A escolha dos heróis
A intriga, inspirada em fatos reais, se desenrola nos Estados Unidos, em 1971. Daniel Ellsberg, analista de think tank do Pentágono, assume todos os riscos para fotocopiar um documento, rotulado como “confidencial”, que prova que John Kennedy e Lyndon Johnson tinham mentido ao Congresso e ao público sobre a Guerra do Vietnã, que eles sabiam ser impossível de vencer.
Em 22 de janeiro de 2018, os Repórteres sem Fronteiras e a Universal Pictures International levaram convidados ao cinema Publicis Drugstore, na Avenida Champs-Élysées, em Paris. Iam assistir ao lançamento de um filme que “ausculta as noções de verdade e investigação, colocando o jornalismo no centro da intriga”: The Post, de Steven Spielberg, projetado nas salas francesas com o título de Pentagon Papers (no Brasil, o título é The Post: a guerra secreta).
A intriga, inspirada em fatos reais, se desenrola nos Estados Unidos, em 1971. Daniel Ellsberg, analista de think tank do Pentágono, assume todos os riscos para fotocopiar um documento, rotulado como “confidencial”, que prova que John Kennedy e Lyndon Johnson tinham mentido ao Congresso e ao público sobre a Guerra do Vietnã, que eles sabiam ser impossível de vencer. O New York Times publica um resumo, mas uma decisão judicial o proíbe de continuar. Modesto cotidiano regional, o Washington Post substituirá seu prestigioso colega?
Naquela segunda-feira à noite em Paris, os jornalistas apareceram em grande número para admirar a interpretação de Meryl Streep no papel de Katharine Graham, a dona do Post, e a de Tom Hanks, que faz o redator-chefe. Sensível às batalhas feministas atuais, o diretor concentrou seu relato em uma mulher, e não nos protagonistas que, de fato, assumiram os maiores riscos e desempenharam os principais papéis: Ellsberg, o denunciante, processado por “espionagem” em virtude de uma lei de 1917 e passível de prisão perpétua; e a equipe do New York Times, que começou tudo. Essa escolha cinematograficamente correta irritou o redator-chefe internacional do Times, encarregado de supervisionar a publicação dos documentos em junho de 1971. “É inteiramente falso!”, fulminou ao ler o roteiro. “Esse filme é uma fraude.”1 Sim, mas também um sucesso: perto de 1 milhão de ingressos vendidos em três semanas de exibição na França.
Na sala cheia do Publicis Drugstore, anunciou-se a presença de Françoise Nyssen, ministra da Cultura, e de Harlem Désir, representante da liberdade dos meios de comunicação no seio da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE). Por uma questão de delicadeza, ninguém mencionou que em 2013, quando Désir era primeiro-secretário do Partido Socialista, então no poder na França, Paris, como várias outras capitais europeias, havia recusado o asilo político pedido por Edward Snowden, responsável pelos vazamentos sobre a vigilância em massa exercida na internet pelos Estados Unidos. Como naquela noite se tratava de celebrar Katharine Graham, e não Daniel Ellsberg, a chefona da imprensa, e não o rebelde, seria inútil estragar o prazer dos espectadores com ruminações morosas sobre o destino dos denunciantes atuais. Um deles, Julian Assange, fundador do WikiLeaks, está enclausurado há mais de cinco anos na embaixada do Equador em Londres; o outro, Snowden, continua refugiado na Rússia… sem que Nyssen, a Europa ou o Partido Socialista se preocupem muito com isso.
Do outro lado do Atlântico, os democratas também não brilham pela defesa de uma liberdade de expressão que, no entanto, julgam sagrada quando Donald Trump a desafia. “A atitude do atual governo incitou você a fazer esse filme”, disse a Steven Spielberg um jornalista da BBC. “Mas, se analisar os números, você verá que o governo de Barack Obama intentou mais processos em virtude da lei de espionagem do que qualquer outro. Ainda assim, em Hollywood ninguém se apressou a dizer ou fazer qualquer coisa” (17 dez. 2017). “A meu ver, são coisas diferentes”, balbuciou Spielberg, ardoroso defensor dos democratas. Já Ellsberg reconhece seus herdeiros: “Chelsea Manning2 e Edward Snowden são meus heróis. Identifico-me mais com eles do que com quaisquer outras pessoas” (Democracy Now!, 6 dez. 2017). Mais do que com Katharine Graham, sem dúvida, cuja decisão de publicar os Pentagon Papers, malgrado a proibição, em 18 de junho de 1971, encantou os profissionais da informação reunidos para o lançamento parisiense. Certa de seu heroísmo cotidiano, a sala aplaudiu calorosamente e depois se dispersou para jantar.
Pouco depois, a mídia saudou uma “obra-prima” com a qual “Spielberg ancora a democracia nas impressoras” (Le Monde, 24 jan. 2018); “um apelo bem contemporâneo em favor de um contrapoder independente e forte, mais necessário que nunca em nossos dias” (Télérama, 23 jan. 2018); “uma magnífica lição de coragem e democracia” (Le Journal du Dimanche, 21 jan. 2018)…
Compreendemos a felicidade proporcionada por uma profissão pintada pelo menos uma vez com uma luz favorável, mas essa recepção barulhenta repousa sobre um imenso mal-entendido. A heroína de Spielberg não é repórter, mas proprietária do Washington Post, o qual herdou do marido. Na primavera de 1971, a vimos exprimir todo o seu amor pela independência editorial… colocando seu jornal na Bolsa de Valores. Íntima de Robert McNamara, ministro da Defesa dos governos Kennedy e Johnson, tinha amizade também com Henry Kissinger, consultor de Richard Nixon. O suspense todo do filme – e a sorte da liberdade de imprensa – repousa, pois, na decisão econômica de uma dona de empresa: irá ela censurar ou não a publicação de um artigo que põe em perigo o valor em Bolsa de sua sociedade e de seus amigos mundanos? Aqui, a magia do cinema e a miséria de uma profissão convergem para erigir em ato de resistência épica aquilo que deveria constituir uma norma: a ausência de pressão econômica ou política nas decisões editoriais. A regra teve de virar exceção para que se fizesse, do respeito a ela, um acontecimento histórico…
No entanto, não foi dos industriais, dos publicitários ou da Bolsa que veio uma das reações mais entusiastas ao filme de Spielberg. No dia de seu lançamento (23 de janeiro de 2018), o site Mediapart consagrou-lhe toda a sua página inicial. “Em The Post”, escreveu seu diretor, Edwy Plenel, “a questão da independência é que está no âmago da história: saber resistir às pressões, ousar publicar o que os poderes gostariam de esconder, emancipar-se da tutela dos donos, defender o poder soberano da redação.” A superprodução hollywoodiana comoveu Plenel por dois motivos. Primeiro, porque “quase não se encontra um grande filme francês que entronize o jornalismo como cavaleiro da democracia”, um escândalo tanto mais revoltante quanto – acompanhem o raciocínio – “a curta história do Mediapart, que festejará seus dez anos em março próximo” e aguarda apenas um diretor intrépido para pôr em cena sua epopeia.
Mais fundamentalmente, Plenel atribui a ausência, na França, de um “imaginário democrático” tal qual cultivado por Spielberg ao “iliberalismo francês, esse privilégio concedido ao poder, notadamente sob sua forma estatal, e não ao indivíduo e suas audácias solitárias”. Vigiado pelos serviços de François Mitterrand nos anos 1980, ele conhece bem os limites à liberdade de informar impostos pelo Estado. Todavia, sua queixa omite que ele mesmo, em outras circunstâncias, manteve relações de maior cumplicidade com o poder.
Desestabilizados pela pesquisa de Pierre Péan e Philippe Cohen, La Face cachée du monde [A face oculta do mundo] (Fayard), surgida em 2003, Plenel, então diretor de redação do Le Monde, e Jean-Marie Colombani, diretor de publicação, foram num dia de março à Praça Beauvau para discutir o caso com o ministro do Interior na época, Nicolas Sarkozy. O encontro entre os pretensos pilares do contrapoder e o ministro da Polícia, cujo objetivo era contrabalançar as “audácias solitárias” de uma dupla de repórteres independentes, forneceria uma boa trama a um filme realista sobre a imprensa francesa. Um elemento do roteiro foi, de resto, confirmado pelo próprio Plenel em uma carta ao semanário Marianne (18 mar. 2006): “Num dia de 2003, Jean-Marie Colombani me levou a um encontro que ele havia marcado com Nicolas Sarkozy. […] Convencido de que os ataques ao Le Monde eram em parte inspirados pelo grupo de Jacques Chirac, Jean-Marie Colombani buscava junto a Sarkozy informações capazes de amparar essa hipótese”.
Organizar o esquecimento e reformatar a memória coletiva valorizando a conduta corajosa que esconde cem pequenas fraquezas e compromissos, tal é a operação de absolvição coletiva realizada por The Post. Quem dizia Washington Post pensava na investigação sobre o escândalo Watergate (1972-1974), levado à tela por Alan Pakula em 1976 no filme Todos os homens do presidente; agora, nos lembraremos também de outro momento de coragem de Katharine Graham. E resmungaremos de impaciência quando um desmancha-prazeres lembrar que, em 1987, uma investigação de Robert Parry sobre o financiamento, pela CIA, da guerrilha de extrema direita na Nicarágua foi amenizada para agradar à proprietária, que no fim de semana seguinte recebeu em sua casa Henry Kissinger;3 ou que o jornal apoiou com toda a sua força o desencadeamento da Guerra do Iraque, em 2003; ou que ele preferia a Fidel Castro ditadores de direita como Augusto Pinochet, “afinal de contas menos nocivos que os dirigentes comunistas, sobretudo porque seus regimes eram mais suscetíveis de abrir caminho a democracias liberais” (The Washington Post, 12 dez. 2006); ou que presenteou patrocinadores privados, por US$ 25 mil o couvert, com o acesso a jantares que reuniam jornalistas da casa e personalidades influentes, antes de reconhecer um “vacilo ético de proporções monumentais” (The Washington Post, 12 jul. 2009); ou que se vendeu em 2013 por US$ 250 milhões ao fundador da Amazon, Jeffrey Bezos; ou que proibiu seus jornalistas, a partir de maio de 2017, de “prejudicar clientes, anunciantes, assinantes, vendedores, fornecedores ou sócios” nas redes sociais (Washingtonian, 27 jun. 2017); ou que conclama a uma intervenção norte-americana maior na Síria e a uma guerra no Irã (The Washington Post, 22 jan. 2018); ou que sua obsessão anti-Rússia o levou a publicar histórias falsas em série (The Intercept, 4 jan. 2017). Certo, mas isso não daria um bom filme.
Recordando suas aventuras em uma longa entrevista à revista Rolling Stone, Daniel Ellsberg concluiu, há 35 anos: “Isso confirma o que sei dos profissionais de mídia; muitos deles aspiram a fazer parte do poder, em vez de encarnar um quarto poder independente” (8 nov. 1973). Depois, como todos sabem, tudo mudou…
*Pierre Rimbert é jornalista do Le Monde Diplomatique.
1 Citado por Thomas Vinciguerra, “Hell hath no fury like The New York Times scorned by Hollywood” [Nem no inferno há tanta fúria quanto no The New York Times humilhado por Hollywood], Columbia Journalism Review, 1º maio 2017. Disponível em: <www.cjr.org>.
2 Chelsea Manning (nascida Bradley Manning) é uma analista do Exército norte-americano condenada em 2013 por passar ao WikiLeaks documentos militares sigilosos. Foi libertada em maio de 2017.
3 Norman Solomon, “The real story behind Katharine Graham and ‘The Post’” [A verdadeira história por trás de Katharine Graham e The Post], HuffPos