Estados Unidos, México e Canadá: uma renegociação desconcertante
A renegociação do Nafta trouxe alívio para os quatro dirigentes envolvidos. Trump precisava de uma vitória antes das eleições de meio de mandato. Trudeau queria impedir que o processo se fragmentasse em conversas bilaterais. Peña Nieto sonhava com uma vitória antes de deixar o cargo. E, para Obrador, o acordo significa que não terá de enfrentar a inquietação dos mercados
Uma coisa é certa: após catorze meses de um diálogo às vezes virulento, a assinatura do Tratado Estados Unidos-México-Canadá (USMCA, na sigla em inglês), que concluiu a renegociação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta, na sigla em inglês), em 1º de outubro de 2018, veio acompanhada de quatro suspiros de alívio – os dos quatro líderes envolvidos.
Donald Trump precisava de uma vitória antes das eleições de meio de mandato, em novembro. Havia prometido, durante sua campanha presidencial, melhorar ou “partir em pedaços” o Nafta e pretendia exibir os resultados antes de intensificar sua guerra comercial contra a China. Em curto-circuito desde a última série de encontros entre México e Washington, o primeiro-ministro canadense, Justin Trudeau, sentia a necessidade urgente de sentar-se à mesa de negociações antes que o processo se fragmentasse em conversas bilaterais e Trump brandisse a ameaça de taxas aduaneiras no setor automobilístico. De seu lado, o presidente mexicano, Enrique Peña Nieto, cuja popularidade desce a níveis tais que faria François Hollande ser visto como um ídolo, sonhava poder conseguir uma vitória, qualquer que fosse, antes de deixar seu posto. Criticado por se curvar diante de Trump, num país que erigiu o ódio aos presidentes norte-americanos em esporte nacional, ele tencionava demonstrar que a estratégia de lamber botas às vezes se mostra eficaz. Quanto a seu sucessor, Andrés Manuel López Obrador, a assinatura de um acordo antes de ele assumir o cargo em dezembro significava que não teria de enfrentar a inquietação dos mercados.
Que diz o texto? A mudança de nome implica mais que simples pintura de fachada. A nova designação abandona as expressões “livre-comércio” e “América do Norte”, duas bandeiras vermelhas para a direita “ultra” do Partido Republicano, que galvanizou sua base operária explicando que o Nafta comprometia a soberania nacional e vampirizava os empregos norte-americanos. Anunciando o nascimento do impronunciável USMCA, em 1º de outubro, na Casa Branca, Trump repetiu: “Não se trata de um novo Nafta, mas de um novo tratado!”. No jargão do presidente – que a autossatisfação teimosa não embaraça além da medida –, o USMCA se tornou “o acordo comercial mais moderno e mais equilibrado da história de nosso país”.1 De seu lado, o editorialista da Fox News, Christian Whiton, gabou um texto que “revoluciona o comércio internacional” e prenuncia o advento de uma “nova ordem mundial do comércio”.2
Na verdade, o acordo mistura progressos incontestáveis e cláusulas que poderiam ter efeitos catastróficos, semeando a confusão entre os observadores. O USMCA reflete uma preocupação exacerbada com a soberania nacional: reconhece explicitamente o direito das partes de decidir as políticas que colocarão em prática. Esse dispositivo poderia oferecer aos dois irmãos menores, Canadá e México, uma margem um pouco mais ampla de manobra. A medida já levou a um avanço considerável: a eliminação quase total do capítulo 11, alusivo à regulamentação das disputas entre investidores e Estados. Combatido há tempos por várias associações de cidadãos, o dispositivo permitia às empresas processar os Estados cujas algumas decisões houvessem prejudicado seus lucros (ou a antecipação deles).3 Única exceção a essa regra: o setor petrolífero mexicano. Em outras palavras, se o futuro governo de López Obrador quiser denunciar certas irregularidades nos contratos assinados por seu antecessor…, poderá ser levado às barras de um desses tribunais de arbitragem.
Os principais avanços dizem respeito à regulamentação do trabalho. Este era objeto apenas de um aditamento no Nafta, acrescentado na última hora, em 1993, a fim de acalmar um Congresso norte-americano reticente. O novo capítulo exige que as partes se submetam às normas da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Compreende um anexo com a lista minuciosa das medidas destinadas a abolir os sindicatos mexicanos ditos “de proteção”, ligados aos empregadores, e a instaurar processos de negociação coletiva ao sul do Rio Bravo.
O texto estabelece que entre 40% e 45% dos componentes dos veículos beneficiários do acordo deverão ser produzidos por trabalhadores que recebem pelo menos US$ 16 por hora, ou seja, cerca de quatro vezes o salário de um empregado do setor automobilístico no México. É pouco provável que as empresas sediadas no país – na maioria norte-americanas – quadrupliquem os salários num futuro próximo ou voltem para os Estados Unidos da noite para o dia; entretanto, a ideia de cobrir o fosso salarial entre os dois países constitui um progresso que merece ser registrado. Esse dispositivo forçará o aumento de salários no México e entravará o dumping salarial? A decisão caberá a López Obrador, cujas promessas de campanha já contemplavam parte das medidas evocadas no acordo.
O USMCA prevê igualmente que 75% dos componentes dos automóveis, no caso, provenham da região, para favorecer o emprego na América do Norte. Washington havia, de início, proposto uma regra que assegurasse um mínimo de componentes produzidos nos Estados Unidos – exigência inaceitável para México e Toronto.
Esses avanços favorecem a criação de empregos de qualidade e a emergência de “regras do jogo comuns para os trabalhadores”,4 como promete o representante do comércio norte-americano encarregado de negociar o acordo, Robert Lighthizer? “Ainda há muitas perguntas à espera de respostas, antes que possamos formar uma opinião”, diz o presidente da American Federation of Labor – Congress of Industrial Organizations (AFL-CIO), Richard Trumka.5 “O ponto-chave do acordo, que ainda não foi discutido, é este: como colocá-lo em prática?”, explica Dan Mauer, do sindicato Communications Workers of America.
Entre os vencidos, podemos incluir desde já os pequenos agricultores dos três países. Os grandes produtores de leite norte-americanos obtiveram uma vitória relativa ao ganhar um acesso melhor ao mercado canadense. O Canadá dispõe de um sistema de gestão da oferta de leite que visa manter preços dignos para os produtores, limitando a importação. O acordo preserva esse sistema, mas permite aumentar as importações. A indústria leiteira canadense falou de uma “morte por laceração”.6 O texto eterniza também o acesso dos gigantes do Meio-Oeste (como Cargill e Archer Daniels Midland) ao mercado mexicano, sem prejudicar com isso as empresas familiares norte-americanas. O Instituto para a Política Agrícola e Comercial lembrou que os pequenos produtores “reclamam há décadas outro tipo de acordo comercial. Queremos regras que amparem sistemas sólidos, duradouros e justos, tanto quanto as economias rurais. A nova versão não permitirá atingir esses objetivos”.7
Nota-se a mesma preocupação entre os pequenos agricultores mexicanos, os maiores prejudicados pelo Nafta, que afogou seu país sob as importações norte-americanas. A coalizão Plan de Ayala, defensora da agricultura familiar, lamenta a ausência de regras para a circulação dos gêneros estratégicos, o frágil enquadramento da propriedade intelectual das práticas tradicionais e a promoção de organismos geneticamente modificados. Ernesto Ladron, porta-voz da coalizão, explica: “O texto procura favorecer sobretudo os grandes produtores norte-americanos. Nosso objetivo é a autossuficiência alimentar, mas esse acordo nos leva na direção oposta”.
Outro ponto em que se observa um retrocesso: o direito a medicamentos baratos. Os Estados Unidos conseguiram reter por mais dez anos as patentes das moléculas biológicas, com a possibilidade de modificar e renovar as que estiverem ameaçadas de expiração. Os acionistas das sociedades farmacêuticas norte-americanas já podem se preparar para encher ainda mais os bolsos.
Sem nenhuma surpresa, o USMCA ignora boa parte dos aspectos que os progressistas gostariam de alterar. Para ser viável, a integração da área pressupõe que se leve em conta a mudança climática, as desigualdades, o extrativismo, os paraísos fiscais, a especulação financeira… A expressão “mudança climática” nem sequer figura no novo texto, à semelhança de “imigração”, ao passo que os esforços para facilitar a mobilidade do capital entravando a das pessoas conduzem a um fluxo que a criminalização não logrará conter. Essa oportunidade perdida significa que o círculo vicioso continuará.
O acordo finalmente concluído não suprime nem mesmo as barreiras alfandegárias norte-americanas contra o aço e o alumínio do Canadá e do México. Isso sugere que a integração concebida por Washington traduz um cuidado maior por suas trocas do que pelo “livre”-comércio. As vitórias de Pirro do México e de Ottawa não modificam a relação de forças entre os parceiros…
*Laura Carlsen é diretora do Center for International Policy (CIP).