.
A Columbia assinou um acordo com a UNext, pioneira desta indústria da educação, permitindo a utilização do logotipo da universidade em troca de uma participação nos negócios. “Eu estava menos interessado no fluxo dos rendimentos (ligados aos direitos de inscrição pagos pelos estudantes) que na capitalização (financeira)”, explica o diretor da Escola de Comércio de Columbia, “Eu não vejo nada que possa representar um problema”, complementou, revelando assim uma ingênua ignorância em relação à história de sua universidade. Enfim, a Columbia firmou um acordo com outra companhia que pretendia corrigir seus cursos principais de arte e de ciências. A escola desenvolveria os cursos e alugaria sua “marca” para os produtos desta companhia, em troca dos royalties e das stock-options. Segundo uma fonte, a companhia já começou a selecionar professores para elaborar o material pedagógico e estuda a possibilidade de chamar atores profissionais para apresentá-lo.
De imediato, a maior parte da educação à distância é produzida por instrutores mal pagos e exauridos, remunerados por aula, sem estabilidade no emprego e aos quais foi solicitado, como condição para a contratação, que cedessem seus diretos autorais sobre o material pedagógico produzido. As exigências da produção ganharam o jogo, determinando os contornos das condições de trabalho dos instrutores até chegar à sua substituição definitiva por máquinas, cenários e atores.
Existem diferenças entre a loucura atual pelo ensino na Internet e a falência do começo do século. Primeiramente, mesmo que ambas tenham chegado pelo viés de grupos distintos, as iniciativas comerciais da rede começaram a se infiltrar profundamente no coração da universidade. Em segundo lugar, se as sobre-taxas da educação por correspondência eram importantes, as despesas com infra-estrutura para as aulas na rede são, claramente, mais consideráveis. Enfim, e acima de tudo, enquanto o ensino por