Excessiva burocracia promoveu exclusões na Lei Aldir Blanc
Como medida paliativa para combater a crise socioeconômica que atingiu o setor cultural, o governo federal editou a Lei Aldir Blanc, para gerar alguma proteção social aos trabalhadores da cultura, espaços culturais, agentes, produtores, técnicos e artistas. Trata-se da Lei nº 14.017, de 29 de junho de 2020, que delimitou claramente seus objetivos ao dar proteção aos segmentos dos trabalhadores da cultura durante o período que durar a calamidade pública causada pela pandemia, indicando as atividades beneficiadas, conforme três categorias, dispostas em três incisos:
I – Renda emergencial mensal aos trabalhadores e trabalhadoras da cultura (valor igual ao auxílio emergencial do governo);
II – Subsídio mensal para manutenção de espaços artísticos e culturais;
III – Prêmios voltados ao fomento e manutenção do setor.
Os montantes dotados foram de 3 bilhões de reais, sendo que o repasse dos recursos ocorreu para os estados e municípios, que decidiram a melhor forma de distribuí-los através de bolsa, renda emergencial, edital, entre outros mecanismos. Estes recursos vieram da PEC 10/2020, do “orçamento de guerra” de combate a Covid-19.
Segundo os documentos localizados, com 1.729 páginas, em que consta a rubrica integral de pagamentos da lei Aldir Blanc (que expõe a origem e finalidade dos recursos, que deveriam ser 100% assistenciais), sendo a rubrica 144, de origem no Tesouro Nacional, pois “os valores não vieram do Fundo Nacional de Cultura (apenas passaram por este), que em verdade vieram da fonte gerada pela ‘Lei nº 13.982 de 2020, foi editada a Medida Provisória nº 937, de 2020, que abriu crédito extraordinário no valor de R$ 98,2 bilhões’, recursos do tesouro nacional para fins emergências, assistenciais!” (Fonte: Fórum de Cultura do Paraná, E-Protocolo do governo do Paraná: Processo 17.519.479-7)
A Lei Aldir Blanc, apesar de ter fundos com origem no chamado “orçamento de guerra” não especificava critérios claros de pagamento dos benefícios, o que poderia causar distorções como, por exemplo, privilegiar o fomento de espetáculos e produtos culturais em plena pandemia, em vez de renda emergencial para trabalhadores. E com o agravante de solicitar uma documentação muitas vezes incompatível com fazedores de cultura que passavam por necessidades (como exigir CNPJ ou MEI, certidões negativas para comprovar que a pessoa não tinha dívidas na praça, currículo e julgamento de mérito). Esse tipo de burocracia excessiva foi exigida também em muitos estados.
Regulamentação da lei
Ainda na fase da regulamentação, em meados de 2020, foi previsto por técnicos que a lei poderia gerar distorções e reforçar desigualdades. No âmbito federal, foram enviados relatórios por uma entidade de classe dos músicos para a secretaria Nacional de Cultura com sugestão de uma regulamentação mais distributiva da lei.
No âmbito estadual, membros da CONSEC (Conselho estadual de Cultura do Paraná) sugeriram medidas mais assistenciais, como por exemplo uma bolsa cultura, recusada pela Superintendência Estadual de Cultura do Paraná (órgão público do Governo do Estado do Paraná). Na época da elaboração dos editais, pelo excesso de regras excludentes, que favoreceriam um pequeno grupo, um dos conselheiros chamou a proposta do Estado em reunião formal de “Bolão da Lei Aldir Blanc”, ironizando uma política ao qual acessar os benefícios funcionaria como um tipo de loteria.
Representantes do Observatório da Cultura do Brasil, da CONSEC e da OMB, em audiência pública na Assembleia Legislativa do Paraná (ocorrida em julho de 2020) alertaram de possíveis erros de gestão de recursos, e sugeriram à superintendente de Cultura do Paraná medidas mais assistenciais, alertando dos riscos do que denominaram como uma “catástrofe social entre os trabalhadores da Cultura”.
Especialistas informaram que já se previa a possibilidade de ocorrer distorções. Segundo levantamento do Observatório da Cultura do Brasil, com apoio de membros do CONSEC, muitos estados tiveram problemas, mas foi o Paraná que obteve o terceiro pior resultado, ao receber R$ 71.915.815 mas só executou 15,09% do recurso. Ser o terceiro pior resultado, no entanto, não revela a gravidade da situação por ser complexa, demanda de olhares mais atentos. Pois, não apenas os números da aplicação de recursos podem explicar o caso. Os recursos que não foram utilizados corriam o risco de voltar para a União, porém a Lei Aldir Blanc foi prorrogada (Lei nº 14.150/2021), recomeçando em agosto de 2021, com previsão de prestação de contas até dezembro do mesmo ano. Mas até o momento, a Superintendência de Cultura do Paraná, a Fundação Cultural de Curitiba (FCC, órgão público de cultura da prefeitura da capital paranaense), bem como muitos órgãos pelo Brasil estão apontando na mesma direção, correndo o risco de cometerem os mesmos erros.
Excessiva burocracia
A origem dos recursos, seria assistencial, segundo o relatório do Fórum de Cultura do Paraná, com dados do Observatório da Cultura do Brasil, enviado para a Controladoria Geral do Estado Paraná, pelo sistema e-protocolo (Processo: 17.519.479-7):
(…) leis citadas neste estudo, comprovam que os valores não vieram do Fundo Nacional de Cultura (apenas passaram por este), que em verdade vieram da fonte gerada pela “Lei nº 13.982 de 2020, foi editada a Medida Provisória nº 937, de 2020, que abriu crédito extraordinário no valor de R$ 98,2 bilhões”, recursos do tesouro nacional para fins emergências, assistenciais! Como podem ser tratadas verbas emergenciais, criadas para quem tem pressa, incluindo regras e montantes, que obrigam os gestores na aplicação da lei de licitações 8.666, contra populações indefesas de artistas carentes, indígenas, afro-brasileiros, artesãos, músicos de bar, circenses, ribeirinhos, caiçaras, e muitos outros, que viviam da cultura, turismo e entretenimento, mas que para concorrer às verbas precisavam apresentar excessiva burocracia, além do currículo padrão mundo da arte (usado por formados em belas artes), mérito (crítica, reconhecimento de imprensa, justificativas teórica e fundamentações), certidões negativas, CNPJ, MEI, EI, ERELI, planejamento e prestações de contas, típicas de concorrências públicas.
O argumento do Fórum de Cultura do Paraná teve negativas dos órgãos públicos, que apesar dos números, documentos e fatos, alegam que tudo ocorreu dentro da normalidade, e que não foram excluídos segmentos culturais, pois segundo apontam ofícios em resposta à sociedade civil, os órgãos de cultura teriam seguido a legislação da Lei Aldir Blanc. No entanto, os depoimentos das comunidades tradicionais (nesse mesmo especial), reforçam a tese da exclusão social de setores culturais e de trabalhadores da cultura.
No relatório do Fórum de Cultura do Paraná ao poder público, a resposta segue em outro caminho:
Falta razoabilidade em tudo que foi feito pelas pastas da cultura do Paraná. Esses recursos não foram alocados para o fomento da arte, nos moldes das políticas de cultura através dos famosos editais de exclusão (ao estilo Lei Rouanet, editais da Funarte, ou semelhantes pelos estados e municípios brasileiros), que ao invés de incluir os cidadãos nos recursos, selecionam por meio de currículo, mérito, formação superior, fama, reconhecimento de crítica, aqueles que vão gozar de vantagens públicas na valorização da história e belas artes nacionais, conceito ultrapassado dos Estados Nacionais do Século XIX. (…) Ao contrário, esses recursos da Lei Aldir Blanc foram criados para serem inclusivos, atendendo a todas as gamas de atividades reconhecidas como culturais, os chamados trabalhadores da cultura, o que pode ser entendido através dos artigos 215, 216 e 216-A da Constituição, e das leis do Plano Nacional de Cultura (Lei n° 12.343, de 2 de dezembro de 2010), o que compreende enorme gama de atividades, somadas ainda as leis que têm profissões regulamentadas, como caso da 6533/1978 (que dispõe sobre a regulamentação das profissões de Artistas e de técnico em Espetáculos de Diversões) e da 3857/1960 (que trata das atividades dos músicos profissionais).
Os argumentos obtidos dos membros da sociedade civil vão no mesmo sentido, afirmando que diversas atividades não se enquadravam nos editais, e que, por este motivo, ficaram sem acesso aos recursos. A própria coautora da Lei, a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ), ao tomar conhecimento do que ocorreu no Paraná, durante uma Live transmitida em 01/03/2021, afirmou: “Agora, exigência de currículo numa lei emergencial, dentro de uma pandemia, aí é um absurdo. Cada momento é um momento. No momento das pessoas terem que sobreviver, um monte de gente passando fome, sem trabalho, você fazer exigência de currículo, aí sinceramente é um absurdo! Acho que não cabe. Tem momentos que um edital, a depender do tipo de produto ou de processos e produção que você quer, cabem determinadas exigências. Mas num momento como esses, realmente eu acho um absurdo você ficar exigindo currículo vitae e uma série de parâmetros para se fazer um edital, de fazer um auxílio num momento como esse. Aí realmente não cabe”.
Segundo relatório do Observatório da Cultura do Brasil, que coopera com artigos deste especial, os resultados do uso dos recursos da lei Aldir Blanc no Paraná foram “pífios”: “Ao menos no Estado do Paraná, o que se testemunhou foram agentes culturais privilegiados em acordos registrados com o poder público, juntos, promovendo e definindo editais com regras de exclusão e burocracia excessiva, impedindo que as pessoas que mais necessitavam acessassem os recursos através de mecanismos simplificados, que permitissem que as verbas fossem aplicadas conforme sua origem e intenção. Devido à excessiva burocracia, a classe se sentiu previamente excluída, e apesar de levantamentos apontarem para a existência de dezenas de milhares de trabalhadores da cultura em atividade no Paraná, provavelmente precisando do auxílio, os poucos beneficiados pela Lei Aldir Blanc foram apenas 2.148. Sendo respectivamente incisos I (668) e III (1.480), e no inciso II, menos de uma centena.”
O mesmo relatório traz informações de que existiram outras formas mais eficazes de distribuir os recursos, como a criação de bolsa por doação civil (mesmo mecanismo legal utilizado em bolsas de estudos para estudantes universitários e em bolsas de apoio a atletas), que resultou no PL 168/2021 parado na ALEP: “A proposta de Doação Civil por meio de bolsas, sugerida por um conselheiro (…), apresentou a hipótese de que mais de 10 mil técnicos e artistas poderiam ter recebido os recursos no Paraná. A estimativa é de que menos de 20% dos técnicos e artistas receberam algum auxílio (comparado aos dados de entidades de classe e fisco), isso fora todos os demais, esquecidos que não aparecem nos números“.
Os números da má aplicação dos recursos no Paraná são semelhantes, de forma insatisfatória, aos de muitos estados, ainda segundo o mesmo relatório do Fórum de Cultura do Paraná:
Segundo dados fornecidos por membros do CONSEC – Conselho Estadual de Cultura do Paraná. Do total de R$ 71.915.814,94 liberado pelo Governo Federal ao Paraná, os valores que sobraram dos 3 incisos da Lei Aldir Blanc foram:
I e II – Sobrou R$ 26.678.325,98 (92,75%)
III – Sobrou R$ 28.917.647,00 (67,01%)
Total Restante: R$ 55.595.972,90.
Portanto, 77% dos recursos disponíveis na Lei Aldir Blanc não foram aplicados no Paraná. Mas os números podem ser ainda piores, pois segundo relatório do Ministério do Turismo, datado de 16 de março de 2021, disponível na página do Sistema Nacional de Cultura, aponta que o Paraná recebeu:
Pagamento original: R$ 71.915.815
Reversão: R$ 13.047.158
Repasse total: R$ 84.962.972
Saldo conta: R$ 72.140.061
% em conta: 84,91%
% executado: 15,09%
Fonte: Ministério do Turismo.
Segundo o Observatório da Cultura do Brasil, “esses resultados revelam a falta de eficácia da administração pública em promover os repasses, deixando sobrar 84,91% dos recursos em caixa. (Fonte: Relação do saldo dos Estados e do Distrito Federal nas contas da Lei Aldir Blanc, 16/03/2021, Ministério do Turismo), pois não deveriam sobrar em caixa, ao se tratarem de verbas emergenciais. Alguns detalhes deste relatório chamam atenção, pois o Governo do Paraná através de sua Superintendência da Cultura obteve os piores resultados na execução da Lei Aldir Blanc no Brasil, ficando a frente apenas dos Estados de Goiás e Mato Grosso do Sul”.
Só para comparativo, segundo dados do Observatório da Cultura do Brasil, com base em dados da Secretaria Especial de Cultura do Ministério do Turismo, estados como de Alagoas, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Roraima executaram próximo de 99% das verbas, enquanto o Paraná teria pago apenas 15,09% dos recursos. A média nacional foi de 70% de pagamentos de recursos da Lei Aldir Blanc.
Ainda segundo dados do Observatório da Cultura do Brasil, obtidos de forma sigilosa por membros da CONSEC – Conselho Estadual de Cultura do Paraná:
A catástrofe nos repasses da Lei Aldir Blanc no Paraná, foram ampliadas devido à baixa adesão de municípios na assinatura da plataforma Mais Brasil para receber os recursos, revelando desarticulação do governo estadual com municípios:
247 municípios = 61,9% aderiram a LAB;
129 municípios = 32,33% não se cadastraram;
16 municípios = 9,01% estavam em cadastro;
6 municípios = 1,5% em analise;
1 município rejeitado.”
Os dados aqui apresentados confirmam que ocorreram resultados regulares no Estado do Paraná, porém outros dados obtidos apontam para mais da metade dos municípios não tendo efetivado os pagamentos, ou devolvido os recursos. A superintendência da Cultura do Paraná, por meio de ofícios, foi solicitada por meio do Fórum de Cultura do Paraná sobre a validade das informações, o que não foi respondido, mesmo após mais de seis meses das solicitações, e até a data de finalização desta reportagem, não foram publicados relatório oficiais da aplicação dos recursos da lei Aldir Blanc no Estado.
Para o pesquisador Manoel J de Souza Neto, um dos membros do Observatório da Cultura do Brasil, ocorreram diversos indícios de “descumprimento de princípios básicos da administração pública, previstos no artigo 37 da constituição, como razoabilidade, isenção, eficácia, moralidade”, o que segundo o Fórum de Cultura do Paraná, seria “gestão temerária de recursos com origem no combate à pandemia”.
Ainda carece de apuração a questão que diz respeito à concentração de premiados na capital com recursos estaduais. Dados levantados por conselheiros que integram a CONSEC, apontam que esses números podem chegar a até 80% de premiados concentrados na capital Curitiba em alguns editais, ao passo que 38,01% dos 399 municípios do estado não receberam nenhum recurso. Seriam números preliminares, conforme as fontes, pois o poder público se recusa em fornecer dados ou simplesmente responder ofícios, segundo informações obtidas por jornalistas, membros do Observatório da Cultura do Brasil e do Fórum de Cultura do Paraná, que solicitaram informações aos órgãos públicos. A conclusão a que se chega é de que não existem relatórios oficiais e dados acessíveis, mesmo após 8 meses de solicitações dos documentos por meio da Lei de Acesso à Informação. Os dados foram obtidos (ainda incompletos), com muitas dificuldades, o que reforça a crítica da sociedade civil organizada, relacionada à falta de transparência do uso dos recursos públicos.