Estados Unidos, território sagrado?
Decidida a construir um “escudo anti-mísseis” que poderia tornar o país potência nuclear única, a Casa Branca volta a agitar o cenário internacional. Mas a proposta é antiga, de eficácia duvidosa, e pode estar baseada numa visão messiânica sobre o papel dos EUA no mundoOlivier Zajec
Em um relatório de informações parlamentares, a Assembléia Nacional Francesa analisou os projetos norte-americanos de defesa anti-míssil no dia 28 de março de 2001 [1]. Publicado seis meses antes da destruição das torres gêmeas de Nova York, o documento interpretou tais projetos como algo baseado mais em uma “teologia política” do que em uma “análise estratégica”. Essa teologia seria dotada de uma trindade que podia ser identificada como: o fantasma da segurança absoluta dos Estados Unidos, o mito da fronteira (no caso, a fronteira tecnológica); uma dicotomia bons-maus. O relatório denunciava: “O império do mal não é mais um Estado chamado União Soviética, mas uma categoria relativamente flutuante de Estados: hoje a Coréia do Norte, o Iraque ou o Irã; amanhã, talvez outros”.
No início de 2007, o anúncio da próxima instalação de elementos do programa norte-americano “Missile Defense” (Defesa contra mísseis) na Europa reintroduziu as especulações sobre o significado do programa. Os interceptores da Polônia e os radares tchecos levaram Moscou a reagir, inquietaram os “velhos europeus” e marginalizaram a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), deixando-a repentinamente em situação muito embaraçosa.
Os comentários da imprensa concentram-se, principalmente, nas reações russas — pretexto para inúmeros paralelos históricos que ressuscitam a guerra fria. No entanto, o cerne da discussão é outro. Por exemplo, as pistas lançadas pelo relatório parlamentar francês de 2001. Obsessão pela invulnerabilidade, tropismo da fronteira e “moralização” da política internacional: em que medida essa interpretação ideológica explica a eterna volta da defesa anti-míssil norte-americana, apesar dos questionamentos logo após 11 de setembro?
Uma idéia acalentada deste o lançamento do Sputnik
A defesa anti-míssil nasce em 1957, a partir de uma tomada de consciência brutal: a vulnerabilidade dos Estados Unidos. O primeiro Sputinik começa suas órbitas em volta do planeta. Traumatizados com o célebre sinal, que ressoa como um sino, os Estados Unidos deixam de pensar que constituem uma ilha inatingível: esse sucesso espacial abre, aos soviéticos, a possibilidade de atingir o território norte-americano com a ajuda de mísseis balísticos intercontinentais.
Desde 1957, o programa de defesa “Nike Zeus” prevê interceptores de longo alcance com carga nuclear, capazes de destruir, no ar, os mísseis que visem atingir os Estados Unidos. John Fitzgerald Kennedy, eleito em 1960, com a idéia de um “atraso norte-americano” em matéria de balística (a defasagem do míssil), foi o primeiro presidente a engajar resolutamente seu país num programa de aperfeiçoamento dos mísseis balísticos intercontinentais [2] e, ao mesmo tempo, na via da defesa anti-mísseis. O programa “Sentinel” (Sentinela), de 1966, calculava instalar silos de mísseis interceptores em volta das cidades norte-americanas, protegendo os grandes centros populacionais — alvos prováveis dos soviéticos. Vinte e cinco locais de defesa foram previstos, dotados de mísseis (também com ogiva nuclear) para destruir os mísseis inimigos de um lado e de outro da camada atmosférica.
Diante da reação muito negativa de cidadãos norte-americanos, que não concebiam viver com armas nucleares à sua porta, o “Sentinel” foi transformado em “Safeguard” (Salvaguarda), em 1974. Era um programa “derivado”, que não mais protegia os centros urbanos, mas os locais de lançamento de mísseis intercontinentais. Nos anos 1970, o Vietnã fez um rombo nos orçamentos, e diante do custo do projeto, um só lugar foi determinado para o “Safeguard”. Por sua vez, a URSS construiu silos de defesa anti-míssil em volta de Moscou. Ao contrário dos Estados Unidos, não houve a menor reação da população para impedir esse projeto e a instalação dos mísseis Galosh.
O tratado de mísseis antibalísticos (ABM, sigla em inglês para Anti-Ballistic Missile) [3], de 1972, paralisou os progressos paralelos anti-mísseis russos e norte-americanos por razões de equilíbrio estratégico. No entanto, desde 1976, o sistema norte-americano foi abandonado por motivos de política interna, orçamento e eficácia técnica, enquanto o sistema instalado em volta de Moscou, ainda que pouco efetivo, permaneceu. Essa primeira corrida anti-míssil resultou, na a derrota dos Estados Unidos. O jovem secretário da Defesa dos EUA que, na época, teve de se conformar com a anulação do “Safeguard” chama-se Donald Rumsfeld. Desde então, para Washington, a ação ofensiva, com a melhora dos mísseis intercontinentais, passou a marginalizar a ação defensiva. Esse panorama alterou-se em 23 de março de 1983.
Com Regan e Rumsfeld a proposta tem duas sobre-vidas
Naquele dia, no discurso em que oficializou a Iniciativa de Defesa Estratégica (SDI, sigla em inglês para Strategic Defense Initiative), conhecida como “guerra das estrelas”, o presidente Ronald Reagan anunciou sua ambição de marginalizar as armas nucleares “obsoletas e ineficazes”. A maneira: uma defesa anti-míssil global, baseada em satélites e lasers espaciais, capazes de interceptar qualquer tiro de mísseis balísticos intercontinentais com carga nuclear proveniente da União Soviética (URSS) [4]. Tal discurso marcou a memória coletiva em virtude da corrida armamentista a que ele desencadeava e da asfixia que provocou na União Soviética, deixando-a de joelhos. Entretanto, é preciso matizar. Na época, como se viu, a URSS era um pouco mais avançada que os Estados Unidos em matéria de anti-mísseis. Além disso, a ambição da SDI seria revista e reduzida muito rapidamente. Em 1987, já se tratava apenas de proteger os locais de lançamento de mísseis, em caso de um primeiro ataque russo.
Em 1991, a SDI foi rebatizada de Proteção Global contra Ataques Limitados, e o número de alvos a interceptar, reduzido. A mesma lógica que, em 1976, havia levado ao abandono do programa “Safeguard” se reproduziu: a SDI foi rapidamente alterada. O National Missile Defense Act (Lei de Defesa Nacional contra Mísseis) concentrou, a partir de então, os esforços nacionais em uma defesa anti-míssil operacional nos campos de combate, capaz de interceptar foguetes de curto alcance lançados pelos “Estados-vilões”. Tirou-se lição da primeira Guerra do Golfo (1990-1991) e dos ataques de Scuds iraquianos, particularmente contra Israel. A defesa anti-míssil operacional substituiu, então, a defesa anti-míssil territorial (ou seja, intercontinental, baseada em uma oposição entre as duas superpotências).
Entre 1957 a 1991, somente a URSS conseguiu desenvolver um sistema de defesa anti-míssil intercontinental efetivo. Nos Estados Unidos, sucederam-se programas apoiados em declarações políticas reverberantes, mas nenhum desembocou em um sistema operacional generalizado e coerente.
Eleito em 1992, o presidente William Clinton chancelou a passagem da defesa territorial para a defesa operacional, rebatizando a muito reaganiana Iniciativa de Defesa Estratégica com o nome de Organização da Defesa Anti-míssil Balístico, menos ideológico. No entanto, foi sob sua presidência que apareceu, pela terceira vez, o tema anti-míssil, fruto de uma relação de forças entre uma presidência democrata enfraquecida e, a partir de 1995, um Congresso republicano vencedor no plano das idéias. O elemento-chave sobre o qual o Congresso se apoiou foi a publicação, em 1998, do relatório de uma comissão parlamentar presidida por Donald Rumsfeld. O documento reavaliou a ameaça balística mundial baseando-se não mais nas intenções dos atores, mas em suas capacidades.
Uma visão messiânica do território norte-americano
No mesmo ano, os testes nucleares paquistaneses e indianos, o disparo de um míssil Taepo-Dong I norte-coreano e de um míssil iraniano validaram a análise da comissão Rumsfeld, colocando os democratas na defensiva. Capitalizando esse êxito e chegando ao poder em 2000, o presidente George W. Bush deu à defesa anti-míssil um novo impulso. A sistematização do conceito pelos norte-americanos, assim como sua extensão geográfica ampliando as chances de interceptar os projéteis dos adversários em fase de lançamento são, desde então, os sinais visíveis dessa terceira saga anti-míssil na história estratégica norte-americana.
A idéia da defesa anti-míssil não data, portanto, do segundo mandato de Bush. A certeza da invulnerabilidade de seu território, abençoado pela geografia, sempre fundamentou o sentimento de segurança dos Estados Unidos, que o providencialismo de seus fundadores assimilou muito cedo a uma Jerusalém terrestre. Nessa visão, qualquer atentado ao território norte-americano não constitui apenas uma afronta, mas uma profanação do tabernáculo da liberdade. Quem o comete é sacrílego, que será julgado em algum tipo de inferno. Nessa hipótese de guerra punitiva, a estratégia dos EUA baseia-se, ao mesmo tempo, em uma preferência pela ofensiva influenciada pelo general Antoine-Henri de Jomini [5] e no postulado de aniquilação estratégica do adversário.
Na verdade, a tríade dos meios nucleares — submarinos lançadores de projéteis, mísseis balísticos intercontinentais e bombardeiros estratégicos — permite aos Estados Unidos atingir praticamente todo o globo. Mas de que vale esse potencial ofensivo se a invulnerabilidade do santuário — o território dos Estados Unidos — não está mais assegurada? Tendo anulado a profanação de Pearl Harbour por meio do fogo nuclear lançado sobre Hiroshima, os Estados Unidos vivenciaram, desde os anos 1950, a capacidade balística nuclear russa, que poderia atingir seu território, como uma nova heresia que contrariaria seu destino indiscutível. Heresia ainda mais dolorosa porque, segundo a postura de dissuasão adotada pelos Estados Unidos, a defesa do país apóia-se na certeza de destruição mútua e se julga capaz de deter qualquer possibilidade de desencadeamento apocalíptico. É uma casuística nuclear perversa que volta, na mentalidade norte-americana, a compor de maneira inaceitável com o Mal.
Diversas teorias tentam, há quarenta anos, superar esta vulnerabilidade. Oskar Morgenstern, criador da teoria dos jogos, defendeu, em 1959, em The Question of National Defense (A Questão da Defesa Nacional), a ofensiva aplicada à estratégia nuclear. Bernard Brodie respondeu ao publicar, no mesmo ano, La stratégie à l?âge des missiles [6] (A estratégia na era dos mísseis). Segundo ele, a Destruição Mútua Garantida (MAD, sigla em inglês para Mutual Assurance Destruction), que “levou a segurança dos Estados Unidos a depender da capacidade do Kremlin de continuar racional”, é inaceitável por razões morais [7]. Dessa necessidade metafísica de uma melhor distribuição entre o ataque e a defesa decorre o imperativo categórico da defesa anti-míssil, necessidade moral da qual a psique norte-americana se vê constantemente acompanhada.
Construir seu próprio escudo: alternativa para a Europa?
A data do debate de 1959, entre Brodie e Morgenstern — dois anos antes de o presidente Kennedy chegar ao poder — é importante. Comportar-se “moralmente” na era nuclear não significa considerar a vulnerabilidade norte-americana uma fatalidade. É significativo que os estadunidenses citem o célebre sermão de 1630, A model of Christian Charity (Um modelo de caridade cristã). Nele, o pastor puritano John Whintrop emprega uma expressão que teria um destino surpreendente. Longe de Maquiavel, ele descreve os Estados Unidos como uma “cidade na colina”— City upon the Hill —, centro regenerador do mundo, obrigado a se comportar moralmente para a edificação das nações. Onze dias antes de tomar posse, Kennedy citou esse sermão [8]. Várias vezes, Ronald Reagan fez o mesmo. Há um forte indício de que o lançamento de programas anti-mísseis esteja relacionado a essas duas presidências “morais” [9].
Os projetos atuais reiteram o ciclo. Em um discurso em 2000, que precedeu sua eleição, Bush salientou seu objetivo de reduzir o número de mísseis nucleares ofensivos até “o menor número possível compatível com nossa segurança nacional” [10]. No mesmo ano, o secretário da Defesa, Donald Rumsfeld, declarou, durante uma viagem à Europa, que continuar a defesa anti-míssil era “uma questão moral” e não tecnológica [11]. O lançamento de uma revisão nuclear (Nuclear Review) pelo próprio presidente Bush, no início de seu primeiro mandato, [12] pareceu um exame de consciência nacional que reiterou as purificações rituais realizadas por Kennedy e Reagan na época em que eram presidentes.
O relatório parlamentar francês de 2001, apontando uma “teologia política” como fundamento da defesa anti-míssil norte-americana, forneceu uma das chaves do debate. O primado da metafísica providencialista na psique norte-americana e a história sempre reiniciada dos programas de Defesa contra mísseis, desde 1957, levam a pensar que nada fará Washington desistir do movimento n
Olivier Zajec é encarregado de estudos da Companhia Européia e Inteligência Estratégica (Paris).