Entre ameaças e chantagens
Aproveitando-se da importância geográfica para um eventual ataque norte-americano ao Iraque, o governo de Abdullah Gül – que atravessa uma grave crise política interna – faz pressão sobre a União Européia, à qual pretende aderirNiels Kadritzke
É insólita a proposta que o autêntico chefão do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), Recep Tayyip Erdogan, fez a George W. Bush: “Se a União Européia não nos aceitar, encontraremos outra solução. Sugeri ao presidente norte-americano que nos aceitasse na Alcoa (Nafta) 1.” A idéia da integração da Turquia à Área de Livre Comércio que reúne os Estados Unidos, o Canadá e o México só surpreendeu a Casa Branca. Considerado desde sua vitória eleitoral em de novembro de 2002 como um potencial chefe de governo, Erdogan apresentou sua candidatura à Alcoa exatamente na véspera da reunião de cúpula européia de Copenhague, destinada à ampliação da União. Agindo desse modo, retomava um velho princípio da política externa turca: o país que liga a Europa e a Ásia se considera não só situado geograficamente entre o Leste e o Oeste, mas também em condições de escolher entre os europeus e os Estados Unidos – e, dessa forma, jogar os últimos contra os primeiros.
Entretanto, é pouco provável que Ancara possa arrancar sua adesão à União Européia via a intermediação de Washington. “A pressão transatlântica desemboca no contrário”, concluem até os jornalistas que fizeram a cobertura da reunião de cúpula de Copenhague2. De qualquer forma, desde o início, a União Européia não estava disposta a fazer o papel de maître de um banquete preparado pelos Estados Unidos – principalmente se, além do mais, tivesse que pagar a conta do convidado turco.
A estratégia da europeização
Mas a insistência dos norte-americanos contribuiu para que Copenhague decidisse não uma data de abertura das negociações de adesão, mas a de um simples encontro que, ademais, é tardio: a Comissão de Bruxelas vai resolver somente no final de 2004 se as reformas realizadas são suficientes para começar a negociação. O que, evidentemente, não atendeu às expectativas do líder do AKP e do primeiro-ministro Abdullah Gül. Estes queriam que a União tomasse uma decisão clara antes de 2004 porque, depois, os Quinze já serão Vinte e Cinco, cada um podendo opor seu veto à entrada da Turquia. Ora, Ancara teme que os novos membros sejam ainda mais reticentes em relação a um candidato muçulmano.
No dia seguinte à reunião de Copenhague, o governo turco, inteligentemente, começou a utilizar da melhor maneira possível o tempo que resta até o fim de 2004 para preparar o país – legal, institucional e economicamente – para a adesão. As declarações de Erdogan, garantindo que a Turquia precisava dessas reformas para aderir à União – com certeza, mas também para desenvolver sua própria vida democrática -, reforçaram a credibilidade da candidatura de Ancara. Atualmente, a política européia da Turquia encontra-se numa fase decisiva, sobretudo porque as forças políticas pró-européias têm ainda, internamente, muitos obstáculos a superar.
A questão do Curdistão
No dia seguinte à reunião de cúpula de Copenhague, o governo turco começou a preparar o país – legal, institucional e economicamente – para a adesão
Por três razões. Primeiramente, essas forças e o novo governo enfrentam uma classe dirigente kemalista estabelecida há muito tempo e, portanto, de modo sólido. Esta se apóia no nacionalismo do pai fundador, Kemal Atatürk, e ainda não optou de forma clara pela Europa. Em seguida, a problemática da adesão tornou-se inseparável da questão cipriota, que a elite kemalista – pelo menos, o exército – considera um problema de segurança nacional. Enfim, a Turquia será parte interessada na guerra contra o Iraque, o que evidenciará o papel de seu exército como “parceiro estratégico” dos Estados Unidos. Ora, o fato de que Washington faça a corte a Ancara, em virtude de sua contribuição insubstituível para a construção de uma “segunda frente” ao norte do Iraque, fortalece as tendências céticas em relação à União Européia no interior das elites militares e kemalistas.
Esse emaranhado preocupa muito um AKP pouco experiente. Porque a guerra do Iraque representa para o governo um teste perigoso. Seus eleitores, mais ainda que o resto da população, são contra a participação no conflito. Por outro lado, o exército mostra-se cético, pois teme que uma desintegração do Iraque deixe o campo livre para um Estado curdo. Preocupada com uma revitalização das forças separatistas nos territórios curdos, Ancara quer, absolutamente, impedir tal evolução.
A criação de um Estado curdo parece, contudo, afastada, visto que a direção militar turca e os Estados Unidos decidiram que os territórios curdos em questão seriam ocupados por soldados norte-americanos, particularmente a região petrolífera de Mossul e de Kirkuk. O estado-maior teria decidido, entretanto, enviar tropas para acompanharem os soldados norte-americanos, sob o pretexto de verificar se os Estados Unidos cumprem suas promessas3!
Um ’aliado estratégico’ dos EUA
A política européia da Turquia encontra-se numa fase decisiva porque os partidos pró-europeus têm ainda, internamente, muitos obstáculos a superar
Tomada pelo Conselho Nacional de Segurança (MGK4) no fim de janeiro, a decisão de uma participação na guerra foi articulada pelo establishment kemalista. “O exército e a burocracia do Ministério das Relações Exteriores cumpriram sua missão e lançaram, assim, as bases de uma cooperação multiforme com os norte-americanos”, explica um comentarista ao descrever as relações de força. E continua: “Agora, depende do governo obter do Parlamento uma decisão que formalize tudo isso5“. E o AKP, embora apresentado como “islamista” – designação que recusa – se tornará, assim, o executor da lógica do antigo centro do poder.
O que, para a elite kemalista, acarreta duas conseqüências secundárias, porém desejadas: essa decisão impopular vai, de um lado, obrigar o governo a decepcionar seus aliados e, de outro, a acentuar as cisões já perceptíveis dentro da própria direção do partido. A divisão dos papéis entre o líder do partido, o “populista” Recep Tayyip Erdogan, e o primeiro-ministro, Abdullah Gül, igualmente originário do AKP mas que, já no começo, se declarou favorável a uma participação na guerra, poderia então se transformar em rivalidade.
Para o MGK, essa participação seria inevitável. Os interesses da Turquia no norte do Iraque, bem como sua dependência em relação ao Fundo Monetário Internacional (FMI), não deixariam qualquer margem de manobra. Além disso, somente os Estados Unidos podem indenizar o país pelas conseqüências econômicas da guerra. Em resumo, a alternativa seria: ou uma perturbação do comércio regional, da qual o país seria vítima sem a menor recompensa, ou uma compensação por seu papel na “frente norte”, que reforçaria seu status de “aliado estratégico” dos Estados Unidos6.
A dissidência cipriota
O novo governo turco e as forças que o apóiam enfrentam uma classe dirigente kemalista estabelecida há muito tempo e, portanto, de modo sólido
Na seqüência desse confronto, o núcleo político-militar do poder se impôs diante do novo governo num segundo problema de política externa: a questão cipriota. Pouco após a vitória eleitoral do AKP, o secretário-geral da Organização das Nações Unidas havia dado um novo impulso a negociações que, durante muito tempo, estiveram paralisadas: no dia 11 de novembro de 2002, ele apresentou uma proposta de solução global baseada num projeto de federação de duas regiões, a qual teria permitido uma adesão comum dos cipriotas gregos e turcos à União Européia.
Evidentemente, não teria sido realista imaginar um acordo quanto a essa proposta antes da reunião de cúpula européia, no mês de dezembro. Mas as duas partes a haviam aceitado como base de discussão – os cipriotas gregos, imediatamente; e Rauf Denktash, presidente do protetorado batizado de “República Turca do Chipre Norte” (RTCN), a contragosto e mediante pressão de Ancara. Quando, após a reunião de cúpula européia, comunicou que rejeitava o essencial do plano Annan, classificado como “crime contra a humanidade”, Erdogan ficou furioso. Tratou Denktash de político anacrônico. Ante a comunicação da decisão de Copenhague de admitir a parte sul – grega – da ilha, no norte, dezenas de milhares de cipriotas turcos foram para as ruas. Com a bandeira européia na cabeça. E gritando: “Denktash, assine o plano Annan ou renuncie!”
A recusa às propostas da ONU
A criação de um Estado curdo parece afastada, pois os militares turcos e os EUA decidiram que o território curdo será ocupado por tropas norte-americanas
Abandonado por seu próprio povo, o líder da RTCN declarou que só renunciaria se Ancara lhe retirasse a confiança. Afirmou que os manifestantes eram corruptos, prestes a vender sua consciência nacional em troca de euros. Havia aí duas confissões. De um lado, insensível à opinião de seus concidadãos, Denktash é leal apenas ao poder turco. De outro lado, mesmo em Ancara, o que conta para ele não é o governo do país, mas a elite militar-kemalista que, aliás, sempre o apoiou. Também desta vez, iria recorrer a seus amigos, com êxito. Desse modo, o MGK explicou, no fim de janeiro, que “o problema cipriota é importante demais para ser considerado simplesmente como o problema dos ?irmãos turcos? da ilha. Está ligado de forma muito mais essencial e direta à segurança da própria parte continental turca”.
O líder do AKP foi criticado abertamente por haver conclamado a levar a sério a voz do povo cipriota: sua posição, segundo a qual era necessário tratar a questão cipriota em função da adesão da Turquia à União Européia, seria falsa e perigosa. Em contrapartida, Denktash obteve total apoio do MGK para sua exigência de reconhecimento da RTCN – uma recusa clara ao plano Annan, que só considera uma única soberania para o Estado cipriota que adere à União.
O dogma turco da importância estratégica da ilha é tão velho quanto o problema cipriota. Se volta a ser o principal argumento contra o plano Annan, é, evidentemente, por estar ligado à crise iraquiana. O jornalista Mehmed Ali Birand comenta da seguinte maneira a “frente da recusa” militar contra as propostas da ONU: “Eles acreditam que dispõem de melhores cartas graças à operação iraquiana e que assim, um dia, poderão negociar a partir de uma posição mais forte7.”
Comando militar é “autônomo”
Tomada pelo Conselho Nacional de Segurança (MGK) em janeiro, a decisão de participar do ataque ao Iraque foi articulada pelo establishment kemalista
As forças “obstinadas” – para retomar a expressão de Birand – não vão apenas bloquear uma possível solução cipriota, mas também desencadear uma dupla ofensiva política: contra os cipriotas turcos recalcitrantes, esses maus patriotas desmascarados por seu entusiasmo pró-europeu; e contra Erdogan, que ousou recusar o establishment kemalista. Observadores turcos vêem nisso uma luta pelo poder entre o exército e o líder do AKP, que o último não pode ganhar – principalmente porque sua virada no que diz respeito à participação na guerra vai arranhar sua aura popular.
Isso mostra o quanto a guerra do Iraque fortalece, em Ancara, os elementos que sempre frearam a aproximação entre a Turquia e a União Européia. Nada aí é por acaso: a reforma mais profunda que o país deve realizar rumo à Europa seria feita em detrimento do exército. No relatório anual sobre os progressos da Turquia, Bruxelas sempre insiste no fato de que Ancara deve, enfim, impor o primado do político sobre o militar.
Especialista em Turquia, Heinz Kramer resume essa problemática da seguinte forma: “O controle democrático do exército é garantido apenas formalmente. Na prática, o comando militar constitui um centro de decisão autônomo que escapa amplamente ao controle civil.” Uma reforma deveria impor a subordinação do estado-maior ao Ministério da Defesa, e não o contrário. Assim, e somente assim, o “poder absoluto de decisão político-securitária do comando do exército” poderia ser superado8. Segundo Kramer, essa reforma “civil” do sistema representa a tarefa de toda uma geração, tal a forma como o papel de guardião confiado ao exército é ainda pouco questionado. Esta realidade corre o risco de tornar-se o principal obstáculo à entrada da Turquia na União Européia.
A convergência ideológica
Os interesses da Turquia no norte do Iraque, bem como sua dependência em relação ao Fundo Monetário Internacional, não deixam qualquer margem de manobra
A idéia de uma “europeização” da Turquia contradiz o kemalismo tradicional por dois motivos. Primeiro, a ocidentalização de Atatürk não constituía, de modo algum, uma “democratização” no sentido ocidental9. Em segundo lugar, sua concepção nacionalista de soberania não admite que se transfira parte dela à União Européia, em caso de adesão. Isso é avaliado também pela atitude da Turquia diante do Tribunal Penal Internacional: ela não assinou o tratado fundador porque a idéia de uma jurisdição mundial parecia tão suspeita à elite kemalista quanto à classe dirigente norte-americana.
Essa convergência ideológica com a potência imperial norte-americana, que caracteriza o cerne do poder kemalista, poderia, evidentemente, alimentar, na Europa, a corrente que tende a questionar a data fixada para a abertura das negociações com a Turquia. Para evitar esse risco, será preciso que se manifeste, na própria Turquia, um novo impulso: nem kemalista, nem islamista, mas europeu. Porque, terminada a guerra no Iraque, a Turquia ainda estará à beira do mar Egeu e não num canto perdido no Oeste dos Estados Unidos. E milhões de turcos viverão, como sempre, na Europa e não na Califórnia ou numa outra região da Alcoa…
(Trad.: Iraci D. Poleti)
1 – Release da agência Reuters, 12 de dezembro de 2002. A Alcoa (Acordo para o Livre Comércio da América do Norte), que é composta pelo México, Estados Unidos e Canadá, é comumente mencionada na imprensa brasileira por sua sigla inglesa, Nafta (North American Free Trade Agreement).
2 – To Vima, Atenas, 13 de dezembro de 2002. International Herald Tribune, Paris, 13 e 14 de dezembro de 2002.
3 – Hurriyet, 4 de fevereiro de 2003.
4 – Ler, de Eric Rouleau, “Ce pouvoir si pesant des militaires turcs”, Le Monde diplomatique, setembro de 2000.
5 – Ilnur Cevik, Turkish Daily News, Ankara, 3 de fevereiro de 2003.
6 – Jürgen Go
Niels Kadritzke é jornalista.