Evasão fiscal, desigualdades tributárias e a desilusão com os processos democráticos
Uma das funções primordiais do Estado repousa em prover uma rede de segurança, a proteção social, para os cidadãos . Trata-se de preservar a coesão social, assegurando que as pessoas e as famílias estejam protegidas contra os riscos e as oscilações que são inerentes ao sistema capitalista de produção. Contudo, a grande influência dos poderes econômicos nos processos democráticos criou um quadro legal que protege as grandes corporações
O fim de ano está quente para os que habitam o andar de cima. A investigação global “Paradise Papers” jogou luz sobre as atividades offshore de diversas empresas e notáveis da política, da mídia e do mercado. Durante um ano, a investigação conduzida pelo Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), com arquivos obtidos pelo jornal alemão “Süddeutsche Zeitung”, explorou documentos que dizem respeito às operações financeiras realizadas em paraísos fiscais, como as Ilhas Bermudas, Maurício ou até Cingapura.
O novo escândalo lembra o caso recente “Panama Papers”, que flagrou graúdos da política e do mundo empresarial envolvidos na alocação de recursos em paraísos fiscais e na utilização de serviços de “planejamento tributário” para fugir de suas obrigações tributárias. Ao que tudo indica, os valiosos serviços prestados pelas empresas offshore, em paraísos fiscais, continuaram sem maiores perturbações. O 1% mais rico segue praticando seu esporte favorito.
As informações obtidas demonstram a existência de uma rede de profissionais especializados em “aconselhar” seus clientes sobre as operações offshore, capazes de blindar ativos e fortunas dos impostos cobrados por diversos países. O sistema tem se mostrado altamente eficaz para ocultar trilhões de dólares dos órgãos públicos incumbidos de fiscalizar a coleta de impostos. A reportagem veiculada pelo ICIJ, sobre o tema, traz preocupações com os privilégios desfrutados pela parcela dos 1% mais ricos do mundo, que parecem não estar sujeitos às mesmas leis que o resto dos 99%.
Entre as diversas maneiras utilizadas para se esquivar das obrigações tributárias, merece destaque o uso de operações offshore para a compra de aviões e barcos de luxo, como o malabarismo contábil realizado para a compra de um jato, por um certo piloto inglês – tetracampeão de formula um – que recebeu 5.2 milhões de dólares, referentes ao value-added tax. O atual Ministro da Fazenda no Brasil, Henrique Meirelles, é outra personalidade influente que aparece envolvida no vazamento das operações offshore. Outros nomes envolvidos nas operações offshore foram: o atual Ministro da Agricultura no Brasil, Blairo Maggi, o atual Presidente da Colômbia, Juan Manuel Santos, e, também, a rainha Elisabeth II, do Reino Unido.

É fundamental ressaltar que as atividades financeiras offshore não configuram infrações legais, contanto que realizadas dentro da lei e declaradas para a Receita Federal. Não há evidência de que as pessoas supracitadas estiveram pessoalmente envolvidas nos planos de engenharia financeira elaborados pelos seus advogados. O leitor, certamente, irá eximir de qualquer responsabilidade todos os envolvidos que, inocentemente, buscaram um aconselhamento de um profissional especializado e apenas seguiram as sugestões recebidas.
Há de se ponderar, todavia, que as operações acontecem, frequentemente, numa área “cinzenta” da legalidade tributária. Se, por um lado, a atividade offshore não é um crime; por outro lado, a quantidade de advogados, contadores e profissionais envolvidos nos procedimentos pode sugerir algo diferente. É importante lembrar que o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, atualmente preso em Curitiba, viu-se numa polêmica discussão acerca dos trusts no exterior. Cunha, ao ser questionado sobre a posse dos ativos, afirmou que não era o dono destes, mas, sim, um usufrutuário em vida.
Não é preciso ser um pesquisador para saber que o Brasil está longe de oferecer uma verdadeira igualdade de oportunidades para seus cidadãos. Há desigualdade no acesso à educação, saúde, moradia e segurança. Todavia, cabe destacar mais uma dimensão da desigualdade nacional: o privilégio de transferir recursos para as Ilhas Bermudas.
Para além das possibilidades de evasão fiscal, é importante mencionar as injustiças criadas pelo sistema tributário brasileiro, mormente em função do perfil da carga tributária. Em primeiro lugar, a péssima distribuição dos impostos – sua baixa progressividade – impede que o sistema tributário seja utilizado como um instrumento de justiça fiscal. Em segundo lugar, a elevada incidência de impostos indiretos mina o crescimento econômico, inibe o consumo e termina por agravar as desigualdades nacionais. Desde 1988, vale dizer, nenhum governo ousou mexer na complexidade, injustiça e baixa progressividade que caracterizam o sistema tributário no Brasil . Estudos mostram que os brasileiros super ricos pagam menos imposto, em proporção a sua renda, do que um cidadão de classe média – distorção causada pela isenção de lucros e dividendos que são distribuídos aos acionistas, bem como pela baixa tributação sobre os ganhos financeiros.
A profícua investigação de Gabriel Zucman, acerca da riqueza global alocada em paraísos fiscais, indica que será necessário mais do que um simples escândalo, ou vazamento de dados sigilosos, para combater a evasão fiscal que acontece via operações offshore. Zucman demonstra que a riqueza nos paraísos fiscais tem crescido substancialmente nas últimas décadas, sem sinais de desaceleração. Suas estimativas apontam que 8% de toda a riqueza financeira no mundo está localizada em paraísos fiscais – US$ 7.6 trilhões ao final de 2013. Ademais, o autor pondera que a perda global de receitas tributárias, em função da evasão fiscal ocorrida nos paraísos fiscais, atinge US$ 200 bilhões, anualmente.

O gráfico acima, retirado do artigo “Taxing across borders: Tracking Personal Wealth and Coporate Profits”, de Zucman, demonstra que a parcela de lucros nos paraísos fiscais, pelas corporações Norte-americanas, aumentou significativamente nos anos recentes. Se, em meados de 1980, os lucros nos paraísos fiscais representavam menos do que 5% do total, esta proporção se eleva para quase 20% após 2010.
As falhas e as injustiças verificadas nos sistemas tributários são, em parte, o resultado de pressões políticas realizadas pela elite financeira, com o intuito de moldar a legislação em seu favor. Não se deve menosprezar a capacidade de influência que o poder econômico exerce sobre as democracias. Emblemática desta possibilidade de influir nas regras e convenções que determinam o jogo econômico é a recente, e controversa, proposta de reforma tributária nos E.U.A – país que já sofre com a escalada violenta da desigualdade social.
Enquanto as falhas do sistema tributário Norte-americano são exploradas pelos super ricos, os Republicanos propuseram, recentemente, o “Tax cuts and Jobs Act”, projeto de lei que visa suavizar os encargos tributários de parte da população e de empresas dos Estados Unidos. Conforme argumentam os defensores da medida, as alterações da proposta têm o poder de aliviar o fardo tributário dos Norte-americanos, especialmente para os estratos sociais inferiores e médios; ao mesmo tempo em que potencializa a criação de empregos, ao reduzir os impostos para as empresas. Um dos itens do projeto de lei, por exemplo, reduz a taxa de imposto de renda das grandes corporações de 35% para 20%. As promessas do Partido Republicano são bem conhecidas: aumentar a atividade econômica por meio da redução de impostos. O próprio Presidente Donald Trump insinuou que os cortes de impostos poderiam trazer um crescimento adicional de 1% no Produto Interno Bruto durante os próximos anos.
O “Institute on Taxation and Economic Policy”, organização independente de pesquisa sem fins lucrativos, cuja missão repousa em defender um sistema tributário mais justo e sustentável, traz um diagnóstico diferente do projeto de lei supracitado. Destarte, a análise diz que um terço dos cortes de impostos propostos pelo “Tax cuts and Jobs Act” irão beneficiar diretamente aos mais ricos da população, e, até 2027, essa proporção aumentaria para 50%. Os cortes de impostos previstos para a classe média, por sua vez, expiram com o tempo, ou se tornam menos “generosos”; mas não é o que se verifica para os abastados, cujos benefícios, na realidade, aumentariam conforme o passar dos anos. Portanto, é possível afirmar que os benefícios tributários, ao longo do tempo, tornar-se-iam crescentemente favoráveis para o 1% mais rico, quando comparados ao que foi proposto para os grupos de renda inferiores. O relatório procura demonstrar que o projeto de lei traz modificações que simulam um tratamento menos benevolente para os ricos. Contudo, em larga medida, as mudanças terminam por favorecer, desproporcionalmente, a parcela da população mais rica.
O editorial do New York Times, publicado no dia 25 de novembro, também se posiciona contra a proposta de redução de impostos criada pelo partido Republicano. O texto afirma que, de todas as mentiras dos republicanos e do Presidente Trump, a maior delas é que os cortes de impostos para os ricos promoveriam um crescimento econômico tão intenso, que a redução de impostos valeria a pena. O editorial vai além: os cortes de impostos resultarão no crescimento da dívida do Governo Norte-americano, um passivo que, futuramente, será jogado nas costas da classe média e dos pobres. A argumentação observada no editorial é também sustentada por uma pesquisa, realizada pela Universidade de Chicago, com 38 economistas – entre eles, Daron Acemoglu, David Autor, Barry Eichengreen e Emmanuel Saez – que opinaram sobre os possíveis efeitos que a redução de impostos de Trump produziria na economia Norte-americana. Dos 38 entrevistados, apenas 1 deles afirmou que as mudanças na tributação trariam um crescimento econômico substancial. Por outro lado, quando questionados se a redução de impostos aumentaria o nível de endividamento federal em relação ao Produto Interno Bruto, apenas um economista discordou, enquanto que os outros 37 afirmaram que as alterações resultariam no crescimento do endividamento.
É forçoso observar que, ao longo da história Norte-americana, diversos políticos prometeram um aumento do crescimento econômico via redução de impostos da parcela mais rica da população. A alíquota superior do imposto de renda foi reduzida de 70%, durante o governo Carter, para 28% nos anos de Reagan; após ser elevada para 39,6% na administração Clinton, George Bush diminuiu a taxa para 35%. Havia uma crença de que a redução de impostos fomentaria a criação de empregos e o aumento da poupança. Contudo, não foi o que aconteceu. Houve um aumento, sim, mas do déficit.
A redução do imposto de renda para as corporações Norte-americanas (de 35% para 20%), proposta no “Tax cuts and Jobs Act”, merece atenção especial. Uma investigação realizada pelo escritório de contabilidade do governo Norte-americano prova que a maioria das corporações empresariais dos E.U.A, entre 2006 e 2012, não teve despesa alguma com impostos federais. Entre as grandes corporações com lucros declarados, em 2012, a porção de empresas que não teve que arcar com passivos tributários federais atingiu 19.5%. Entre 2008 e 2012, as grandes empresas com lucros declarados pagaram uma taxa média de imposto federal de 14%. Ou seja, as grandes empresas dos Estados Unidos já pagam taxas de imposto federais menores do que 20%.
Convém destacar também a investigação “The 35 Percent Corporate Tax Myth”, que traz um exame detalhado sobre a tributação das grandes corporações Norte-americanas. O documento enfatiza que, legalmente, as grandes empresas rentáveis estão sujeitas a uma tributação federal de 35% sobre seus lucros. Contudo, a utilização de lacunas da legislação permite que muitas delas paguem uma fatia bem menor do que a estipulada. Ao se considerar as 258 empresas analisadas, o documento revela que a taxa média de imposto de renda paga pelas empresas atingiu 21,2%, entre 2008 e 2015. Um quinto das empresas (48) pagou uma taxa efetiva menor que 10%. Para mais, dezoito empresas, entre elas a General Eletric e a International Paper, não pagaram imposto de renda durante os oito anos investigados. A pesquisa demonstra, de maneira cristalina, que a taxa de imposto de renda de 35% para as grandes empresas é um mito, enquanto que a evasão fiscal é real.
Outra situação em que o andar de cima se beneficiou sobremaneira de uma legislação tributária leniente com os ganhos dos ricos aconteceu nos anos 2000, durante a presidência de Bush. Com o objetivo “criar empregos” no território Norte-americano, o congresso estabeleceu uma espécie de “férias de impostos” – por meio do “American Jobs Creation Act” – ao reduzir a taxação sobre a repatriação de lucros, de 35% para apenas 5,25%. Uma investigação sobre os resultados da lei sobredita mostrou que: a) os empregos diminuíram: depois de repatriar US$ 150 bilhões, as 15 empresas que mais fizeram uso da repatriação diminuíram sua força de trabalho em 20.931 mil empregos; b) ao invés de aumentar os investimentos em P&D, o que se verificou foi uma pequena diminuição das inversões em pesquisa; c) nas 15 empresas que mais fizeram uso da repatriação, houve um aumento da recompra de ações de 16% em 2004 para 2005, e de 38% de 2005 para 2006; d) por fim, a remuneração dos altos executivos aumentou 27% de 2004 para 2005, e 30% de 2005 para 2006. Em síntese: o que se conseguiu foi o aumento das perdas tributárias, beneficiando os mais ricos, sem produzir mais empregos.
Mariana Mazzucato, em seu livro “O Estado Empreendedor – Desmascarando o Mito do Setor Público Vs o Setor Privado” demonstra que as pessoas jurídicas também estão muito bem assessoradas quando se trata de assuntos relacionados ao fisco. Apple, Google e empresas farmacêuticas são exemplos de corporações que, ao longo de sua história, construíram seu império sobre tecnologias criadas e financiadas pelo Estado Norte-americano. Atualmente, porém, buscam manejar seus ativos para fugir de suas obrigações tributárias, falhando em fornecer a justa contrapartida para o Estado e para todos os contribuintes que, indiretamente, forneceram os recursos públicos para apoiar a pesquisa básica de novas tecnologias. A evasão fiscal realizada por grandes empresas é um exemplo de socialização dos riscos envolvidos no processo de inovação tecnológica, ao mesmo tempo que se promove uma apropriação injusta dos frutos gerados no processo.
A crescente desigualdade social Norte-americana, em larga medida causada pela legislação tributária que favorece ao 1% mais rico, parece atingir níveis cada vez mais extremos. Todavia, nem tudo parece estar perdido: diversos indivíduos, que pertencem ao estrato social mais rico, assinaram uma carta aberta para se posicionar contra os cortes nos impostos propostos pelos republicanos. A carta, veiculada pelo Responsible Wealth – rede de líderes, investidores e empresários interessados em combater o crescimento da desigualdade – pede que o governo repense as alterações na legislação tributária, posto que as medidas irão agravar a desigualdade. A carta vai além: as medidas que serão implementadas com o plano tributário do Partido Republicano beneficiam desproporcionalmente aos mais ricos e às grandes corporações. A chave para a criação de empregos, diz o texto, reside em investir na população Norte-americana, e não em cortes de impostos para aqueles que já vivem na abundância.
Correndo o risco de exaurir a paciência do leitor, será oportuno mencionar um último exemplo sobre como o sistema tributário pode ser tolerante com os lucros das grandes corporações, para o benefício dos acionistas. No Brasil, o Governo Federal busca apoio político para a reforma da previdência: pretendem dificultar o acesso às aposentadorias, alegando que a sustentabilidade da Previdência exige a limitação dos os benefícios. Todavia, ao mesmo tempo em que propõem cortes na Previdência Social, os parlamentares flertam com uma proposta de isenção fiscal às empresas petrolíferas que atuarem no Brasil: a Medida Provisória (MP) 795/2017, que aumenta as possibilidades de deduções no Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ) e na Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Uma investigação preliminar da Medida Provisória aponta que as perdas com a isenção fiscal poderão chegar a R$ 1 trilhão. Para mais, a renda obtida pelo Estado na produção de cada barril estaria, com as alterações da MP, entre as mais baixas do mundo, atrás de países como a Índia, Noruega, China e E.U.A. Por fim, cabe mencionar que a CSLL é uma contribuição social destinada ao financiamento da Seguridade Social – que tem como um de seus pilares a Previdência Social.
Joseph E. Stiglitz, no livro “O preço da Desigualdade”, argumenta que a política, e em especial o modo como a política molda as leis que governam as empresas, é um aspecto fundamental para compreender a distribuição da renda, dos benefícios e das injustiças presentes numa sociedade. É razoável concluir que as desigualdades dos sistemas tributários, suas falhas e suas injustiças são produtos de um quadro legal arquitetado para o benefício de poucos, às custas da grande maioria. A criação de um sistema tributário regressivo e leniente com os ganhos exorbitantes da elite financeira é uma das maneiras que os super ricos encontraram para aumentar seus lucros e inclinar o jogo econômico a seu favor.
Por derradeiro, Stiglitz afirma que a percepção de que o sistema político-econômico é injusto prejudica a confiança no sistema democrático. Por trás dessa desilusão com o sistema democrático e com os processos políticos, diz o autor, está o poder desproporcional que as elites econômicas têm de distribuir as cartas do jogo conforme seus interesses. As evidências indicam que, ao invés de um sistema democrático que opera com “uma pessoa, um voto”, predomina o “um dólar, um voto”.
Uma das funções primordiais do Estado repousa em prover uma rede de segurança, a proteção social, para os cidadãos . Trata-se de preservar a coesão social, assegurando que as pessoas e as famílias estejam protegidas contra os riscos e as oscilações que são inerentes ao sistema capitalista de produção. Contudo, a grande influência dos poderes econômicos nos processos democráticos criou um quadro legal que protege as grandes corporações, ao mesmo tempo em que diminui a rede de proteção social. As desigualdades e as falhas dos sistemas tributários refletem essa distorção.
Cumpre lembrar que a insatisfação generalizada com o mau funcionamento da economia cria um terreno fértil para a ascensão de ideias totalitárias, intolerância e violência. A história está repleta de exemplos para não se esquecer disso.
Tomás Rigoletto Pernías é doutorando em Desenvolvimento Econômico pelo Instituo de Economia da Unicamp