Entre a Bíblia e a motoserra
Ações ilegais de missionários, madeireiros e garimpeiros em territórios ocupados por índios isolados são mais ameaçadoras do que obras de infraestrutura. Monitoramento constante e demarcação de terras indígenas para esses povos são o grande desafio
Há um Brasil que compartilha passado e presente. Na encruzilhada de sua história, longe das oscilações da Bolsa de Valores e do avanço da tecnologia agrícola, um pequeno mundo selvagem sobrevive. São 69 povos com pouco contato com a “civilização nacional”. O remanescente da resistência cultural de cinco séculos. Sociedades indígenas dizimadas por doenças, rasgada por guerras e encurralada pelo avanço do “progresso”. Um país de habitantes desconhecidos e sob frequentes ameaças. Um país de índios isolados.
No julgamento da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no Supremo Tribunal Federal (STF), estavam abertamente em disputa a autonomia dos territórios, os direitos indígenas e a função do Estado. Nas entrelinhas, a ideologia do desenvolvimento a qualquer custo sobre o “Brasil primitivo” e a demanda da evolução natural e inexorável da “integração” dos índios ao Estado “civilizado”. A vitória do processo de reconhecimento das terras foi uma clara reafirmação de direitos garantidos pela Constituição, mas ainda está longe de resolver suas mazelas.
Os índios continuam sendo o lado mais frágil dessa queda de braço. A duras penas, ocupam aproximadamente 13% do território nacional – direito reconhecido só após a Constituição de 1988 e frequentemente questionado por “obstruir” o desenvolvimento do país. Atualmente, 60 obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) impactam de alguma forma áreas tradicionais indígenas. Ainda assim, todas deverão sair do papel, junto com planos de compensação para comunidades tradicionais. Mas, nesse universo, há um grupo ainda mais vulnerável: os isolados.
Esses 69 povos, de acordo com levantamento da Fundação Nacional do Índio (Funai), estão quase todos localizados nos estados que compõem a Amazônia Legal.
São manchas espalhadas no mapa. Do total de registros de isolados apontados pelos indigenistas, 61% têm a “proteção” de um território demarcado ou em vias de demarcação. Áreas localizadas no noroeste do Mato Grosso, em Rondônia, sul do Acre e sudoeste do Amazonas. Os outros vivem em constante fuga, enfrentando e correndo dos colonizadores contemporâneos.
Matis, marubo, piripkura, kanoê, akuntsú, awá, zoé estão entre os nomes conhecidos, mas há ainda grupos isolados, não identificados, lutando por sobrevivência. “Vários grupos não são monitorados por falta de recursos e de pessoal. Estes correm sérios riscos. Podem não desaparecer fisicamente, mas vão desaparecer culturalmente se a situação continuar como está”, alerta José Carlos Meirelles, um dos principais sertanistas do país, e que atua pela Funai na Frente de Proteção Etno-ambiental do rio Envira, no Acre, há mais de 20 anos.
“As missões religiosas são uma grande ameaça, pois têm uma atuação devastadora na realidade desses índios. Elas querem ‘salvar as almas dos índios’. Uma ameaça da Petrobras, por exemplo, você negocia. Mas as atividades ilegais são as piores: com a ação de madeireiro, garimpeiro e de missionário, gente que já está ilegalmente dentro dessas terras, você faz o quê?” indaga o antropólogo Gilberto Azanha, coordenador do Centro de Trabalho Indigenista (CTI), organização não-governamental que trabalha com a questão indígena há 30 anos.
Essa é uma das perguntas que cercam a atuação daqueles que trabalham com povos isolados no Brasil – único país que possui uma política efetiva para a questão em todo o mundo. Outro ponto que vem sendo discutido, até mesmo em fóruns internacionais, são formas de garantir que esses povos continuem tendo a opção de viver em isolamento. “Estamos pensando estratégias para garantir a opção desses índios. Nossa perspectiva é identificar suas áreas de ocupação e fazer as demarcações. Assim, garantiremos um futuro para que esses índios continuem tendo a opção de se manter longe do contato, independentemente de grandes obras, expansões e atuações ilegais”, alega o responsável pela Coordenação Geral de Índios Isolados da Funai, Elias Bigio.
A política atual do governo brasileiro é de não contatar os povos que vivem “em isolamento”. Apesar disso, a proximidade da violência fez com que, em 2007, uma equipe da Frente de Proteção Etnoambiental do Madeirinha, unidade da Funai responsável pela fiscalização de territórios ocupados por índios isolados, fosse atrás de um grupo que ocupava uma área entre os municípios mato-grossenses de Rondolândia e Colniza, a cidade mais violenta do país. Em agosto daquele ano, dois índios de língua do tronco tupi foram encontrados depois de meses de andanças e buscas de vestígios. Não foram pegadas no mato, nem restos de fogo ou comida que os denunciaram, mas suas risadas no silêncio da floresta. As terras onde viviam eram utilizadas por empresas madeireiras da região. O desmatamento fez com que esses índios fugissem constantemente para áreas um pouco mais preservadas.
Monitoramento
“Esses piripkura [nome dado aos dois índios encontrados, significa ‘aqueles que não param em nenhum lugar e são frágeis’] estavam numa situação muito vulnerável, pois sua terra fica numa região de intensa exploração madeireira e de violência. São sobreviventes de uma série de massacres. Por isso fizemos esse contato. Para garantir sua segurança e sobrevivência. Não estamos em contato permanente, até porque eles não querem. Mas os monitoramos dia e noite para que não haja novas invasões na área”, conta Elias Bigio.
Até esse contato, os piripkura nem sequer tinham um território demarcado. Eram apenas mais um ponto no mapa de referências a grupos isolados que a coordenação reformulou recentemente. Agora, uma área de 242 mil hectares está sob restrição de uso, o que significa que no decorrer do processo de demarcação poderá ser destinada à posse permanente desse grupo indígena.
No Maranhão, o conflito entre madeireiros, posseiros e índios é iminente. Em agosto de 2008, madeireiros atacaram a tiros aldeias de índios guajajara na terra indígena Araribóia, gerando clima de terror em toda a região. Em Rondônia há o caso dos akuntsú e dos kanoê. As duas etnias somam hoje apenas nove indivíduos, por causa de contínuos massacres promovidos por fazendeiros e latifundiários na região do igarapé Omerê, sudoeste do estado. A exploração desmedida representou o fim de inúmeros povos indígenas não-contatados em tempos recentes, reveladas por situações extremas como a do “índio do Buraco”, permanentemente fugitivo e único sobrevivente de um povo nunca identificado.
“O certo é expulsar os madeireiros, o que já foi feito várias vezes, e fazer a vigilância da área. Convencer os políticos, invasores, madeireiros, governo e o restante da humanidade que consome esta madeira de não mais a consumir. Feito esse milagre, os índios estarão bem!”, ironiza Meirelles.
Já para Gilberto Azanha, a questão é mais simples e prática. “A Funai tem um poder de polícia, o que significa dizer que cabe ao órgão exercer o poder de polícia na defesa e proteção dos índios e suas comunidades. Isso devia ser regulamentado pelo menos na área onde ela atua. Só assim se conseguiria combater essas atuações ilegais”, defende.
Tão preocupante quanto a violência de madeireiros, garimpeiros e invasores de terras indígenas é a “pacífica” atuação de missões evangélicas nessas áreas. De acordo com a Funai, há mais de 50 missões religiosas cadastradas no órgão e que atuam em terras indígenas, mas o número pode ser maior, já que muitos missionários conseguem se infiltrar entre os indígenas, sem o conhecimento da Fundação.
A aproximação acontece camuflada de auxílio numa área delicada: a saúde. Uma vez dentro do território, os missionários aprendem a língua desses povos e traduzem para eles a Bíblia e os conceitos cristãos – atividades proibidas pela Funai.
Com esse cenário, o desafio colocado hoje é o de assegurar o direito desses povos viverem isolados. Sem interferência de madeireiros, missionários, garimpeiros, posseiros, fazendeiros e demais “senhores ilegais das terras públicas”. Caso contrário, voltaremos ao passado, quando a política indigenista do Estado – em seu conceito político – tendia a um ideal de “integração” e “civilização”1. E na comparação de outrora com os dias atuais dos indígenas, resta a pergunta: esse é um extermínio com o qual estamos dispostos a compactuar?
*Christiane Peres é jornalista.