Entre vertigem e afogamento: o corpo arrebatado em O duplo refletido
Confira resenha de O duplo refletido, livro de estreia de Lorraine Ramos Assis
Seria um tanto óbvio ler O duplo refletido segundo as ideias de duplo ou de reflexo, até porque assim já o fizeram muito melhor do que eu seria capaz Luizza Milczanowski no prefácio e Priscila Branco no posfácio. Como falar depois delas sobre o que já expressaram?
Seria também um tanto absurdo não retratar aqui o que me avassalou para o livro de estreia de Lorraine Ramos Assis: um profundo estranhamento, sensação inflamada de sair da leitura com uma interrogação gigante pendurada na testa balançando respostas sem perguntas.
Se o título tenta nos levar a uma reflexão sobre duplicidade e alteridade, nos alicia para entrarmos nessa água turva tentando vislumbrar as imagens refletidas na lâmina, ao mergulharmos, porém, as figuras se desfazem e multiplicam, tornam-se diversas e irreconstituíveis. Cacos imagéticos destilados a cada verso, demandando do leitor que os monte como a um grande quebra-cabeça com arestas a aparar.
Cortamos os dedos ao nos depararmos com as personagens Lyna e Lineia, ambas sugestivamente com a mesma inicial – que é, por acaso (ou não?), também de Lorraine. A primeira pessoa se torna terceira, o singular, plural, e o estranhamento de uma pretensa narrativa escamoteada em versos escamoteados na contação de uma história cria de poema em poema (ou de parte em parte de um só grande épico) um estranhamento cada vez mais transbordante. Um pacto fantasmático como Philippe Lejeune não imaginaria possível. Quem são Lyna, Lineia e Lorraine nesta história é para o leitor decidir. Se for capaz. Ele que lute.
Nesse mise-en-abyme, cabe a nós vislumbrarmos quem segura quem à beira do abismo. E quem há de cair.
No decorrer das páginas, somos bombardeados por diversos temas, cada qual um soco a mais no estômago contrito de incertezas. A orfandade nos atinge como uma tentadora ligação autobiográfica, depois nos deixa na mesma velocidade com que veio para dar espaço a nomes, lugares, passagens que se sucedem sem se delimitar.
O abuso aparece encravado em corpos femininos que não se nomeiam e assim são um, dois e todos; a tentativa recorrente de distanciar-se do próprio corpo marca o processo de transmutação da dor à palavra. Dores consecutivas ensejam versos de sobrevivência. Referências nem sempre claras para quem lê permeiam uma escrita íntima e afetiva. História contada no fio cortante do anacronismo, o tempo some, as personagens se misturam, se desfazem, tornam a se deixar antever mas sempre sem bordas definidas, o quem, o quando e o onde se dissolvem. Tudo é palavra.
Suspensos no universo da poesia de Lorraine, onde tudo se derrama, buscamos em vão um equilíbrio. Como num sonho, estamos sentindo a vertigem do voo e, descontrolado, o corpo não tem onde pousar.
Essa pletora de temas, de eus poéticos nem sempre/quase nunca definidos, de eventos e personagens que vêm com as mesmas força e rapidez com que se esvaem, torna uma análise rápida desta obra impossível. É preciso mastigar com calma antes de devorar este livro.
Qualquer obviedade é uma armadilha.
Olhar apenas a palavra é limitante, tentar olhar para além dela, imprevisível. E esse é o mérito maior de O duplo refletido. Um livro que exige cuidado, mas que não pode jamais ser fruído sem arrebatamento.
O desafio é aceitar a vertigem.
E está dado ao leitor.
Milena Martins Moura é poeta, editora da revista cassandra e doutoranda em literatura comparada pela Universidade Federal Fluminense.