Estranhas cooperativas bolivianas
Por que atacar esta importante força, as cooperativas de mineiros, uma das partes interessadas nos movimentos sociais que apoiam Morales? Provavelmente, antes de mais nada, por causa da queda do preço das matérias-primas, que estrangulou as finanças públicas, obrigando o Estado a procurar novas receitas
Nas primeiras horas do dia, na saída da mina de San José, em Oruro, Alfredo Huari arruma suas ferramentas. Ele passou a noite nas galerias escuras da montanha para extrair alguns gramas de minério: prata, estanho, zinco, chumbo… Aqui, 250 associados reunidos em cooperativas dividem os veios de uma das maiores jazidas de metais preciosos da Bolívia. A 3.700 metros acima do nível do mar, sob o sol já ardente, Huari, ombros largos e rosto vigoroso, lembra os trágicos acontecimentos de 2016, quando um conflito com o governo se degenerou. “É verdade que nós, os mineiros, somos sanguíneos. Mas ambas as partes agiram de forma violenta”, ele conta, sentado ao lado dos colegas que descansam depois de uma noite de trabalho.
Agosto de 2016, “agosto negro”. Mineiros conhecidos como “cooperativistas” bloqueiam os eixos estratégicos do país. Os confrontos com a polícia levam à morte cinco pessoas e fazem dezenas de feridos nos dois lados. Até a tragédia que marca o fim das mobilizações: o sequestro e depois o assassinato, em 25 de agosto, do vice-ministro do Interior, Rodolfo Illanes, que viera para tentar uma mediação. O presidente Evo Morales denunciou o crime como “imperdoável” e decretou luto nacional. A crise marcou um ponto de virada nas relações com um de seus principais aliados. Na origem dessa explosão de violência, o anúncio da revisão da Lei das Cooperativas para permitir aos trabalhadores do setor se sindicalizarem livremente: uma “declaração de guerra”, considera Carlos Mamani, então presidente da Federação Nacional das Cooperativas Mineiras (Fencomin) – algumas das quais parecem ter mantido esse modo de organização apenas no nome.
Potosí, o outro grande centro de mineração do país, dominado pela Cerro Rico, a “montanha de prata”, com 4.800 metros de altura. Na família de Miguel Delgadello, a atividade de mineiro passa de pai para filho. Ele subiu os degraus e se tornou chefe de setor. Capacete na cabeça, botas nos pés e folha de coca no vão da bochecha, ele explica: “Eu trabalho com um terceirizado que tem seus próprios trabalhadores. Nós assinamos contratos por preço fixo, por tarefa ou por dia. Aqui é cada um por si”. No coração da montanha, o trabalho, duro, ceifa vidas. As temperaturas variam de 0 °C a mais de 40 °C, em meio à poeira tóxica. Marco Gandarillas, pesquisador do Centro de Documentação e Informação da Bolívia (Cedib) e especialista em questões de mineração, explica a organização dessas “cooperativas”: “Os lucros não são distribuídos. Grupos privilegiados exploram o trabalho dos outros, com jornadas de trabalho que às vezes ultrapassam dezesseis horas. É por isso que eles se opõem à sindicalização”.
Há alguns anos, o presidente Morales, no entanto, apresentou os mineiros cooperativistas como “aliados naturais e incondicionais” de seu governo (Página Siete, nov. 2013). Mesma conversa com Simón Condori, líder da Federação dos Mineiros para a capital: “Estivemos na vanguarda do processo de mudança e da luta contra o neoliberalismo dos anos 2000”, declara. Com mais de 130 mil trabalhadores, essa organização forma um batalhão eleitoral ainda mais importante pelo fato de cada mineiro geralmente mobilizar os votos de sua família. “Somos um monstro”, concluía Mamani, um tanto ameaçador, durante os protestos de 2016.
A partir de 2005, os mineiros cooperativistas apoiaram o Movimento para o Socialismo (MAS), o partido de Morales. Em troca, eles mantêm postos-chave nas administrações e nos ministérios. Em 2006, o ministro das Minas, Walter Villarroel, era originário da Fencomin, e vários deputados emanam de suas fileiras. Segundo o Cedib, eles se beneficiaram de pelo menos nove medidas legislativas desde a vitória do presidente indígena, incluindo a Lei de Mineração, que “coloca seus direitos acima dos de outros atores econômicos do país”, estima o pesquisador Pablo Villegas, especialista em questões energéticas. No entanto, em 2016, a federação exibiu uma nova lista de queixas. Além do cancelamento da modificação da Lei das Cooperativas, ela exige a possibilidade de se associar com empresas privadas (para que estas últimas garantam a exploração de suas concessões), bem como o relaxamento de normas ambientais que, em sua opinião, se mostram muito restritivas.
“Privilégios intoleráveis”, retruca diante de nós Álvaro García Linera, o vice-presidente, sentado sob o retrato de Simón Bolívar em um salão do palácio presidencial. Arquiteto da política do MAS, ele nos apresenta a contraproposta feita pelo governo antes da eclosão do conflito: “Ou vocês operam como empresas e pagam impostos, ou adotam o status de cooperativas, mas renunciam a ceder suas concessões ou a alugá-las a particulares”.
Esse ultimato levanta uma questão: por que atacar essa importante força, uma das partes interessadas nos movimentos sociais que apoiam Morales? Provavelmente, antes de mais nada, por causa da queda do preço das matérias-primas, que estrangulou as finanças públicas, obrigando o Estado a procurar novas receitas, sobretudo alargando a base do imposto da mineração.1 “O governo estava recebendo muitas críticas”, analisa igualmente Ricardo Bajo, redator-chefe do edição boliviana do Le Monde Diplomatique. “As pessoas diziam: ‘Os mineiros cooperativistas fazem o que querem porque são aliados do governo. Todo mundo segue as regras, paga impostos, exceto eles’. Mas o governo tinha registrado uma série de vitórias contra os setores com os quais estava em conflito, e a oposição estava enfraquecida. Ele se sentiu forte o suficiente para fazer que os mineiros se dobrassem e obrigá-los a entrar na linha.”
A tensão, no entanto, remonta à própria origem dessa aliança antinatural entre um poder em busca do “socialismo do século XXI” e um setor menos sensível à urgência da luta pela emancipação. De fato, os cooperativistas parecem ter se beneficiado de sua proximidade com o poder para “promover um capitalismo selvagem por meio da adoção do modelo neoliberal de recusa de qualquer regulamentação estatal”, resume o pesquisador Claude Le Gouill.2 Assim, desde 2006 e da chegada do MAS ao poder, mineiros cooperativistas e mineiros empregados pela Corporación Minera de Bolivia (Comibol), empresa estatal, se enfrentam pelo controle dos veios em Huanuni, uma mina pública do Cerro Posokoni, no departamento de Oruro. Resultado: dezesseis mortos e 81 feridos. Seis anos depois, eles ainda exigiam concessões na mina de Colquiri. Novos confrontos. Em 2014, a Lei de Mineração, que integra grande parte de suas demandas, foi adotada após três anos de elaboração e de negociações pontuadas por graves conflitos entre governo, mineiros cooperativistas e mineiros assalariados.
Após o violento episódio de 2016, cinco decretos, seguidos de leis, fortalecem o controle sobre as cooperativas. Eles preveem o retorno ao Estado de concessões não exploradas ou cedidas a empresas privadas – uma vitória para o governo, ainda que comprometa o relacionamento com o antigo aliado. Novos atos violentos podem ocorrer: os cooperativistas ameaçam retomar as manifestações se os suspeitos em prisão provisória no âmbito da investigação do assassinato de Illanes não forem libertados.
Em Oruro, em frente à mina de San José, um mineiro que quer permanecer anônimo deixa escapar, em tom definitivo, a respeito da eleição presidencial de 2019: “Ya no apoyamos” – “desta vez, não vamos mais apoiar [o MAS]”. Por enquanto, essa opinião não é majoritária entre seus companheiros…
Regras sob medida
Segundo a lei boliviana, as cooperativas são associações sem fins lucrativos, impulsionadas pelo trabalho solidário (código das cooperativas). Elas são um dos três atores envolvidos na produção mineral no país, ao lado da estatal Corporación Minera de Bolivia (Comibol) e de empresas privadas nacionais e transnacionais.
As cooperativas de mineração existem desde a década de 1960, mas seu número explodiu desde 1985 e do desmantelamento da Comibol, que empregava milhares de trabalhadores. Elas, então, oferecem a única maneira de explorar a mineração em um momento em que as empresas privadas estão abandonando um setor considerado não rentável. Seu crescimento também é explicado pela liberalização da economia, que permite a livre comercialização e exportação. O setor novamente experimentou um forte crescimento à medida que os preços das matérias-primas foram aumentando, a partir de 2002. Enquanto o número de cooperativas era de 690 em 1995, em 2014 atingia 1.642.3 As áreas que elas exploram, por sua vez, aumentaram 700% desde 2006.
Enquanto elas empregam 90% dos trabalhadores do setor, as cooperativas respondem por apenas 19,5% do total da produção (por causa do trabalho em veios pobres, da baixa mecanização e de uma atividade em grande parte artesanal), em comparação com 74% para as minas privadas e 6,5% para as minas estatais.4 Consideradas “unidades sociais”, elas estão isentas dos principais impostos de mineração e pagam uma taxa reduzida de 2,5% pela venda de minérios, enquanto a taxa é de 8,5% para as empresas estatais e privadas.
*Amanda Chaparro é jornalista.