“Estado profundo” comanda o Sudão
Pela primeira vez em décadas, os militares sudaneses precisam dividir o poder com os civis que dominam o Conselho Soberano, empossado em 21 de agosto. Uma transição de 39 meses deve conduzir a uma Constituição democrática. Mas o Exército mantém os ministérios-chave (Defesa e Interior) em um país empobrecido que depende da ajuda dos aliados sauditas e emiradenses
Em 4 de junho de 2019, homens armados, supostamente agindo em nome do Estado, dispersaram os civis que estavam reunidos havia quase dois meses em frente à sede do quartel-general das Forças Armadas Sudanesas (FAS), em Cartum. A repressão, que provocou a morte de 130 a 150 manifestantes, chocou por sua dimensão em uma África árabe em ebulição.1
Desde junho de 1989, o Sudão, país entre a África e o Oriente Médio, encontra-se nas mãos de um grupo islâmico que chegou ao poder por um golpe de Estado militar. O maior país do continente sofria as consequências da Guerra Fria naquele momento e já padecia desde antes de rupturas no tecido social por razões culturais profundas. O governo islâmico, dirigido por Omar al-Bachir, buscou, durante anos, promover um programa fundamentalista revolucionário global que colocasse fim à “guerra religiosa” contra o Norte (majoritariamente muçulmano) e contra o Sul (majoritariamente cristão). A vontade de autonomia do Sul tinha suscitado um longo confronto militar desde a independência, em 1956.
O enorme fracasso dessa estratégia obrigou Al-Bachir a aceitar a secessão do Sul (600 mil quilômetros quadrados) em 2011.2 O Sudão do Sul tornou-se o 193o membro da ONU. Cartum já não podia mais contar com sua estreita aliança com a China, já que ela se baseava na produção de petróleo, atualmente nas mãos do novo governo de Juba. Os militares cometeram o erro de negligenciar o setor agrícola, que se fragmentou. Ao mesmo tempo, tentaram impor uma visão radical e rigorosa de um islã até então praticado de forma tolerante pela população. Esse foi o novo fracasso: a exacerbação de um arabismo artificial na região periférica de Darfur provocou uma guerra civil que perdura até hoje. A essa espiral de erros, os dirigentes de Cartum somaram a repressão brutal dos combatentes negros muçulmanos que tinham lutado ao lado de sulistas derrotados e que tiveram de ir para o Norte com o fim da guerra. Esses combatentes se revoltaram, revelando a dimensão racial e social dos conflitos intersudaneses.
Assim, em 2019, o regime islâmico não tem mais o que oferecer além do espetáculo de seus repetidos fracassos e corrupção crescente. A crise econômica foi a gota que transbordou o copo, provocando um enfrentamento direto entre a junta e a população. Após as rebeliões de 2013, reprimidas com sangue, os partidários da liberação do regime, que se reorganizaram na clandestinidade, reapareceram em 2019 com a Declaração da Liberdade e da Mudança (DLM), pilotada pela Aliança pela Liberdade e Mudança (ALM).
Um acordo histórico
Esse movimento democrático, contudo, tem três pontos fracos: é muito urbano, mesmo no interior; reagrupa principalmente os Walad al-Beled, árabes de províncias centrais; e – à exceção da Associação de Profissionais Sudaneses (APS) – é atravessado por profundas divisões. Para fazer frente ao movimento, o Conselho Militar Transitório (CMT) passou a exercer de fato o poder depois de destituir Al-Bachir em abril. Daí a ambiguidade da situação: o que houve foi um golpe de Estado militar ou uma revolução democrática? Pelas evidências, a queda do ditador não significou a queda da ditadura, e o CMT assumiu o poder sem nenhum mandato originado no enorme processo de contestação popular alavancado pelas manifestações de 19 de dezembro de 2018.
Contrariamente aos levantes anteriores (1964 e 1985), esse movimento, logo batizado de “sentaço”, partiu do interior e rapidamente tomou proporções nacionais. Os manifestantes e suas organizações convergiram para a capital, reunindo mais de meio milhão de pessoas nas ruas durante semanas. Como uma espécie de acampamento festivo, o agrupamento funcionou também como um encontro político permanente onde cada um contribuía para o coletivo. Todos cuidavam das crianças – e eram muitas –; as mulheres, que se apropriaram de sua voz, eram onipresentes, e os habitantes do interior descobriam a capital. As palavras de ordem, no feminino, marcaram um movimento resolutamente pacífico: silmiya (não violência), hurriya (liberdade), thawra (revolução), didd al haramiyya (à base de valores), madaniya (o poder aos civis). Durante todo o ramadã, nesse país muçulmano governado por islâmicos há trinta anos, os manifestantes respeitavam ou não o jejum, de acordo com a escolha individual, invariavelmente sob um sol de 50 °C. Os comerciantes, inclusive os cristãos, forneciam os bens de primeira necessidade à multidão e organizavam turnos e limpeza. Os pequenos brincavam entre as pernas e os fuzis dos soldados, que confraternizavam com a multidão.
Os insurgentes, contudo, longe das câmeras e da visão, eram brutalizados ou assassinados. Em trinta anos de poder, um grupo de islâmicos, cada vez mais restrito, porém mais poderoso, tinha construído um Estado paralelo. Os atiradores que disparavam contra os manifestantes não eram soldados regulares do Exército, que fazia seu melhor para protegê-los. Tratava-se de mercenários oriundos de Darfur – as Forças de Apoio Rápido (FAR) –, ou seja, batalhões do Serviço Nacional de Informação e Segurança (Snis), dirigido por Salash Gosh. É possível aqui falar em “Estado profundo” em referência ao conceito forjado na Turquia nos anos de 1990. O levante de Darfur, em 2003, rompeu a imagem de homogeneidade por meio de um islã radical e trouxe à tona a realidade de um regime mafioso reconvertido com o comércio ilegal de petróleo (1999-2011). A secessão do Sul tirou desse governo o que lhe restava de aura nacionalista. A falência econômica, em 2018, o fez perder seus últimos resquícios de legitimidade. Por outro lado, os arcanos de Estado tradicionais sudaneses foram substituídos por redes de poder nas mãos de um punhado de islâmicos.
Um dos paradoxos da grande movimentação revolucionária no início de 2019 reside em seu profundo conservadorismo. A nostalgia do entusiasmo libertador da independência impregnava os espíritos. Balançavam bandeiras de outrora, cantavam canções de época. “Nós nos equivocamos desde o início”, exclamava um manifestante em maio. “Além disso, não somos árabes, somos africanos islamizados; seria necessário mudar o idioma, passar ao inglês.” Durante o período de 6 de abril (início da ocupação da praça em frente às FAS) a 3 de junho (massacres), “parecia que o Sudão estava retrocedendo”, confessou-nos um diplomata francês em Cartum, referindo-se ao choque brutal da repressão empreendida pelos agentes do “Estado profundo”.
Internacionalmente, poucos analistas compreenderam essa revolução nostálgica. Os paralelos com as “primaveras árabes” rapidamente revelaram seus limites. De fato, o movimento manifestava o mesmo tipo de hostilidade tanto contra a ditadura como contra uma aspiração à democracia. Por outro lado, não nutria nenhuma ilusão quanto ao islã na política, cuja evocação, depois de trinta anos de abuso e corrupção do regime, suscitava uma violência latente entre os manifestantes.
A revolução deveria igualmente enfrentar o “problema colonial interior”. Organizador dessa repressão sangrenta, o general Mohamed Hamdane Daglo, chamado de “Hemetti”, é originário da província de Darfur. Durante anos, esse que hoje posa de libertador serviu de supletivo aos árabes do regime de Cartum perante as “ameaças etnicamente alógenas” do interior, primeiro no Sul – até a sessão –, depois em Darfur. Ele reuniu, sob a égide das Forças de Apoio Rápido, numerosos ex-combatentes de guerras sahelianas: chadianos, nigerianos, centro-africanos e até desertores do Boko Haram. Nas ruas de Cartum, paira no ar um clima de ocupação estrangeira.
Isso explica o apoio da Arábia Saudita e dos Emirados Árabes Unidos à repressão “colonial”: trata-se, para esses dois países, de restaurar um regime islâmico, sem Irmandade Muçulmana nem base popular, apoiado sobre um “Estado profundo” pobre, ou seja, dependente de apoio estrangeiro, como o de seu aliado norte-americano. Para Riad e Abu Dhabi, que compartilham o mesmo ponto de vista sobre os levantes políticos e sociais das “primaveras” de 2001, essa é a configuração ideal: reforçar um islamismo autoritário institucional bloqueando as revoluções radicais descontroladas; assegurar a dominação árabe no mundo muçulmano (o que marginaliza a Turquia e o Irã); e, por fim, monopolizar as fontes de finança islâmicas, o que implica afastar o Catar. Assim sob controle, a revolução sudanesa, apoiada pelo presidente Abdel Fatah al-Sissi, inscreve-se igualmente na continuidade do imperialismo egípcio sobre o Vale do Nilo. Ela representa a esperança de uma vitória absoluta para o campo islâmico conservador, que luta para impor sua hegemonia desde 2011. “Hemetti” já enviou tropas à Líbia e ao Iêmen por conta dos sudaneses.
É nesse nó complexo que a “comunidade internacional”, antes de mais nada preocupada em preservar a “estabilidade” do Sudão, tentou conferir legitimidade ao processo, apoiando um primeiro acordo entre o Conselho Militar Transitório e os opositores da Aliança pela Liberdade e Mudança, no dia 5 de julho, e depois um segundo, em 3 de agosto, sob a batuta do mediador da União Africana, Mohamed el Hacen Lebatt. Esse acordo deverá abrir um processo institucional de 21 meses para a elaboração de uma nova Constituição e um regime civil, e prevê a instalação de um Conselho Soberano composto de cinco militares e cinco civis. Estes últimos devem nomear um primeiro-ministro. Além disso, o Parlamento deverá ser instituído em até noventa dias após a assinatura do acordo. As garantias, contudo, parecem frágeis, para não dizer inexistentes. Quem vai controlar os militares e os serviços de informação? Três regiões (Darfur, Nilo Azul e Kordofan) permanecem marcadas por conflitos armados.
Desenvoltura norte-americana
Tibor Nagy, subsecretário de Estado norte-americano para assuntos africanos, explica essa complacência internacional pelo temor de ver o Sudão imerso no caos, como a Somália ou a Líbia – embora esses dois países tenham muito pouco em comum com o vizinho onde existe uma tradição democrática bem enraizada. Além disso, a questão do radicalismo islâmico está nos escombros da ditadura, e não no movimento revolucionário. “Nosso objetivo era que o país chegasse a uma transição aceitável para o povo sudanês, mas não compete a nós fabricar as salsichas na sequência”,3 explica Nagy, cujo conhecimento sobre o contexto local parece ser bastante rudimentar.
Deixemos de lado a incongruência da imagem da salsicha para retornar à fragilidade estrutural do acordo de transição: o “Estado profundo” sudanês se mantém graças a seus poderosos protetores sauditas e emiradenses. É certo que os opositores sudaneses ganharam o confronto com a ditadura islâmico-militar, mas, diante das recomposições geopolíticas do mundo árabe, essa vitória teria pouco peso porque ainda seria necessário “fabricar as salsichas”. Uns após os outros, os atores mais significativos da contestação – movimentos armados do Kordofan, Associação de Profissionais Sudaneses – recusam-se a participar do futuro governo nacional, que figura cada vez mais como coisa dos sauditas e dos emiradenses. Se de um lado o Sudão saiu da ditadura, de outro ainda não entrou nos trilhos de uma nova estabilidade – que a desenvoltura dos Estados Unidos torna cada vez mais improvável.
Gérard Prunier é consultor independente, integrante do Atlantic Council.
1 Ler Giovanna Lelli, “Obstination démocratique au Soudan” [Obstinação democrática no Sudão], Le Monde Diplomatique, maio 2019.
2 Ler “Frères ennemis du Soudan du Sud” [Irmãos inimigos do Sudão do Sul], Le Monde Diplomatique, jul. 2017.
3 Adrienne Klasa, “US backs Sudan transition deal for fear of state colapse” [Estados Unidos apoiam o acordo de transição do Sudão por medo de colapso do Estado], Financial Times, Londres, 11 jul. 2019.