Estão passando com a boiada também por cima dos pescadores
Liderança da Baía de Todos-os-Santos relata como governos em todos os níveis aproveitaram o período da pandemia para apoiar projetos que atacam comunidades na região
Pescadora e quilombola de família tradicional da comunidade de Conceição de Salinas, em Salinas da Margarida (BA), Elionice Sacramento é ainda graduada em Filosofia e mestra em Sustentabilidade junto a Povos e Terras Tradicionais pela Universidade de Brasília e tem atuado na Articulação das Mulheres Pescadoras (AMP) e na Escola das Águas, do Movimento de Pescadoras e Pescadores (MPP). Também tem histórico de participação em órgãos nacionais e internacionais como o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e a Rede Manglar Internacional.
Nos últimos meses, em plena pandemia, ela tem denunciado diversas ações de criminalização de lideranças das comunidades de pescadores e quilombolas no sul da Bahia. Um site da região tem difundido textos considerados racistas, ao questionar a identidade quilombola dos moradores da comunidade de Conceição de Salinas e acusar a comunidade de pescadores tradicionais de “crime ambiental” por ocupar áreas próximas ao mangue. Representantes das Defensorias Públicas da União e do estado da Bahia estiveram na região recentemente e descartaram a existência de qualquer indício nesse sentido. Para os quilombolas, por trás das acusações, estão os interesses da especulação imobiliária na região.
“Tem sido estratégico para o Estado brasileiro, que tem na sua essência um projeto exterminador e de expropriação, conduzir esse momento de modo a fragilizar as leis, tornar os órgãos e as políticas inoperantes para os povos e comunidades tradicionais e ao mesmo tempo avançar nos projetos do capital. Nós, em dada medida paramos, mas os projetos do capital não pararam”, diz a líder comunitária na entrevista a seguir. O diálogo busca abordar pontos trazidos por Sacramento em sua participação em debate virtual com habitantes das Reservas Extrativistas de Canavieiras, Corumbau e Cassurubá, junto a acadêmicos da Universidade Federal do Sul da Bahia.
Você tem chamado a atenção para a perseguição às lideranças do movimento de pescadoras e pescadores nos últimos meses – pode nos relatar o que está acontecendo?
Essas perseguições são ataques e violências que têm se dado contra as lideranças, especialmente as mulheres, no Recôncavo e na Baía de Todos-os-Santos, bem como no Baixo Sul, e tem tido naturezas diversas, tanto no sentido de a todo custo avançar contra seus territórios, desrespeitando, indo nas casas para tentar coagir, mas também de forma velada, ameaçar, como tem acontecido com dona Antônia: os fazendeiros e seus capangas vão no seu terreiro armados para intimidá-la, no território do Iguaí. As ações de queimada, de desmatamento também têm avançado fortemente aqui em Salinas também, com o Parque das Margaridas e na Ilha de Maré. E há diversos empreendimentos outros, inclusive a tentativa de construção de uma igreja no território pesqueiro do Campinho e tentativa também de expulsão das pessoas que lá trabalham e da imposição de catequização.
E, além disso, a violência tem se dado por meio de difamação, de calúnias, que têm estimulado os crimes de ódio, e, ao mesmo tempo, a violência de gênero tem se dado fortemente quando um site da região tenta nos criminalizar, nos acusando de crime ambiental, e expõe as nossas imagens na mídia.
A gente tem sentido e vivenciado várias tentativas de cooptação e divisão, mas temos resistido fortemente, porque entendemos que um projeto do capital está em curso, que essas não são ações soltas, são ações articuladas e que nós também precisamos nos articular em luta, em resistência. E em paralelo a essas questões, tem também a tentativa de agressão física, de agredir a moral, dentre outros aspectos.
Pelo seu relato, poderíamos dizer que os políticos em geral estão aproveitando o período da pandemia para “passar a boiada” para cima das comunidades tradicionais?
Se eu acho que o governo nas suas dimensões diversas tenha acompanhado o período para passar a boiada? Não tenho dúvida. A pandemia explicitou mais as violências, deu um gás maior para que essas violências se manifestassem em tempos e espaços diferentes, ao mesmo tempo em que nos desarticulam. Quando nós fomos convidados a nos recolher aqui no território, a primeira ação que aconteceu foi a quebra e destruição de faixas e placas em homenagem a Marielle Franco. Depois, houve três sucessivos ataques por um site local. No território de Ilha de Maré, a gente tem acompanhado também o agravamento de violências no Baixo Sul, no Sul da Bahia e no Recôncavo de modo geral. São ameaças de morte, assassinatos de lideranças – enfim, tem sido estratégico para o Estado brasileiro, que tem na sua essência um projeto exterminador e de expropriação, conduzir esse momento de modo a fragilizar as leis, tornar os órgãos e as políticas inoperantes para os povos e comunidades tradicionais e ao mesmo tempo avançar nos projetos do capital.
Nós, em dada medida paramos, mas os projetos do capital não pararam – pelo contrário, o capital avançou fortemente, e foram criadas estratégias. Por exemplo, a construção civil foi colocada como serviço essencial nessa pandemia. Então, escoar nossa produção e garantir alimento para a gente e para os demais povos brasileiros não era serviço essencial, mas construção era. E a quem atendem os interesses da construção? A gente está vivendo aqui no nosso município a construção de uma marina. De um lado, o Parque das Margaridas, de outro a Marina, na Baía de Todos-os-Santos. São vários empreendimentos, e isso tem um impacto na produção pesqueira, no território pesqueiro, na produção da mata, na própria mata. Mas, enfim, é de interesse do governo do estado da Bahia, dos governos municipais e, para garantir os seus interesses, têm sido usados homens, armas e outros equipamentos públicos.
Você tem chamado atenção para o fato de que o acidente com o petróleo em 2019 não é a única preocupação dos pescadores em relação ao problema da contaminação das águas. O problema é mais amplo?
Tratou-se de um crime com proporções amplas esse derramamento de petróleo. Entretanto, não é o primeiro, nem é a única questão que nos preocupa, de fato – apesar de não ser menor. Foi, é algo que tem uma proporção grande, principalmente no que tange aos impactos acumulativos nos territórios. E justamente por isso que a gente diz que todos os anos na Baía de Todos-os-Santos tem um crime ambiental.
O território vem sendo rifado. São vários empreendimentos que têm sido licenciados ou estão funcionando de forma ilegal, de qualquer jeito. Então, nós temos um conjunto de preocupações, porque esses empreendimentos comprometem a nossa soberania e a nossa segurança alimentar e nutricional. Nós temos dito da importância dos nossos territórios, de a gente conseguir produzir alimentos saudáveis em quantidade e diversidade para colocar na mesa do povo brasileiro, e a gente tem reafirmado constantemente a importância dos nossos territórios, mas sabemos que, sem eles, sem esse território, sem as condições necessárias para produzir alimentos, nós corremos o risco de nos tornar reféns de um sistema e de uma forma de produção que vai contra o nosso modelo de vida e as nossas tradições.
Recentemente, além dessa situação do derramamento do petróleo e da própria pandemia, o pescado vem sendo atacado. Nós temos a notícia de uma doença que tem gerado a morte [doença de Haff], e, sem qualquer cuidado, isso tem sido atrelado ao consumo de pescado. Isso também tem um impacto grande no escoamento da nossa produção. Essas narrativas acabam estigmatizando a produção, e a nossa produção, que já tem um baixo valor comercial, que já não entra – mesmo com leis que orientem, que determinem, já não entra na merenda escolar, por exemplo –, acaba cada vez mais perdendo o valor, tanto no que tange ao aspecto econômico, mas também cultural, porque a sociedade brasileira passa a ter medo de comer pescado.
Você tem relatado que a solidariedade entre as comunidades foi uma saída para enfrentar a crise após o problema com o petróleo e durante a pandemia. O que tem acontecido?
Solidariedade é uma marca forte nas comunidades, e também é um código de vida no mar e no território tradicional diante dessa situação, das situações de crise que a gente vem enfrentando. Foi possível fortalecer esses laços de solidariedade, retomar, e sempre tendo como referências os ensinamentos ancestrais. A gente não está falando de coisas novas não.
Foi possível mapear a produção que a gente tem, fortalecer trocas entre as comunidades pesqueiras que produzem alguns tipos de pescados que outras não estão produzindo mais. Foi e tem sido possível fazer trocas entre as comunidades com potencial pesqueiro maior e as com potencial agrícola maior. Para nós, por exemplo, foi possível fazer doações em comunidades que estão mais em Salvador ou nas periferias dos grandes centros. Cada um pôde doar um pouco na perspectiva de que nenhuma pessoa poderia ou deveria ficar para trás.
As mulheres pescadoras têm sido afetadas especialmente nessa crise?
Ao tempo de que percebo e sinto com revolta, principalmente porque sei que o público tem sido colocado a serviço do privado, porque percebo relações promíscuas profundas entre o capital e o Estado brasileiro, que tem como aliada o discurso da Igreja e da escola, de uma mídia, percebo com revolta, mas não com espanto. A gente tem acumulado na última década uma reflexão profunda, sobre o papel do Estado a serviço das corporações e dos interesses do capital. Temos compreendido, a partir também da reflexão com outros povos, que não existe e não vai existir governo bom para nós, e ao mesmo tempo também temos ciência de que mesmo o que a gente tem de extrato de uma esquerda brasileira, essa esquerda não se aproxima do ideal de esquerda que a gente quer, que a gente precisa, ou que deveria ser.
E isso só nos faz se fortalecer na compreensão de que efetivamente o mundo, a sociedade será melhor quando cada um de nós, os menores, acreditar no menor, como diria Dona Maria do Paraguaçu em sua canção. Também temos acreditado no papel de uma formação, de uma educação transformadora, da construção de autonomias, através da nossa produção e temos que continuar avançando na articulação dos povos e sobretudo no fortalecimento da nossa resistência.
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Paulo Dimas Menezes e Spensy Pimentel são professores da Universidade Federal do Sul da Bahia. Este texto foi produzido como relatório final do projeto “Diagnóstico das consequências do derramamento de óleo de 2019 nas comunidades de pescadores do Sul e Extremo Sul da Bahia: encontro interdisciplinar e interepistêmico de saberes comunitários e universitários”.