Estratégia criminosa das indústrias de amianto
A pedido de um lobby internacional poderoso e sem escrúpulos, a OMC quer “julgar” os países que proíbem o uso do amianto. O precedente é grave: deve-se aceitar que as leis nacionais que defendem os trabalhadores e o ambiente fiquem subordinadas ao livre comércio?Patrick Herman , Annie Thebaud-Mony
Portas fechadas, segredo e anonimato caracterizam o funcionamento do Órgão de Resolução de Divergências (ORD), braço armado da Organização Mundial do Comércio (OMC). Foi a condenação da União Européia, por recusar-se a importar a carne com hormônio dos Estados Unidos, que tornou a OMC ampla (e incomodamente) conhecida, e provocou, a partir das iniciativas dos produtores de queijo Roquefort do Aveyron, reações em cadeia… [1] Hoje, sem tanta publicidade, o ORD prepara-se para julgar uma queixa canadense que contesta, sempre em nome da liberdade do comércio internacional, a decisão francesa de proibir o amianto, em vigor desde 1o de janeiro de 1997.
Em 28 de maio de 1998, Ottawa iniciou um contencioso contra a França, começo de uma batalha de peritos. Ela se passa muito longe das inumeráveis vítimas que já sofreram os efeitos do amianto sobre seus próprios corpos. De um lado, o Canadá, acompanhado pelo Brasil, o Zimbábue e a Rússia, países produtores onde esta indústria é influente. De outro, a França, cuja posição é defendida pela União Européia — uma diretriz de proibição do comércio e do uso do amianto foi adotada em julho de 1999 e deverá tornar-se efetiva em toda parte, no mais tardar em 2005. Até hoje, só três de seus membros ainda não a aplicaram: Espanha, Grécia e Portugal. Paris dispõe do apoio dos Estados Unidos: para eles, todas as variedades de amianto são cancerígenas. O que está em jogo no “julgamento” do ORD só se compreende à luz da guerra que há um século opõe o lobby industrial do amianto aos milhões de vítimas desta fibra mortal.
Cortina de silêncio
Entre 1930 e 1960, os industriais esforçaram-se para impedir a difusão dos conhecimentos sobre a ligação entre o amianto e as doenças respiratórias — entre as quais o câncer —, a fim de evitar condenações. Desde 1932, na verdade, operários americanos haviam posto a firma Johns Manville na Justiça, mas foi preciso esperar 1962 para que epidemiologistas estabelecessem enfim, de maneira definitiva, o que os dirigentes de empresas sabiam há muito tempo: o amianto é cancerígeno. [2] A conspiração do silêncio organizou-se então em todos os continentes. Na África do Sul, o pesquisador C. Wagner não conseguiu encontrar editor para sua pesquisa sobre o mesotelioma, e publicou finalmente suas conclusões na Inglaterra. [3] Em 1987, no estaleiro de Gdansk, na Polônia, o Dr. Bogden Przygocki afixou sem autorização uma informação sobre os perigos do amianto. Foi despedido da clínica do estaleiro.
Durante os anos 80 e 90, a polêmica desloca-se para o terreno das organizações internacionais. Sob a capa de relatórios “oficiais” da Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Escritório Internacional do Trabalho (BIT), os “peritos” da indústria vão tentar avalizar como verdade científica uma mensagem dupla: 1) o amianto branco (crisotilo) é pouco ou não tóxico; [4] 2) seu “uso controlado” é possível. Essas tentativas fracassam sob a pressão de pesquisadores não ligados aos industriais, que denunciam a instrumentalização das organizações internacionais pelos lobbies. Conservando, entretanto, sua legitimidade social, os ditos “peritos” continuam a divulgar sua mensagem a fim de “tranqüilizar os mercados” em expansão nos países do Sul. Mas evitam cuidadosamente qualquer confrontação com as vítimas, nunca convidadas a testemunhar.
A manipulação dos governantes e opinião pública também toma outros caminhos. Assim, no Brasil, pesquisas epidemiológicas são feitas por professores universitários — também consultores médicos de empresas — em condições incompatíveis com as exigências do rigor científico. [5] Isto vale para a identificação dos ex-trabalhadores expostos (o Brasil possui 60% de trabalhadores sem carteira assinada), o estabelecimento de um diagnóstico (um terço da população não tem acesso a cuidados médicos) ou a medida da relação dose-efeito (sem conhecimento preciso das exposições). Assim será “provada” a inocuidade do crisotilo brasileiro!
Estas análises pretensamente “científicas” são acompanhadas por uma ofensiva mundial dos meios de comunicação. Na França, o Comitê Permanente do Amianto (CPA), organismo informal criado em 1982 por um gabinete de comunicação, agrupa, em torno dos industriais, os cientistas que avalizam, os poderes públicos que acobertam e os sindicatos que obedecem. [6] O CPA será o interlocutor privilegiado da imprensa, o “perito” incontornável que louva sem parar o “uso controlado” do amianto. Vai ser preciso esperar 1995 [7] para que o escândalo estoure… e que o CPA desapareça tão subrepticiamente como nasceu. O que não impedirá o senhor Claude Allègre, ainda não ministro, mas que já tem opinião sobre todos os campos da ciência, de continuar a espalhar sua mensagem. [8]
Propina e “solidariedade”
Por sua vez, os industriais e o Estado canadenses oferecem aos jornalistas e sindicalistas estrangeiros viagens ao sítio das Thetford Mines, no Quebec. Turismo sem risco na terra do amianto! A ajuda humanitária também não é esquecida: na Guatemala, o tremor de terra de 1976 permite à Duralit, filial local da Eternit, fornecer telhados de cimento-amianto financiados com o dinheiro das coletas de solidariedade. Em 1991, um protocolo de acordo chega a ser assinado entre o Alto Comissariado para Refugiados da ONU e o grupo multinacional belga Etex. Os primeiros “clientes” não tardam: Croácia, Guatemala e Ruanda-Burundi.
A reação das vítimas do amianto se dá nos terrenos da Justiça e da cidadania. Os processos revelam o drama dos doentes e de suas famílias, as práticas delituosas dos empregadores, a omissão culpada dos poderes públicos, dando a esse escândalo uma verdadeira dimensão política. Nos Estados Unidos, o “processo do século” — mais de 300 mil queixas — se desenrola: a empresa Johns Mansville declara-se falida em agosto de 1982 e cria um fundo de indenização, seguida por outros industriais e suas companhias de seguro. Mas o fundo se esgota logo, tamanho é o número de vítimas.
Na França, entre 1996 e 2000, por iniciativa da Associação Nacional de Defesa das Vítimas do Amianto, mais de mil ações civis ou penais foram iniciadas. Elas são também processos abertos junto ao sistema de prevenção e reparação das doenças profissionais e de suas instituições, em particular a medicina do trabalho.
No Brasil, atualmente o quinto produtor mundial, a Eternit e a Saint-Gobain beneficiaram-se, para explorar o amianto, das benevolências da ditadura militar, que censurava toda informação referente à saúde no trabalho e os riscos industriais. [9] Por iniciativa da Associação Brasileira dos Expostos ao Amianto, criada em 1997, centenas de trabalhadores (ou famílias de vítimas falecidas) prestam queixa. Em 1998, a Eternit é condenada a indenizar um ex-trabalhador. A Eternit e a Brasilit (filial brasileira da Saint-Gobain) propõem então a seus ex-empregados um acordo amigável em cujos termos os operários renunciam a qualquer processo em troca de uma eventual indenização em caso de doença. Fernanda Giannasi, inspetora de trabalho em São Paulo, denuncia publicamente estes acordos, que serão invalidados duas vezes pela Justiça brasileira. Fernanda é processada por difamação, pela Eternit, o que suscita um amplo movimento nacional e internacional de protesto e solidariedade. A Eternit perde na Justiça e renuncia a apelar.
As armações do Canadá
Em Londres, em 1999, perto de 2 mil trabalhadores negros das minas da África do Sul apresentam queixa contra seu ex-empregador, a firma britânica Cape Ltd. A Cape reage com uma campanha de imprensa, seguida pelos jornais conservadores, que denunciam o “custo escandaloso”, para os contribuintes britânicos da indenização eventual desses “mineiros estrangeiros”.
O Canadá, que exporta 99% de sua produção, empreende uma intensa atividade diplomática. Em 1994, no Brasil, por ocasião de um seminário internacional organizado pelo Ministério do Trabalho, o embaixador canadense exprime, diante de sete ministros, a preocupação de seu governo a respeito de um acordo entre o Estado brasileiro e os parceiros sociais para o fim progressivo do uso do amianto nos materiais de fricção. Em 1997, a embaixada do Canadá em Seul obtém do governo coreano a retirada de uma etiqueta que assinala os perigos do amianto canadense importado. Na Europa, Ottawa multiplica as pressões depois da proibição francesa. Não sem sucesso: Anthony Blair atrasa por dois anos a decisão de proibição requerida pelas autoridades de saúde britânicas… em troca do apoio canadense na crise da “vaca louca”.
Mas, ao longo dos anos 90, movimentos sociais contra o amianto nasceram em vários países. Seu dinamismo está ligado à diversidade de seus componentes: associações, profissionais de pesquisa, de direito e de saúde e organizações sindicais. Seu desenvolvimento internacional se explica também pelas formas de cooperação postas em ação: não a reprodução da relação clássica Norte-Sul, mas a partilha de experiências e informações e apoio recíproco às lutas sociais que cada um iniciou no seu próprio país. É certo que essas lutas utilizam amplamente as redes virtuais de comunicação, mas se apóiam acima de tudo em laços humanos de solidariedade. A capacidade de contra-poder liga-se à legitimidade de cada um no combate pelo direito à vida e à saúde.
Reduzindo o direito à saúde a “disposições técnicas”, a arbitragem da OMC desloca a legitimidade do campo político para o campo da perícia científica e tecnocrática, fora de qualquer mecanismo democrático. Num estudo [10] realizado a pedido do Escritório Técnico Sindical europeu, Saman Zia-Zarifi e Mary Footer mostram que mesmo que a decisão do ORD não coloque em causa a decisão francesa da interdição do amianto, o próprio procedimento tende a inscrever a saúde humana e a segurança no trabalho na esfera de competência da OMC. Até então, eram assuntos relativos à soberania nacional. Além dos critérios aos quais ela se refere — em particular o primado da liberdade de comércio — este procedimento dá apenas aos “peritos” a legitimidade de dizer a “verdade”, em nome da ciência. O conhecimento sobre os perigos do amianto que as vítimas possuem é, no entanto, o único que pode dar a medida humana do risco. É também o único a não ser solicitado no procedimento de decisão de conflitos na OMC…
Se a competência da OMC não for categoricamente recusada nos campos em que pesa a cidadania, ou mesmo a simples dignidade, os princípios do direito elaborados ao longo da história dos povos — o direito à vida e à saúde, o direito à proteção do homem no trabalho, o direito à preservaç?