Estado e cooperação internacional na luta contra o coronavírus

Direito coletivo

Estado e cooperação internacional na luta contra o coronavírus

por Bruno Luís Talpai e Pedro Gonet Branco
24 de março de 2020
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A discussão a respeito da internação compulsória de indivíduos portadores de doenças infecciosas já ocorria para casos de tuberculose, por exemplo. Há numerosas recomendações e decisões judiciais que permitem o internamento compulsório para a continuidade do tratamento contra a referida doença. Também nas circunstâncias atuais, de guerra contra o Covid-19, o direito à saúde coletiva se sobressai ao direito à liberdade individual dos que estão contagiados ou com grave suspeita de contágio pelo Sars-CoV2.

Tempos de crise internacional suscitam discussões, de ordem política e jurídica, sobre os conceitos de soberania e globalização. De um lado, há quem pregue o prevalecimento do Estado nas suas decisões frente ao sistema internacional, mantendo-o “forte”, no intuito de preservar a sua soberania. Há outros que pregam a cooperação internacional e a criação de um sistema global internacionalizado, uma vez que as ações realizadas em um país interferem necessariamente em outros.

Em entrevista ao The New York Times, o deputado norte-americano Andy Levin afirmou que estamos vivendo o pior cenário imaginável, algo que exige a cooperação de todos independentemente de posição ideológica e política. Ele se refere ao Covid-19 – termo técnico que designa a doença do coronavírus –, causado pelo Sars-CoV-2. As manchetes de todos os jornais, as transmissões de todos os canais de notícia, a grande maioria das mensagens enviadas por WhatsApp, as discussões políticas em todo o mundo, tudo hoje tem como tema o coronavírus.

A doença, que começou a se alastrar pelo mundo a partir da cidade chinesa de Wuhan, já contaminou moradores de todos os continentes. Pela primeira vez desde 2009, quando houve a Gripe Suína (H1N1), a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou que um surto de doença alcançou a dimensão de uma pandemia. Isso significa, nas palavras do Diretor-Geral da OMS, que os países devem tomar medidas “urgentes e agressivas” para conter a disseminação da moléstia.

O congresso brasileiro declarou, no dia 20 de março, estado de calamidade pública em decorrência do novo vírus. A situação calamitosa se exemplifica na própria forma como se deu a deliberação no Senado: os representantes se reuniram por videoconferência para evitar contato e, assim, diminuir a chance de proliferação do vírus. O presidente do Senado já foi contagiado pelo Sars-CoV-2. Também o considerado braço-direito do presidente da República e ministro chefe do gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República contraiu a Covid-19. O cenário, de fato, parece o pior, como manifestou Andy Levin.

Políticas públicas

O The New York Times opinou que “o coronavírus atingiu mais fortemente a Europa que a China, porque seus líderes falharam em agir com rapidez e ousadia”. E é pelo Direito que se conseguirá implementar políticas públicas aptas a frear a disseminação da doença.

Diante desse quadro, uma portaria conjunta dos Ministérios da Saúde e da Justiça e Segurança Pública, com o objetivo de dar instruções para a execução da Lei 13.979/2020, disciplinou a compulsoriedade das medidas relativas ao enfrentamento do coronavírus.

A internação compulsória para proteger a saúde coletiva não é novidade, nem mesmo no contexto do combate ao Covid-19. Sete dias antes da edição da portaria interministerial, uma decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios determinou a compulsoriedade do teste que demonstra contágio pelo vírus e de isolamento domiciliar. Um advogado, com sintomas da doença, que se recusava a realizar o teste e a ficar em isolamento, foi obrigado pela decisão judicial a fornecer material biológico para que o teste fosse executado, bem como a se manter em isolamento domiciliar. A decisão foi tomada com base na Lei 13.979/2020 e atribuiu multa de até R$ 20 mil para o caso de descumprimento. O teste comprovou que o advogado estava contaminado com a doença.

Liberdade individual

Apesar de já existir lei que permita decisões como essa, a dimensão que tomou o Covid-19 não permite que se aguarde manifestação do Poder Judiciário para que sejam tomadas medidas como isolamento domiciliar, internação hospitalar e realização de testes que detectam a doença. A portaria entra em cena para permitir que gestores locais do Sistema Único de Saúde (SUS), profissionais de saúde, dirigentes da administração hospitalar e agentes de vigilância epidemiológica determinem o isolamento ou a realização compulsória de exames médicos, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos. Permite, ainda, que se solicite auxílio de força policial para que as referidas medidas sejam cumpridas.

Essa decisão suscita questões de ordem constitucional e política: o direito à saúde é mais relevante que o direito à liberdade de cada cidadão? Essa questão deve analisada caso a caso. Há casos em que a circulação de indivíduos que carregam certas doenças podem promover a disseminação de problemas de saúde, a consequente superlotação de hospitais e a incapacidade de o Estado garantir o direito à saúde, previsto na Constituição Federal.

A discussão a respeito da internação compulsória de indivíduos portadores de doenças infecciosas já ocorria para casos de tuberculose, por exemplo. Há numerosas recomendações e decisões judiciais que permitem o internamento compulsório para a continuidade do tratamento contra a referida doença. Também nas circunstâncias atuais, de guerra contra o Covid-19, o direito à saúde coletiva se sobressai ao direito à liberdade individual dos que estão contagiados ou com grave suspeita de contágio pelo Sars-CoV2.

O problema de saúde pública exige que o Estado adote ações para preservar tanto a saúde e a integridade do doente, quanto de toda a coletividade, que fica exposta à contaminação dos indivíduos que recusam tratamento. É precisamente em momentos como este que modelos de governança global ganham relevância, como a força vinculante dos tratados internacionais e os entendimentos fixados em soft law – diretrizes, resoluções e declarações que, apesar de não terem força de lei, gozam de prestígio internacional, por exemplo a Agenda 21, documento estabelecido com a finalidade da cooperação das nações em temas relacionados a problemas socioambientais.

Decisão acertada

Assim sendo, acertada é a decisão tomada com o intuito de reduzir o risco de exposição ao vírus. Não são medidas arbitrárias, mas postura inspirada em outras nações (como Reino Unido, Estados Unidos, União Europeia, China) que não medem esforços para buscar a segurança dos seus. O manifesto perigo de dano da epidemia, que repercute até mesmo na economia global, exige decisões assim, que apesar de ousadas, são plenamente legais.

Do ponto de vista político, há uma interessante manifestação em relação à participação dos diferentes Estados soberanos. Há ainda de se observar a necessidade da cooperação internacional na solução desta crise, seja pela criação de vacinas e adoção de outras medidas profiláticas, seja pelo apoio financeiro à economia global. Os pontos extremos da globalização ou dos nacionalismos, bem como a atuação do Estado em cooperação com o privado, quebrando o paradigma da necessidade de um Estado mínimo ou máximo para a solução dos problemas, precisam encontrar a virtude no ponto médio comum.

A isso se soma a indispensável solidariedade entre países, que devem adotar um comportamento apto a mitigar os efeitos da pandemia na vida de cada ser humano, não procurar culpados pela expansão do vírus. Os ensinamentos do gênio Aristóteles mostram-se apropriados para a situação atual: o mundo da política sozinho não trará a paz e a solução para todos os problemas mundiais, mas a sua ausência é o pior dos cenários.

Bruno Luís Talpai é advogado, bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC/SP, mestrando em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, mestrando em Direito Constitucional e Processual Tributário pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e pós-graduando em Ciência Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo.

Pedro Gonet Branco é estudante visitante da Universidade UC Berkeley, graduando em Direito pela Universidade de Brasília. Editor-chefe da Revista dos Estudantes de Direito da Universidade de Brasília.



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