Estudos mostram que o aquecimento global pode estar subestimado
A taxa do aquecimento médio superficial global nestes anos 2020 já é cerca de 50% maior do que a taxa de aquecimento que serviu de base às projeções do IPCC em 2018 e está em vias de se tornar quase o dobro daquela taxa de base dos anos 1970-2015
Os seres humanos estão provocando alterações acima dos limites da capacidade de suporte natural do planeta e as ações corretivas têm sido insuficientes para reverter o quadro, apontado pela ciência como catastrófico para a humanidade.
Além da indefinição sobre as decisões a serem tomadas, sobre as quais titubeiam países reticentes em abrir mão de suas estruturas baseadas em combustíveis fósseis, há uma questão essencial a considerar: as medidas que vêm sendo anunciadas são reais? Os avanços registrados pela ONU, a partir dos inventários de emissões fornecidos pelos diferentes países, seriam baseados em dados confiáveis?
Abordaremos essas questões a partir da visão atualizada da ciência sobre a aumento do aquecimento global – acima do esperado – e sobre a necessidade de aferição dos dados fornecidos por diferentes países às Nações Unidas sobre suas emissões líquidas.
A aceleração do aquecimento acima do esperado
“O sistema Terra está atualmente em um estado de rápido aquecimento, sem precedentes mesmo nos registros geológicos”.[1] A rapidez desse aquecimento não é apenas sem precedentes, mas está evoluindo a um ritmo não considerado nas projeções de aquecimento do IPCC. Em seu relatório especial de 2018 (SR1.5 2018), o IPCC afirmava ser “provável que o aquecimento global atinja 1,5 ºC entre 2030 e 2052, se continuar a aumentar na taxa atual (alta confiabilidade)”.[2]
O ano de 2040 estaria no centro dessa projeção como a data mais provável em que a temperatura média do planeta atingiria estrutural e irreversivelmente um aquecimento de 1,5 ºC em relação ao período pré-industrial. Como se sabe, já em 2018 essa projeção foi considerada conservadora por vários cientistas.[3]
Seu problema não decorre da acurácia dos modelos utilizados, mas de sua suposição de base, segundo a qual o aquecimento futuro continuaria a aumentar “na taxa atual”. Nesse mesmo relatório de 2018, o IPCC reiterava que “o aquecimento global antropogênico está atualmente aumentando em 0,2 ºC (provavelmente entre 0,1 ºC e 0,3 ºC) por década, em decorrência das emissões passadas e atuais (alta confiabilidade)”.[4] Essa estimativa de aquecimento decenal é consistente com a do Goddard Institute for Space Studies (GISS), para o qual o aquecimento no período 1970-2015 foi de 0,18 ºC por década (0,27 ºC/década nas terras emersas e 0,11 ºC/década nos oceanos), conforme mostra a Figura 1.
Figura 1 – Temperaturas médias superficiais, terrestres e marítimas combinadas, em relação ao período de base 1880-1920, baseadas nos dados do GISTEMP. Médias anuais: curvas com quadrados pretos (azul); curvas médias a cada 11 anos (vermelho) e melhor tendência linear entre 1970 e 2015 (verde), com aquecimento médio de 0,18 oC por década. As flechas assinalam os efeitos dos 2 “Super El Niños” de 1998 e 2016. Fonte: James Hansen et al., “Global Temperature in 2021”, 13/I/2021. Climate Science, Awareness and Solutions Program. Earth Institute. Columbia University.
Ocorre que essa taxa de aquecimento de 0,18 ºC por década constatada no período 1970-2015 pertence definitivamente ao passado. O aquecimento médio superficial planetário entrou agora numa nova fase de aceleração, advertida já em 2018 por Yangyang Xu, Veerabhadran Ramanathan e David Victor.
Segundo esses autores, “nos próximos 25 anos o aquecimento evoluirá à taxa de 0,25 ºC a 0,32 ºC por década”.[5] Esse prognóstico foi confirmado em julho de 2021 por James Hansen e Makiko Sato, que se indagam sobre a medida do desvio do aquecimento recente em relação à tendência linear dos últimos cinquenta anos. A resposta que oferecem é 0,14 ºC, além do aumento médio de 0,18 ºC por década observado no período 1970-2015.
Portanto, a taxa decenal de aquecimento já em 2021 seria de 0,32 ºC, ou seja, estaria no limite superior das projeções de Xu, Ramanathan e Victor (0,25 ºC a 0,32 ºC por década “nos próximos 25 anos”). Sempre segundo James Hansen e Makiko Sato, a taxa prevista de aquecimento para o período 2015-2040 é ainda maior do que a prevista pelos três estudiosos citados. Ela seria de 0,36 ºC por década, ou seja, o dobro da taxa registrada no período 1970-2015. Hansen e Sato são explícitos a respeito: “Nossa expectativa é que a taxa de aquecimento global para o quarto de século 2015-2040 seja cerca do dobro da taxa de aquecimento de 0,18 ºC por década durante o período 1970-2015, a menos que se tomem medidas apropriadas”.[6]
A taxa do aquecimento médio superficial global nestes anos 2020 já é, portanto, cerca de 50% maior do que a taxa de aquecimento que serviu de base às projeções do IPCC em 2018 (aproximadamente 0,2 ºC) e está em vias de se tornar quase o dobro daquela taxa de base dos anos 1970-2015.
Tal aceleração tem sido confirmada pelos termômetros. Bastem aqui três ou quatro exemplos. Em junho de 2021, a Organização Meteorológica Mundial afirmou ser difícil registrar todos os recordes de temperatura, tal sua quantidade.[7] Em Lytton, na província de Colúmbia Britânica, no Canadá, a temperatura chegou em junho daquele ano a 49,6 ºC, sendo que a média da cidade no mês é de 24 ºC. Na mesma província canadense, romperam-se no dia 27 de junho de 2021 sessenta recordes de temperatura e no dia 28, mais 59, obrigando o governo a fechar escolas e a abrir refúgios com ar-condicionado.[8]
A Sicília bateu por quase 1 ºC o recorde europeu de 48 ºC (Atenas, 1977) ao registrar 48,8 ºC em Siracusa em agosto de 2021.[9] As temperaturas no Kuwait estão tornando o país inabitável para os humanos e para outros animais. Em 2021, as temperaturas nesse país ultrapassaram pela primeira vez a marca de 50 ºC já em junho, ou seja, semanas antes do período de maior calor.[10]
Os oceanos fornecem um indicador particularmente confiável para se avaliar o ritmo atual do aquecimento planetário, não apenas porque neles se armazena cerca de 90% do calor acumulado pelo desequilíbrio radiativo do planeta, mas também porque as variações de curto prazo do aquecimento oceânico são menores do que as da temperatura da atmosfera. Em 2022, a temperatura média na superfície dos oceanos (entre as latitudes 60o N e 60o S) bateu mais um recorde histórico desde o início dos registros por satélite, atingindo em abril 21,1 °C, superando assim os recordes de 2016 e de 2021, como mostra a Figura 2.
Figura 2 – Temperatura de superfície dos oceanos entre as latitudes 60o N e 60o S. Fonte: Graham Readfearn, “‘Headed off the charts’: world’s ocean surface temperature hits record high”. The Guardian, 8/IV/2023. Baseado em National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA), Maine Climate Office, Climate Change Institute, University of Maine.
Há certeza de que esse aquecimento se deve primordialmente ao aumento das concentrações atmosféricas de gases de efeito estufa (GEE), sobretudo o dióxido de carbono (CO2), o metano (CH4) e o óxido nitroso (N2O). As concentrações atmosféricas de CO2, o mais importante desses gases, têm aumentado, com efeito, a taxas cada vez mais rápidas. Entre 1960 e 1969, o aumento do CO2 atmosférico vinha evoluindo à taxa média anual de 0,85 partes por milhão (ppm).[11] Nos últimos onze anos, essa taxa quase triplicou, pois suas concentrações atmosféricas têm aumentado anualmente em mais de 2 ppm. Em março de 2023, por exemplo, elas atingiram 421 ppm, ou 2,19 ppm a mais do que em março de 2022 (418,81 ppm).[12] Hoje, tais concentrações são mais do que 50% maiores do que no início da Revolução Industrial.
Também as concentrações atmosféricas de metano quase triplicaram nos últimos duzentos anos, aumentando de cerca de 720 partes por bilhão (ppb) em média no período pré-industrial para 1.924,99 ppb em dezembro de 2022,[13] com forte disparada sobretudo desde 2007. No quinquênio 2007-2011, elas aumentaram em média 5,82 ppb por ano. Mas no quinquênio 2018-2022, elas aumentaram 13,066 ppb em média por ano.
Já em 2016, Marielle Saunois e colegas alertavam que “as concentrações atmosféricas de metano estão crescendo mais rapidamente do que em qualquer outro período nas duas últimas décadas e estão se aproximado desde 2014 dos cenários de maiores emissões de GEE”.[14] Quanto ao óxido nitroso, suas concentrações atmosféricas estão agora 24% acima dos níveis pré-industriais, após um aumento de 1,25 ppb no ano passado.[15]
A subnotificação das emissões de GEE reportadas pelos inventários nacionais
Não é possível conhecer a taxa real de aumento do aquecimento presente e futuro se não se conhecer o montante real das emissões dos GEE que provocam esse aquecimento. Todas as projeções de aquecimento nos diversos horizontes de tempo (2030, 2050 e 2100) baseiam-se diretamente na evolução estimada dessas emissões. Desde 1997, as nações signatárias da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança Climática (UNFCCC) reportam anualmente seus inventários nacionais de emissões de GEE. É importante entender bem o que são esses inventários. Como bem lembram Alex Rudee e Jenn Phillips:
“Um inventário contabiliza todas as emissões e remoções de GEE causadas pelo homem associadas a uma entidade específica [nacional ou subnacional]. O inventário atua essencialmente como um balanço das mudanças climáticas, rastreando o volume total de GEE emitido de fontes como consumo de combustível fóssil e produção agropecuária, menos o volume de GEE sequestrado pelas plantas e solos ou por meios tecnológicos”.[16]
“Os inventários de GEE”, continuam os autores, “permitem que entidades como países, “Estados, cidades e empresas quantifiquem quanto progresso estão fazendo para atingir as metas de redução de emissões, tais como as estabelecidas no Acordo Climático de Paris”.
Como se sabe, os Estados signatários do Acordo de Paris em 2015 comprometeram-se a reduzir as emissões líquidas de GEE em 50% a 52% abaixo dos níveis de 2005 até 2030, de modo a conservar uma chance razoável de manter o aquecimento médio global entre 1,5 ºC e 2 ºC até 2100, vale dizer, em níveis compatíveis com as possibilidades de adaptação de nossas sociedades. No entanto, esses inventários têm mostrado aumentos praticamente ininterruptos dessas emissões líquidas e registram agora números cada vez mais próximos de 60 bilhões de toneladas (Gigatoneladas ou Gt) por ano.
De fato, o Sexto Relatório do IPCC (Working Group III), publicado em abril de 2022, afirma, baseado justamente nesses inventários nacionais: “As emissões antropogênicas líquidas de gases de efeito estufa (GEE) foram de 59 ±6,6 GtCO2-equivalente em 2019, cerca de 12% mais altas do que em 2010 e 54% mais altas do que em 1990”.[17] Estamos, portanto, caminhando no sentido contrário ao que deveríamos. No entanto, o problema é ainda maior, pois as emissões de GEE reportadas pelos países em seus inventários nacionais à Convenção-Quadro subestimam as emissões reais.
O Brasil e demais países signatários da UNFCCC reportam suas emissões líquidas de GEE, isto é, as emissões restantes, uma vez subtraído o montante desses gases, em especial o CO2 absorvido pelos sistemas naturais, sobretudo os solos, as florestas e as plantas em geral em sua fotossíntese. Essa metodologia é lícita nos termos da Convenção-Quadro, mas é cada vez mais falsa, pois está baseada em cálculos defasados sobre a capacidade desses sistemas naturais de funcionarem como sumidouros de CO2.
As emissões oriundas da mudança de uso de solo (principalmente desmatamento) não contabilizam no caso da Amazônia, por exemplo, as emissões provenientes da degradação florestal (fragmentação, desmatamento seletivo, incêndios, efeitos de borda etc.). Celso Silva Junior e outros 32 renomados pesquisadores da Floresta Amazônica assinaram em 2021 uma carta ao editor da revista Nature Geoscience, na qual apelam para que as emissões de carbono decorrentes da degradação florestal sejam incorporadas nos inventários de emissões de carbono dos países amazônicos:[18]
“A degradação florestal induzida pelo homem é o principal fator de empobrecimento socioambiental na Amazônia, e sua extensão está aumentando. As florestas degradadas ocupam atualmente uma área maior do que a que foi desmatada. […] Agravando esse cenário, as emissões de CO2 resultantes da degradação não são apenas imediatas. As florestas degradadas continuam a emitir mais CO2 do que absorvem por muitos anos, tornando-se fontes significativas de carbono. É extremamente importante que todos os países amazônicos cessem essas emissões. Isso requer relatar toda a gama de emissões de CO2 à UNFCCC, incluindo a degradação florestal”.
Numa entrevista concedida ao jornal El País em outubro de 2021, o cientista brasileiro Carlos Nobre, um dos maiores especialistas no assunto, reitera essa percepção de que as emissões dos países amazônicos reportadas à ONU são subestimadas justamente por não incluírem as emissões derivadas da degradação florestal:[19] “O inventário oficial das emissões de gases causadores do efeito estufa só considera emissões provenientes do corte raso de árvores, mas ele não considera a degradação […] Temos dados que mostram que 17% de toda a Floresta Amazônica, 6,2 milhões de km2, já foram desmatados com corte raso de árvores, e outros 17% estão em diversos estágios de degradação. Isso é um dado que não é muito falado. […] Considerando as emissões de gás carbônico de áreas desmatadas com corte raso, essa área degradada emitiu mais 53% de gases”.
Se contabilizadas, as emissões totais de GEE do Brasil, ao menos as originadas da Amazônia, seriam, portanto, cerca do dobro das emissões relatadas oficialmente.
Além disso, as florestas degradadas têm absorvido menos CO2 do que anteriormente. Elas se tornaram por vezes neutras ou mesmo fontes de CO2, dada sua menor produtividade primária líquida (NPP) e sua maior mortalidade.[20]
E não é apenas o caso da Amazônia. A Malásia, por exemplo, emitiu 422 milhões de toneladas (Mt) de GEE em 2016, o que a coloca entre os 25 países maiores emissores de GEE do mundo. Contudo, o país declarou à ONU que suas emissões neste ano foram de apenas 81 Mt, argumentando que suas florestas haviam absorvido grandes quantidades de CO2.[21] Também os Estados Unidos subtraem quase 800 milhões de toneladas de seus inventários, algo próximo a 12% de suas emissões brutas, a partir de modelos e cálculos da EPA (State Inventory Tool ou SIT), desatualizados e/ou arbitrariamente generalizados para o país como um todo.[22]
As mensurações subestimadas de metano
Essa discrepância entre emissões reportadas e emissões reais seria ainda maior se se incluíssem (ou não se subestimassem) as emissões de GEE, sobretudo metano, originadas, no caso brasileiro, das 158 represas hidrelétricas atualmente em operação ou em construção na bacia amazônica (e há propostas e projetos para mais 351 dessas represas), emissões muito significativas como tem apresentado Philip Fearnside em uma série de trabalhos.[23] O autor mostra que as emissões de carbono das represas hidrelétricas brasileiras acabam sendo superiores às das usinas termelétricas, para uma geração equivalente de eletricidade, sendo esse montante muito superior aos números oficialmente admitidos pela Eletrobrás:[24]
“Os reservatórios hidrelétricos do Brasil em 2000 totalizavam 33 mil km2, uma área maior que a da Bélgica [30.526 km2]. […] Infelizmente, a expectativa é que essas represas tenham emissões cumulativas maiores que as da geração de eletricidade por combustíveis fósseis por períodos que podem se estender por várias décadas, tornando-as indefensáveis com base na mitigação do aquecimento global”.
Em um artigo de 2020, publicado no The New York Times, Fearnside inventaria, além disso, os imensos malefícios sociais e ambientais dessas grandes represas, defendidas apenas pela ganância das grandes empreiteiras.[25] No que diz respeito apenas às emissões de carbono, particularmente de metano, associadas a essas represas – emissões, repita-se, não reportadas pelo Brasil e demais países amazônicos à ONU – Alexandre Kemenes, Bruce Forsberg e John Melack reportam os seguintes dados, de 2008:[26]
“Até o momento, as emissões totais de cinco hidrelétricas do trópico úmido (Balbina, Tucuruí, Curuá-Una, Samuel e Petit-Saut) foram estimadas através de dados reais e cálculos matemáticos. Dessa maneira, as emissões revelaram-se sempre maiores que as das termelétricas tropicais consideradas, inclusive as que queimam carvão mineral, tido como o combustível fóssil mais poluente. Em Balbina, […] a emissão de gases-estufa por megawatt-hora (MWh) é cerca de 10 vezes maior que a de uma termelétrica a carvão mineral. Mesmo Tucuruí, com uma das melhores densidades energéticas do país, pode gerar quase duas vezes mais gases-estufa por MWh que uma termoelétrica a carvão”.
Mais recentemente, também Rafael de Almeida e colegas advertem que:[27]“Cerca de 10% das usinas hidrelétricas do mundo emitem tantos GEE por unidade de energia quanto as usinas convencionais de energia fóssil. Algumas barragens existentes na planície amazônica demonstraram ser até dez vezes mais intensivas em carbono do que as usinas termelétricas movidas a carvão”.
No caso dos Estados Unidos, estudos publicados entre 2020 e 2022 mostram que os escapes de metano em plataformas de extração de petróleo e gás em águas superficiais no Golfo do México têm sido largamente subestimados.[28]
Os incêndios florestais
Outra fonte de emissões de GEE nem sempre reportada corretamente pelos países são as causadas por incêndios florestais. Ocorre que esses incêndios estão aumentando rapidamente em extensão espacial, intensidade, duração e frequência. Segundo o Copernicus, apenas em 2021, eles foram responsáveis por emissões de 1,76 bilhão de toneladas de GEE, mais do dobro das emissões da Alemanha naquele ano.[29] Um trabalho publicado em outubro de 2022 estima que os incêndios florestais na Califórnia apenas em 2020 emitiram 127 milhões de toneladas de CO2-equivalente ou sete vezes mais que a média anual do período 2003-2019. Segundo seus autores:[30]
“As emissões de dióxido de carbono equivalente (CO2e) dos incêndios florestais da Califórnia a partir de 2020 são aproximadamente duas vezes maiores do que as reduções totais de emissões de GEE da Califórnia desde 2003. Sem considerar o crescimento futuro da vegetação, as emissões de CO2e dos incêndios florestais de 2020 podem ser a segunda fonte mais importante de emissões nesse estado, acima da indústria ou da geração de energia elétrica. A vegetação poderá voltar a crescer parcial ou totalmente em um longo período de tempo, mas dada a crise climática, a maior parte desse rebrote não ocorrerá com rapidez suficiente para evitar um aquecimento de 1,5 ºC de aquecimento”.
Na Rússia, estima-se que 50% das emissões de carbono provenientes de incêndios nas imensas florestas desse país não foram reportadas nos inventários nacionais no período 2004-2020.[31] Em 2017, os incêndios florestais que se estenderam por mais de três meses em Elephant Hill no estado de British Columbia, no Canadá, lançaram na atmosfera cerca de 38 milhões de toneladas de CO2, algo equivalente às emissões médias de 8 milhões de automóveis durante um ano. Essas emissões não foram contabilizadas pelo Canadá, que, a exemplo de outros países, argumenta que não deve reportar emissões de GEE não antropogênicas, isto é, causadas por “perturbações naturais” (natural disturbances).[32] O subterfúgio é de um cinismo exemplar, pois o aumento em frequência e em extensão temporal e espacial desses incêndios é inequivocamente de natureza antropogênica.
O abismo entre emissões reportadas e emissões reais
A envergadura global dessas discrepâncias entre as emissões reportadas pelas Partes da UNFCCC e as emissões antropogênicas reais foi recentemente revelada por um estudo realizado pelo jornal The Washington Post, segundo o qual:[33]
“Em todo o mundo, muitos países subnotificam suas emissões de GEE em seus relatórios para as Nações Unidas. […] Um exame de relatórios de 196 países revela uma gigantesca discrepância entre as emissões de GEE declaradas pelas nações e o que de fato elas estão enviando para a atmosfera. A discrepância varia entre pelo menos 8,5 bilhões e 13,3 bilhões de toneladas por ano de emissões subnotificadas – algo grande o suficiente para mover a agulha sobre o quanto a Terra vai aquecer. O plano para salvar o mundo do pior das mudanças climáticas é baseado em dados. Mas os dados em que o mundo está confiando são inexatos”.
Em outras palavras, o montante real das emissões de GEE não notificadas pelos países à ONU pode ser, no mínimo, maior que as emissões de GEE dos EUA em 2022 (5,6 GtCO2-equivalente em 2022 ou 13% das emissões globais)[34] e, no máximo, um montante de emissões quase equivalente às da China em 2022, estimadas em 14,3 GtCO2e, segundo os últimos cálculos do Climate Action Tracker.[35] Essas emissões equivalem a 27% das emissões globais de CO2 e a um terço das emissões de GEE em geral, segundo o World Bank.[36]
Eliminando as inconsistências na aferição das emissões de GEE
Um preceito básico da ciência é o de que só se pode conhecer, prever e, portanto, gerir, o que se pode medir. Os países não estão notificando corretamente à ONU as mensurações de suas emissões líquidas antropogênicas. Não é de admirar, assim sendo, que o aquecimento global esteja ocorrendo agora a uma velocidade superior à prevista pelas projeções.
Será preciso rever os dados sobre inventários nacionais fornecidos à ONU, aferindo sua metodologia. Deverá ser adequada, confiável e auditável, o que inclui a participação da sociedade civil dos diferentes países envolvidos. É preciso criar e colocar em prática mecanismos de publicidade, participação e controle social sobre o processo de obtenção dos dados e formulação dos inventários nacionais.
Nos considerandos iniciais do Acordo de Paris há reconhecimento a respeito das repercussões sobre a eficácia das medidas adotadas no enfrentamento das mudanças do clima. Além disso, enfatiza-se “a relação intrínseca entre as ações, as respostas e os impactos da mudança do clima e o acesso equitativo ao desenvolvimento sustentável e à erradicação da pobreza”.
Vale a pena ressaltar, no cenário brasileiro, a tese firmada pelo STJ no IAC 13, que estabelece a obrigatoriedade da transparência nos dados de interesse público ambiental, conforme alerta o jurista Tiago Ferstenseifer: “Isso tem a ver justamente com o cumprimento dos deveres do Estado na proteção climática. Utilizar uma metodologia que mascara a realidade seria uma atuação flagrantemente inconstitucional, omissiva do Estado brasileiro”.
Não resta dúvida sobre a necessidade de se abordar, de forma técnica e jurídica, esses aspectos prioritários para a proteção da sociedade humana e a biosfera. Forte e necessária pauta para debate e regulamentação nos diferentes países, na ONU, IPCC e próximas COPs.
Luiz Marques é professor da Unicamp e autor do livro Capitalismo e colapso ambiental (Editora da Unicamp, 2019).
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam)
[1] Cf. Matthias Aengenheyster, Q.Y. Feng, F. van der Ploeg & H.A. Dijkstra, “The point of no return for climate action: effects of climate uncertainty and risk tolerance, Earth System Dynamics, 9, 2018, pp. 1085-1095.
[2] Cf. IPCC (2018), p. 4: “Global warming is likely to reach 1.5°C between 2030 and 2052 if it continues to increase at the current rate (high confidence).”
[3] Cf. Scott Waldman, “New climate report actually understates threat, some researchers argue”. Science, 12/X/2018. Originalmente publicado em E&E News.
[4] IPCC (SR1.5 2018), Summary for Policymakers, p. 4.
[5] Cf. Yangyang Xu, Veerabhadran Ramanathan & David Victor, “Global Warming will happen faster than we think”. Nature, 5/XII/2018.
[6] Cf. James Hansen & Makiko Sato, July Temperature Update: Faustian Payment Comes Due”. 13/VIII/2021. <http://www.columbia.edu/~mhs119/Temperature/Emails/July2021.pdf>.
[7] Cf. OMM, “June ends with exceptional heat”, 29/VI/2021: “So many records have been broken that it is difficult to keep track”.
[8] Cf. Manuel Planelles & Jaime Porras Ferreyra, “La ONU advierte sobre la gran ola de calor en Norteamérica: ‘Es más propia de Oriente Próximo’”. El País, 29/VI/2021; “Canadá registra centenas de mortes súbitas em meio a onda recorde de calor”. G1, 30/VI/2021.
[9] Cf. Phoebe Weston & Jonathan Watts, “Highest recorded temperature of 48.8C in Europe apparently logged in Sicily”. The Guardian, 12/VIII/2021.
[10] Cf. Fiona MacDonald, “One of the World’s Wealthiest Oil Exporters Is Becoming Unlivable”. Bloomberg, 16/I/2022: “Last year, for the first time, they breached 50°C in June, weeks ahead of usual peak weather”.
[11] Cf. CO2 acceleration <https://www.co2.earth/co2-acceleration>.
[12] Cf. NOAA, Global Monitoring Laboratory. Trends in CO2 <https://gml.noaa.gov/ccgg/trends/>.
[13] Cf. Ed Dlugokencky, NOAA, Trends in atmospheric methane <https://gml.noaa.gov/ccgg/trends_ch4/>.
[14] Cf. Marielle Saunois et al., “The growing role of methane in anthropogenic climate change”. Environmental Research Letters, 11, 12, 12/XII/2016.
[15] Cf. Nina Lakhani, “Greenhouse gas emissions rose at ‘alarming’ rate last year, US data shows”. The Guardian, 6/IV/2023.
[16] Cf. Alex Rudee & Jenn Phillips, “Why Greenhouse Gas Inventories Are Important for Natural and Working Lands — and How to Fix Them”. World Resources Institute, 9/VI/2021.
[17] Cf. IPCC, Sixth Assessment Report 2022, Working Group III – Mitigation of Climate Change, 5/IV/2022, Summary for Policymakers, p. 4.
<https://report.ipcc.ch/ar6wg3/pdf/IPCC_AR6_WGIII_SummaryForPolicymakers.pdf>.
[18] Cf. Celso H. L. Silva Junior et al., “Amazonian forest degradation must be incorporated into the COP26 agenda”. Nature Geoscience, 14, 2/IX/2021, pp. 634-635. Agradecemos a Philip Fearnside por me ter gentilmente assinalado essa “Letter to the editor”, da qual é um dos signatários.
[19] Veja-se entrevista concedida a Felipe Betim, “Carlos Nobre: ‘O desafio brasileiro vai além da Amazônia. Não dá mais para jogar para o futuro’”. El País, 30/X/2021.
[20] Cf. Luciana V. Gatti et al., “Amazonia as a carbon source linked to deforestation and climate change”. Nature, 595, 14/VII/2021; Scott Denning, “Southeast Amazonia is no longer a carbon sink”. Nature, 595, 15/VII/2021; Luciana V. Gatti et al., “Amazon carbon emissions double mainly by dismantled in law enforcement”. Preprint, 19/IX/2022 <https://www.researchsquare.com/article/rs-2023624/v1>.
[21] Cf. Chris Mooney, Juliet Eilperin, Desmond Butler, John Muyskens, Anu Narayanswamy & Naema Ahmed, “Countries’ climate pledges built on flawed data, Post investigation finds”. The Washington Post, 7/XI/2021.
[22] Cf. Environmental Protection Agency (EPA), “State Inventory and Projection Tool”.
<https://www.epa.gov/statelocalenergy/state-inventory-and-projection-tool>.
[23] Cf. Philip M. Fearnside, “Greenhouse Gas Emissions from a Hydroelectric Reservoir (Brazil’s Tucuruí Dam) and the Energy Policy Implications”. Water, Air, and Soil Pollution, 133, 2002, pp. 69-96; Idem, “Why Hydropower is not clean energy”. Scitizen, 9/I/2007.
[24] Cf. Philip M. Fearnside & Salvador Pueyo, Greenhouse-gas emissions from tropical dams”. Nature Climate Change, 2, 2012, pp. 382-384.
[25] Cf. Philip Fearnside, “Many rivers, too many dams”. The New York Times, 2/X/2020.
[26] Cf. Alexandre Kemenes, Bruce Forsberg e John Melack, “As hidrelétricas e o aquecimento global”. EcoDebate, originalmente publicado no Jornal do Brasil em 27/01/2008.
[27] Cf. Rafael M. Almeida et al., “Reducing greenhouse gas emissions of Amazon hydropower with strategic dam planning”. Nature Communictions, 19/IX/2019.
[28] Cf. Alan Gorchov Negron et al., “Airborne Assessment of Methane Emissions from Offshore Platforms in the U.S. Gulf of Mexico”. Environmental Science & Technology, 54, 8. 2020, pp. 5112-5120; Alana K. Ayasse et al., “Methane remote sensing and emission quantification of offshore shallow water oil and gas platforms in the Gulf of Mexico”. Environmental Research Letters, 11/VIII/2022; Sara Sneath, “Growing Body of Research Suggests Offshore Oil’s Methane Pollution Is Underestimated”. DeSmog, 7/II/2023.
[29] Cf. Kate Abnett, “This is how much carbon wildfires have emitted this year”. Weforum, 10/XII/2021.
[30] Cf. Michael Jerrett, Amir S. Jina & Miriam E. Marlier, “Up in smoke: California’s greenhouse gas reductions could be wiped out by 2020 wildfires”. Environmental Pollution, 310, 1/X/2022.
[31] Cf. Aleksey A. Romanov et al., “Reassessment of carbon emissions from fires and a new estimate of net carbon uptake in Russian forests in 2001–2021”. Science of the Total Environment, 846, 10/XI/2022.
[32] Cf. Amanda Coletta, Chris Mooney, Brady Dennis, Naema Ahmed & John Muyskens, “A megafire raged for three months. No one’s on the hook for its emissions”. The Washington Post, 20/IV/2022.
[33] Cf. Chris Mooney, Juliet Eilperin, Desmond Butler, John Muyskens, Anu Narayanswamy & Naema Ahmed, “Countries’ climate pledges built on flawed data, Post investigation finds”. The Washington Post, 7/XI/2021.
[34] Cf. Derek Brower, “US greenhouse gas emissions rose again in 2022 despite climate goals”. Financial Times, 10/I/2023.
[35] Cf. Climate Action Tracker, China, 3/XI/2022 <https://climateactiontracker.org/countries/china/>.
[36] “China’s Transition to a Low-Carbon Economy and Climate Resilience Needs Shifts in Resources and Technologies”. The World Bank, 12/X/2022.
Obrigado pelo artigo!
Um reparo no trecho “a temperatura chegou em junho daquele ano a 49,6 ºC, mais do dobro da temperatura média da cidade no mês (24 ºC)”: 48 não é o dobro de 24, quando o ZERO não é absoluto! Para entenderem melhor, transformem em fahrenheit e o resultado será outro. O zero absoluto é -273ºC. De outra forma, como dizer de um lugar em que a temperatura média é +1ºC e houve um evento específico com +2ºC? É o dobro também, mas é irrisório?