Entre o livro-objeto e o livro-experiência
Ainda hoje, apesar de todas as transformações vividas pela sociedade nas últimas décadas, leitores adultos ainda torcem o nariz para livros que fogem ao estereótipo de simplicidade e didatismo comumente associado ao “livro para crianças”Marco Catalão
Publicado no final de 2008 pela Cosac Naify, O livro inclinado, de Peter Newell, proporciona uma curiosa experiência de leitura: por um lado, as ilustrações ricas e detalhadas nos remetem à Nova Iorque do início do século passado, com seus costumes, gestos e indumentárias remotos; por outro, a forma inusitada do livro (inclinado, em conformidade com a narrativa, que trata de um carrinho de bebê que segue ladeira abaixo, causando uma grande confusão pelo caminho) tem um aspecto inovador, que ainda hoje destoa da maior parte dos livros escritos para o público infantil.
Mais do que às crianças, a publicação desta obra no Brasil deveria interessar ao “destinatário oculto” da literatura infantil: os pais e professores que, em última instância, acabam determinando o que as crianças lêem. Ao contrário destas (que, por ainda não estarem familiarizadas com a forma canônica do livro, não se dão conta da excentricidade de um livro de formato inclinado), o leitor adulto pode constatar que muitos aspectos aparentemente “novos” e “estranhos”, a começar pelo design do próprio livro, já fazem parte da história da literatura infantil há praticamente cem anos (a publicação original da obra data de 1910).
Como se sabe, a literatura infantil é muito mais conservadora do que a chamada “literatura adulta”. Ainda hoje, apesar de todas as transformações vividas pela sociedade nas últimas décadas, muitos leitores adultos ainda torcem o nariz para livros que fogem ao estereótipo de simplicidade e didatismo comumente associado ao “livro para crianças”. Assim, é bastante salutar a publicação de uma obra quase centenária em que se observa um bebê se divertindo gratuitamente com a destruição causada pelo seu “terrível carrinho”, sem nenhuma lição de moral implícita.
Em A formação do leitor literário (Editora Global), a pesquisadora Teresa Colomer observa que a utilização de recursos não-verbais “tem sido um dos motores da renovação da literatura infantil moderna”. Rompendo com os pressupostos de “facilitação” que tradicionalmente regem a produção de livros para crianças, muitas obras infantis incorporaram princípios das vanguardas do início do século 20, tratando a página impressa não mais como suporte neutro e indiferente, mas como recurso expressivo aberto à experimentação.
Se a iniciativa de Peter Newell remonta a 1910, a maior difusão de experimentos desse tipo só se deu muito mais tarde (fundamentalmente, a partir da década de 1990), com a popularização dos chamados “livros-objetos”, em que a narrativa verbal é acompanhada (ou substituída) pela narrativa visual. Evidentemente, esse tipo de produção artística pressupõe um leitor ativo, familiarizado com a interpretação de recursos não-verbais.
Inquietação e deleite
Outro livro recentemente lançado pela Cosac Naify, Na noite escura, de Bruno Munari, é um bom exemplo desse tipo de narrativa: muito mais importante que as palavras (completamente supérfluas e dispensáveis neste caso) são as ilustrações. Aliás, o próprio termo “ilustração” já se torna obsoleto aqui: as imagens não ilustram uma narrativa; elas são a narrativa.
Um texto completamente banal (“uma luzinha / bem longe / bem longe / está brilhando”) vai ganhando corpo e consistência através das páginas recortadas do livro, que convidam o leitor a explorá-las com a inquietação e o deleite de quem explora um ambiente noturno. Seguimos pela noite, caminhamos entre os minúsculos habitantes do mato, entramos numa gruta, tudo graças à forma, à cor e à textura das páginas.
Mais do que livro-objeto (afinal, o ponto amarelo na folha escura não se confunde com a luz de um vaga-lume, tampouco a página fosca mimetiza a forma e a textura de uma rocha), poderíamos classificar o livro de Munari como um livro-experiência, que devolve à leitura aquela carga de surpresa e enlevo que caracteriza a verdadeira obra artística (para além de pretensiosos “fins