“Estamos defendendo a nossa casa”, relata líder de pescadores
Confira entrevista com Carlos Alberto Pinto dos Santos, que critica o poder público em todos os níveis, não só pela omissão durante o período do impacto direto do petróleo, mas também no combate aos efeitos do crime ambiental, até hoje sentidos pelas comunidades da região
Liderança de Atalaia, uma das 14 comunidades da Reserva Extrativista de Canavieiras, abrangendo os municípios costeiros de Una, Canavieiras e Belmonte, na Bahia, o pescador Carlos Alberto Pinto dos Santos, o Carlinhos, como é conhecido, tem longa experiência no diálogo com órgãos públicos federais e estaduais. É integrante da Comissão Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais (CNPCT) e coordenador de relações institucionais da Comissão Nacional de Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (Confrem).
Como ele relata, a Resex de Canavieiras destacou-se no combate ao petróleo em 2019 porque os habitantes das comunidades há vários anos têm estado cientes da fragilidade do meio ambiente na área onde estão instalados – limite norte da chamada Região de Abrolhos, no Banco de Royal Charlotte, com predominância de longas extensões de águas rasas na plataforma continental, por conta dos bancos de corais.
Na época, os pescadores da Resex mobilizaram mais de 300 pessoas em torno da iniciativa SOS MangueMar, recolhendo cerca de 40 toneladas de petróleo que chegava às praias e ameaçava invadir os mangues e rios da região. Na entrevista a seguir, Santos critica o poder público em todos os níveis, não só pela omissão durante o período do impacto direto do petróleo, mas também no combate aos efeitos do crime ambiental, até hoje sentidos pelas comunidades da região.
Poderia dizer quais foram as principais linhas estratégicas de ação do movimento de pescadores para enfrentar o problema com o óleo?
Nós já tínhamos tido experiência com trabalho e treinamento sobre contenção e limpeza de praia no caso de derramamento de petróleo, porque, nos processos de licenciamento do Ibama [para prospecção de petróleo] que ocorreram entre 2007 e 2009, nas audiências públicas, nós íamos pro debate e a gente falava da fragilidade biológica, ambiental e social que tem a nossa região, da importância que tem essa região para os pescadores, com mais de 2.500 famílias, é a área mais extensa de manguezal da Bahia, com mais de 9 barras de rios.
Então, é uma área de extrema sensibilidade socioambiental que, na maioria dos estudos das empresas, não era considerada com a sensibilidade que tem. E aí a gente sempre propunha para o Ibama que seria necessário fazer estudos, novas modelagens de derramamento, porque as correntes marítimas, nesta região, têm uma realidade diferente. Com isso, o Ibama sempre colocou como condicionantes nos licenciamentos que se treinassem os pescadores, para que, em caso de vazamento, eles fossem os primeiros a agir.
Quando tomamos conhecimento do derramamento de petróleo, nós iniciamos um processo de diálogo aqui para ver o que a gente ia fazer aqui caso o material chegasse. Quando o petróleo chegou a Sergipe, nós fizemos uma reunião e criamos o grupo SOS MangueMar e elaboramos, em parceria com voluntários, com organizações da sociedade civil e o próprio ICMBIO local, um plano de emergência para a área da Resex, considerando os três municípios [Belmonte, Canavieiras e Una] e as nove barras. E aí planejamos, pensamos: a gente precisa de equipe pra monitorar no mar, pra monitorar no rio, nas praias; caso o petróleo chegue, a gente tem que botar esse plano em ação. E a gente mensurou e listou quais os materiais e equipamentos de que a gente teria necessidade. Com isso, nós colocamos como marco zero pra colocar nosso plano de emergência em ação se o petróleo chegasse a Ilhéus. Quando o petróleo chegou a Ilhéus, no dia 26 de outubro de 2019, nós aqui entramos em ação pra colocar nosso plano de contingência. No dia 28, o petróleo chegou à Resex Canavieiras, e nós estávamos já de prontidão. Infelizmente não tínhamos ainda os equipamentos de proteção individual nem os equipamentos necessários pra poder fazer o trabalho de contenção nessa dimensão, já que a Resex tem mais de 70 km de costa. Então a gente colocou nosso plano em ação e começamos o trabalho.
O movimento já conseguiu mensurar os prejuízos que os pescadores sofreram com o óleo?
Sabemos principalmente dos danos socioeconômicos, porque os danos ambientais, pra mensurar, é algo que é muito complexo. Os danos socioeconômicos foram muito grandes porque, nesse período, que foram mais de três meses, a gente ficou sem ter a menor condição de comercializar pescado, o que se pescava não se conseguia vender, esse foi um problema seríssimo. A gente não consegue ainda calcular precisamente qual foi o prejuízo, mas, com ajuda de algum pesquisador ou pesquisadora, com o pessoal da Universidade, a gente conseguiria facilmente fazer esse cálculo. Mas, não há sombra de dúvida de que os danos socioambientais e os danos econômicos para as comunidades passam das dezenas de milhões de reais.
Ouvimos muitas críticas ao governo federal pela sua ausência diante do problema. Com os governos estaduais e municipais foi diferente?
A ação dos governos, no nível municipal, estadual e federal, deixou muito a desejar. No nível federal sabemos que o Plano de Contingência Nacional não foi colocado em ação, o que levou à omissão total do Estado brasileiro, ou seja, eles tiveram ciência do derramamento, da escala, e como o petróleo vinha descendo na costa brasileira, e foram totalmente omissos. A Marinha começou a fazer uma ação, mas uma ação muito tímida, e, quando chegou aqui à nossa região, nós já estávamos fazendo todo o trabalho de contenção. A Marinha chegou aqui 15 dias depois que o petróleo chegou, essa é a realidade, tanto quanto os órgãos ambientais. Os órgãos estaduais, nem se fala, vieram aqui, olharam e foram embora. Se nós não tivéssemos o apoio de ONG’s, de empresas na doação de materiais e equipamentos, a situação teria sido muito mais difícil.
O governo federal, a partir da pressão dos pescadores e de alguns parlamentares, chegou a criar o auxílio emergencial. Infelizmente esse auxílio não chegou para todos os pescadores, e principalmente aqueles pescadores que estavam com seus RGP [Registro Geral de Pesca – documento que identifica os pescadores profissionais] cancelados ou que não tinham RGP não conseguiram acessar o auxílio emergencial. Houve cidades onde 80% dos pescadores, mesmo estando com os documentos em dia, não conseguiram acessar o auxílio emergencial.
Quais os principais problemas que as famílias de pescadoras e pescadores enfrentaram e enfrentam hoje após um ano do crime relacionado ao derramamento de petróleo?
Os danos que o derramamento de petróleo causou aos pescadores se prolongaram porque, se a gente for observar, quando a gente estava se recuperando dos impactos do derramamento de petróleo, vem a pandemia da Covid-19. E aí os impactos socioeconômicos se ampliam, e também a questão dos impactos à saúde. Até hoje a gente não sabe como fica para aquelas famílias que tiveram contato direto com o petróleo, que tiveram reações alérgicas, como foi nosso caso, a gente teve dores nos olhos, dor de cabeça, vômitos, alguns companheiros tiveram febre, dores no corpo, tosse… Essas pessoas também são grupo de risco para o caso da pandemia de Covid? Ou seja, são situações muito complexas, os impactos perduram até hoje.
A pandemia agravou a situação?
A pandemia agrava a situação, aprofunda os problemas. Hoje nós estamos no pico da pandemia nessa região nossa aqui. A gente vê que existe grande dificuldade de segurança alimentar para muitas famílias, a gente vive um momento difícil, pois os preços dos alimentos subiram muito também, e o preço dos pescado não subiu na mesma escala, ou seja, a gente carrega ainda aquele estigma lá da época do petróleo, que continua hoje.
A pandemia traz outros agravantes: na época do petróleo, a gente procurava os postos de saúde, e o pessoal não sabia nem o que fazer. Hoje a gente vê também que é uma situação muito séria, porque, as estratégias preventivas, até os próprios órgãos públicos municipais às vezes são omissos e não passam as orientações adequadas para as famílias de pescadores, não distribuem os EPIs, não distribuem materiais de higiene pessoal.
A verdade é que nós vivemos todo um processo de abandono do Estado, e com a pandemia os danos se aprofundam. Hoje o governo federal faz um discurso criminalizando os pescadores e pescadoras artesanais, afirmando que 70 % dos que recebem o seguro defeso são fraudulentos. Na verdade, a gente sabe que isso é uma estratégia para, única e exclusivamente, acabar com o direito conquistado, que é o direito ao defeso, que é uma estratégia de conservação das espécies. Não se está dando o benefício ao pescador, mas se está fazendo um processo de reparação a um serviço prestado à sociedade, que é o serviço que ele presta à sociedade por conservar as espécies no período em que elas estão em defeso, quando é proibida a pesca.
Por outro lado, a gente vê o avanço nas políticas governamentais de expropriação do território pesqueiro, nosso maretório, como nós chamamos nas reservas extrativistas. Recentemente, o governo publicou um decreto que flexibiliza a cessão de águas públicas. Isso é preocupante, porque nós corremos o risco de se criarem grandes latifúndios nas águas agora. Era só o que faltava.
Ao mesmo tempo, nos estados e municípios, vemos a flexibilização do licenciamento para grandes empreendimentos, como os da carcinicultura. Em alguns municípios, como aqui em Canavieiras, o licenciamento é feito de uma forma totalmente desordenada pelo órgão ambiental municipal, que não tem um planejamento, não tem zoneamento, não tem nada, não tem nem corpo técnico qualificado de fato para analisar estes processos, muito menos para fiscalizar, e licenciam a rodo. Recentemente, nós conseguimos, com muita luta, aprovar o plano local de recuperação do guaiamum, uma espécie criticamente ameaçada de extinção que foi listada na portaria 445 [do Ministério do Meio Ambiente, em 17/12/2014], a qual impediu, proibiu que os pescadores de guaiamum, os guaiamunzeiros, utilizassem a espécie, quando na verdade os estudos nos apontam que o maior problema do guaiamum não é a captura, é a destruição dos seus habitats.
Lutamos e conseguimos a aprovação do plano de gestão local do guaiamum, pra ordenar a captura, mas a prefeitura municipal licencia 13 empreendimentos de carcinicultura ao mesmo tempo, grande parte delas em áreas e territórios dos guaiamuns. Isso demonstra uma total desconexão nas políticas, desconexão das ações, que criminaliza o trabalhador, o pescador e a pescadora artesanal, em favor dos interesses do capital. Ou seja, é preciso haver um equilíbrio, é preciso se fazer uma discussão de futuro, em que as espécies possam ser preservadas, e o trabalhador que depende dela e conserva ela seja valorizado.
Vocês acreditam que os impactos do petróleo permaneçam no ambiente de alguma maneira um ano após o crime?
Sobre essa questão se os danos ao meio ambiente, se perduram ou não é necessário se fazer pesquisa sobre isso, coletar amostras… porque as primeiras amostras que foram coletadas, inclusive pelo pessoal da UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, demonstraram que os níveis de contaminação aqui foram baixos já que nós conseguimos, através da nossa ação, prevenir os danos, já que a gente consegui fazer a contenção do petróleo, limpar as praias, nós tiramos mais de 40 toneladas de petróleo. Se nós não tivéssemos tirado hoje esse petróleo continuaria nas praias e nos estuários. Então isso foi uma vitória dos pescadores e das pescadoras. É necessário se fazer estudos pra ver a situação como é que está, se existe resíduos desse petróleo nas praias, se as substâncias continuam na lama, nos manguezais, nos estuários. Então é de fundamental importância fazer isso porque visto a olho nu não é possível fazer essa análise, embora a gente ainda identifique, quando a maré muda e tira areia da praia, aí aparecem algumas pelotas, já endurecidas, por causa do passar do tempo.
Os pescadores e pescadoras notaram alguma diminuição da quantidade de peixes ou mariscos após o derramamento?
Então, o efeito na verdade foi inverso. Não houve diminuição do pescado, ao contrário, houve aumento, porque no período do derramamento muitos pescadores e pescadoras pararam de pescar, então houve um aumento da quantidade de pescado posteriormente ao derramamento. Porque, eu volto a falar, nossa ação de contenção e de limpeza ajudou a diminuir o petróleo que poderia entrar pros rios, inclusive dos rios a gente conseguiu tirar muito petróleo que ia entrar nos estuários, nos manguezais.
Esse episódio de 2019 deixa alguma lição maior para a sociedade brasileira?
É importante registrar que há uma total desarticulação e desconexão das ações no nível municipal, estadual e federal do ponto de vista da conservação e proteção do Oceano. E, nesse episódio do petróleo, isso ficou extremamente evidente. Ficou evidente porque havia uma total desarticulação. A sociedade representada por nós, os voluntários, a turma do SOS MangueMar, ia retirar o petróleo das praias, mas a prefeitura não ia recolher o petróleo que a gente tinha retirado, nos pontos onde a gente já tinha colocado em sacos e em tonéis.
O órgão do governo do estado, o Inema [Instituto Estadual de Meio Ambiente da Bahia] não aparecia para poder retirar o petróleo, em tudo estiveram atrasados no processo. Governo federal nem se fala: a presença do governo federal que se registra é a atuação do ICMBio no nível local, o restante esteve extremamente fragmentado. A presença dos órgãos que atuaram de forma ostensiva, como Defesa Civil, órgãos ambientais estadual e federal, isso deixou muito a desejar, é importante pontuar isso.
Outra questão que é muito importante ressaltar é que, quando a sociedade está articulada e está mobilizada, é possível fazer ações em defesa do meio ambiente e defender os recursos naturais. Pra nós, pescadores, nós estamos defendendo a nossa casa. É o nosso ambiente, é a nossa vida, é indissociável. Você não consegue separar o pescador do seu ambiente de vivência, do seu território, do seu maretório. Então isso ficou extremamente forte, nessa atuação nossa, que era o impacto psicológico, o impacto emocional que o derramamento do petróleo teve no povo da gente. A liderança chorando com o petróleo chegando na praia, o relato emocionado das ações que a gente estava fazendo, a angústia por ver o petróleo chegando e aquelas pessoas com a angústia de sentir que aquele petróleo poderia entrar nos manguezais, que poderia prejudicar as famílias, que poderia afetar tudo aquilo que a gente defende. Então acho que isso ficou como uma coisa extremamente marcante pra nós.