Êxodo climático: a ficção se tornou realidade
É preciso avaliar o que significa, de forma traumática, perder teto, bens, parentes e amigos em tragédias como a que se abateu sobre o Rio Grande do Sul
Vá, pensamento, sobre asas douradas
Vá, pouse sobre as encostas e as colinas
Onde perfumam tépidos e suaves
Os ares doces do solo natal!
Giuseppe Verdi, “Vá Pensero”, in Nabuco
As mudanças climáticas permeiam a literatura saindo do plano da ficção para o cotidiano, segundo avalia o autor indiano Amitav Ghosh, que tem refletido sobre a cli-fi (ficção climática).
Estamos entrando na mais dura das realidades, onde um contingente cada vez maior de pessoas tem sido compelido a imigrar de sua terra natal. O mundo contabiliza mais de 114 milhões de refugiados, premidos entre guerras, fome, perseguição religiosa, étnica e eventos extremos cada vez mais frequentes.
A guerra e a pobreza geram, historicamente, situações incontroláveis. Hoje existem no mundo mais de uma centena de conflitos armados localizados, somados a outras crises humanitárias causadas por questões étnicas, religiosas e por constantes perdas de meios de subsistência, provocadas por crescente desertificação, como ocorre no Sahel.
Os eventos extremos estão contribuindo cada vez mais para deslocamentos forçados. O Brasil sente na pele essa nova realidade. A Defesa Civil do Rio Grande do Sul contabilizou, até o dia 18 de maio, cerca de 2.304.432 pessoas atingidas, 540.188 desalojadas, com 77.202 em abrigos, 155 mortos, 94 desaparecidos e 806 feridos, mas os números crescem todos os dias.
Para muitos dos atingidos isso não foi novidade. Segundo o escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur), 43 mil refugiados já viviam no Rio Grande do Sul, incluindo 29 mil venezuelanos que fugiam da pobreza e 12 mil haitianos, alguns em fuga do devastador terremoto de 2010. O Rio Grande do Sul está entre os três estados brasileiros a receber refugiados em um programa federal. Foi ali que cerca de 14 mil refugiados encontraram emprego formal.
Se a ficção literária do clima acabou imersa em nossa realidade, a expressão artística tem retratado com frequência movimentos/deslocamentos humanos forçados.
A exposição chamada Destino/Destino, de Carlo Vidoni em Friuli, Itália, enfoca o destino dos refugiados. Uma das obras é “Sou de onde vou”, que retrata a transformação da saudável curiosidade humana por novos espaços mesclada à imigração forçada. A humanidade comum, caracterizada por uma tensão entre o apego aos lugares onde crescemos e seu abandono compulsório, transformando em necessidade a normalidade saudável de curiosidade sobre o mundo que existe para além dos muros do lar.
Outra exposição, “O Jardim do (in)visível” na Eslovênia, retrata a expectativa de asilo dos imigrantes ilegais na Europa; e a impressionante arte de “Petrificados”, na Cruz Vermelha Internacional de Genebra, captura o espírito da crise humanitária com figuras encapuçadas que representam a violação de direitos humanos que ocorre durante as guerras, provocando migrações forçadas.
A tendência de deslocamentos humanos aumenta agora também impulsionada pelas mudanças climáticas. De 2008 a 2019, o clima provocou, em média, um êxodo de cerca de 21,5 milhões de pessoas por ano. Desde então o cenário continua a piorar de forma substancial, atestando os piores prognósticos já apontados pelo Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas (IPCC).
Em 2022, mais de 70% dos refugiados fugiram de países altamente vulneráveis ao clima. “Cerca de 60% dos deslocados forçados e apátridas vivem em países frágeis e/ou afetados por conflitos, que estão entre os mais vulneráveis às mudanças climáticas e os menos prontos para se adaptar”, afirma a Acnur.
Do Afeganistão à América Central somam-se secas, inundações e outros eventos climáticos extremos. “Atingem os menos preparados para se recuperar e se adaptar”, atesta a Acnur, que pede que os países trabalhem juntos para combater as mudanças climáticas e mitigar seu impacto em centenas de milhões de pessoas.
O Pacto Global sobre Migração Segura, adotado pela ONU a partir de 2018, afirma que “os governos devem trabalhar para proteger os refugiados climáticos nos países de chegada, concebendo opções de recolocação e de visto previstas, se a adaptação e o regresso não forem possíveis nos seus países de origem”.
O pacto soa como bom conselho para países membros da ONU, mas sem força de lei. Esse é o ponto sobre o qual o Brasil deve se debruçar. Importantíssima a inclusão dos refugiados ambientais, ou refugiados climáticos, no contexto de proteção jurídica dos direitos humanos.
A migração transfronteiriça por motivos climáticos precisa contar com o “princípio da não repulsão”, ou seja, os refugiados ambientais que atravessaram fronteiras não podem ser deportados à força, contra sua vontade. A Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, também da ONU, é de 1951 e protege pessoas perseguidas por motivos raciais, de religião e outros, mas não contempla refugiados ambientais. Apesar de avanços institucionais e pactos mais recentes, a assistência e o abrigo a refugiados ambientais, para ser efetivo, terão que ser devidamente contemplados no direito internacional.
Um dos pontos essencias é avançar na obtenção de recursos financeiros para a adaptação climática e assistência às populações, com a necessária adoção do Fundo de Perdas e Danos, que continua sem lastro financeiro apesar da longa trajetória de discussões nas últimas cúpulas climáticas globais.
“Essa assistência faz ainda mais sentido, e é mais urgente, ao considerarmos que os mais fragilizados e vulneráveis são crianças, mulheres e idosos, além de populações tradicionais e pessoas que vivem em extrema pobreza, os que mais sofrem as consequências e que têm menos resiliência aos impactos climáticos”, afirmou a advogada Fernanda Cavedon durante discussões preparatórias para a COP27, promovidas pelo Proam. “A situação é ainda profundamente injusta, pois são os mais pobres que muito pouco contribuem para o desequilíbrio do sistema climático global”, completa.
Em abril deste ano a Acnur criou o Fundo de Resiliência Climática com o objetivo de financiar a ação direta contra o clima e alcançar refugiados, apátridas e deslocados, bem como suas comunidades de acolhimento. O Fundo busca contribuições internacionais para “expandir o alcance e o impacto das intervenções relacionadas ao clima, viabilizando projetos que construam resiliência, mitiguem riscos e promovam soluções sustentáveis em ambientes de deslocamento vulneráveis ao clima”.
É preocupante o crescente sentimento anti-imigrantes das tendências de extrema direita na Europa e de outras partes do mundo. Isso traz urgência em realçar o imprescindível multilateralismo colaborativo das nações para enfrentar crises humanitárias. É inadmissível que a solidariedade possa ser fragilizada por nacionalismos xenófobos que, mergulhados no individualismo, não se dão conta dos processos que vitimam grande contingente de populações que lutam por sobrevivência.
O cenário futuro é ainda mais preocupante. O acirramento das mudanças climáticas é atestado por uma atmosfera global que já atinge concentração de 428 ppm. de carbono, 20% acima do nível considerado seguro.
Há ainda questões relacionadas à empatia. A sociedade humana precisa compreender a realidade das perdas socioeconômicas e interpessoais que assolam os refugiados, assim como as pressões pré e pós imigração a que são submetidos. É preciso avaliar o que significa, de forma traumática, perder teto, bens, parentes e amigos em tragédias como a que se abateu sobre o Rio Grande do Sul. A relocação, mesmo que assistida, leva à necessidade de considerar saúde física e mental, reconstrução do tecido social e relações identitárias, pessoais e comunitárias.
Só em 2021 foram 23,7 milhões de pessoas deslocadas no interior do seu próprio país em consequência de desastres. O Banco Mundial realizou um estudo em que projeta, até 2050, a incidência de migração interna, dentro de seus próprios países, de 216 milhões de pessoas, sendo que a África Subsaariana poderá receber até 86 milhões de migrantes climáticos internos; Leste Asiático e Pacífico, 49 milhões; Sul da Ásia, 40 milhões; Norte de África, 19 milhões; América Latina, 17 milhões; e Europa Oriental e Ásia Central, 5 milhões.
Algumas comunidades não têm condições ou meios de migrar e ficam presas dentro do contexto de risco, o que exige avanços em estratégias de adaptação climática. Com a amplificação dos impactos climáticos, a vulnerabilidade aumenta e as áreas de risco também. Nesse contexto ampliado, as comunidades expostas precisam ter capacidade de compreender sua vulnerabilidade e os riscos envolvidos. É preciso ainda empoderar essas populações vulneráveis, possibilitando que tenham voz para opinar sobre seu destino.
Assim, é necessário debater e capacitar as populações que ocupam áreas de risco sobre cenários possíveis, refletindo sobre sua relocação, de forma que os mais vulneráveis possam debater e opinar, de forma prévia, sobre seu próprio destino.
Um terço do mundo não conta com sistemas de alerta precoce, cuja criação é defendida de forma urgente pelas Nações Unidas. Segundo a ONU, será preciso, até 2027, prover o mundo com sistemas tecnológicos de previsão de eventos extremos, com capacidade de comunicação para promover alertas preventivos, de forma didática, adotando planos de contingência com meios operacionais efetivos e capacitando as comunidades para respostas eficientes.
Finalmente, é preciso que a sensibilização dos brasileiros em relação às inundações que atingiram tão duramente o Rio Grande do Sul leve o país a compreender a dimensão e o escopo do enfrentamento climático, conferindo à política de adaptação climática seu devido status de relevância e urgência.
Será necessário instituir processo eficaz de governança climática, permeando todos os setores, corrigindo erros históricos e desestimulando as atuais tendências de ocupação desregrada dos territórios, e, de forma estrutural, descarbonizar a economia nacional para longe da dependência insustentável dos combustíveis fósseis.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).