Experimentos de esquerda em Portugal
Minado pela corrupção e desfigurado pela purgação imposta pela União Europeia, Portugal recompõe-se lentamente… driblando as exigências de Bruxelas
À beira do Tejo, a um pulo da turística Praça do Comércio, em Lisboa, uma caixa de som ruim lança no ar Os vampiros, do cantor e compositor Zeca Afonso. O artista engajado, morto em 1987, é um monumento nacional: foi uma de suas músicas, tocada por uma estação de rádio católica no dia 25 de julho de 1974, que deu o sinal para a Revolução dos Cravos. Os vampiros, escrita em 1962, marcou o ritmo de todas as grandes manifestações antiausteridade realizadas entre 2011 e 2014. Nesta tarde de julho de 2017, apenas algumas dúzias de vozes repetem o refrão: “Eles comem tudo / Eles comem tudo / Eles comem tudo e não deixam nada”. As pessoas reunidas em frente ao Ministério das Finanças, muitas sentadas em cadeiras de plástico, exigem o fim do trabalho precário. Entre elas há profissionais de saúde, funcionários da educação nacional, pesquisadores, afiliados da associação Precários Inflexíveis e da Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional (CGTP-IN). O próprio governo estima em 100 mil o número de trabalhadores precários empregados pelo Estado. Se neste dia só há um punhado deles ali, é porque o clima em Portugal não está para mobilização social.
“Hoje todo o país está respirando melhor. Estamos otimistas, saímos da depressão mental”, sorri com sua barba curta José Maria Costa, prefeito socialista de Viana do Castelo, cidade de 80 mil habitantes no norte do país conhecida por seus estaleiros e praias boas para o surfe. “Podemos respirar, conseguimos sentir a recuperação, depois de quatro anos levando uma pancada atrás da outra”, reafirma Fernando Gomes, de 54 anos, motorista de ônibus em Lisboa e sindicalista. Há seis anos, em março de 2011, o país passava por mau aluno da zona do euro, assim como a Espanha e a Grécia. Sufocado por um déficit público que representava 7,4% do PIB e por taxas de juros superiores a 7%, e com seu rating rebaixado pelas agências de classificação de risco, o país apelou, alguns meses após a Irlanda, a uma enorme ajuda externa: 78 bilhões de euros. Portugal teve então de se dobrar à humilhação dos tecnocratas da Troika, o trio composto por FMI, Comissão Europeia e Banco Central Europeu (BCE). As medidas impostas por eles chegaram a ser agravadas pelo governo de direita, uma coalizão entre o Partido Social Democrata (PSD) e o Partido Popular (CDS-PP ou CDS) formada nas eleições legislativas de junho de 2011.
Déficit em queda
Seis anos depois e dois após a mudança política causada pelo retorno dos socialistas ao poder, os indicadores econômicos despertam a surpresa, um pouco invejosa, da maioria dos países europeus. Após vários anos de recessão, o crescimento é de 2,8% ao ano. A taxa de desemprego, que chegou a 16,2% em 2013 (860 mil pessoas), caiu para 9,1% (441 mil) em julho, abaixo da média da zona do euro (9,3% na mesma data). Quanto ao déficit público, em 2016 ele ficou em invejáveis 2% do PIB, contra 4,4% em 2015. Bem abaixo dos 3% exigidos pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento da União Europeia, e mais abaixo ainda dos 3,4% franceses. E o melhor de tudo: o governo português prevê um orçamento equilibrado em 2020.
Para isso, conta com três setores que impulsionam o crescimento: as exportações de insumos industriais e equipamentos automotivos, os setores tradicionais (como o têxtil) e o turismo. Este último tem batido recorde após recorde. Portugal recebeu 11,4 milhões de visitantes em 2016, e um quarto dos empregos criados no mesmo ano estavam no setor turístico. Em Lisboa, seja nos terraços de cafés e restaurantes, seja nos trens do metrô, ouve-se nos fins de semana mais francês, inglês e alemão do que português. Todas as ruas da capital apresentam montes de cimento e andaimes: a reforma de imóveis antigos segue a todo vapor. Os lisboetas praguejam contra as locações sazonais que ocupam edifícios inteiros e contra os tuk-tuks (triciclos com cabine que funcionam como táxis) que enchem as ruas e praças da Lisboa Velha. Consagração do bom resultado em termos de ortodoxia orçamentária: em maio, Bruxelas anunciou a saída do país do procedimento de déficit excessivo aberto em 2009. “É uma boa notícia para Portugal”, comentou Pierre Moscovici, comissário europeu para Assuntos Econômicos, acrescentando, em julho, que a redução do déficit era “sustentável”.
No entanto, as fadas europeias que se debruçaram em seu berço nem sempre foram tão benevolentes. No outono de 2015, Lisboa fez Bruxelas e Berlim suarem frio, com a formação de uma nova aliança entre o Partido Socialista, o Bloco de Esquerda, o Partido Comunista Português (PCP) e os Verdes (ver artigo virando a página). O roteiro de António Costa, o novo primeiro-ministro socialista, ex-prefeito de Lisboa, era pelo menos original para a Europa de então: respeitar os compromissos assumidos com a Comissão Europeia, sobretudo no que concerne ao déficit público, mas restaurar o poder de compra dos portugueses, arrasado por quatro anos de austeridade.
Flexibilidade também fragiliza empresas
“Alguns parceiros da União Europeia tiveram dúvidas”, conta pudicamente Pedro Nuno Santos, secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares. “Foi muito difícil negociar o primeiro orçamento, sobretudo porque foi preciso fechá-lo muito rapidamente após a chegada de António Costa ao poder”, recorda o economista José Gusmão, membro do gabinete político do Bloco de Esquerda e assistente da deputada europeia Marisa Matias. “A posição das instituições da União Europeia em relação ao novo governo foi muito negativa. Mais dura do que em outros países, como a França ou a Espanha, que, no entanto, apresentavam déficits bem acima de 3%.” As advertências, pressões, declarações alarmistas e desdenhosas foram além do primeiro orçamento apresentado pelo novo governo português. Em junho de 2016, Wolfgang Schäuble, ministro da Economia da Alemanha, previu que Portugal precisaria de um novo plano de resgate, “se não respeitar seus compromissos”. Um mês depois, Valdis Dombroskis, vice-presidente da Comissão Europeia encarregado do euro, ameaçou Portugal – e a Espanha – de congelar os fundos estruturais por causa do déficit excessivo… em 2015, ou seja, no ano anterior à chegada dos socialistas ao poder. A ameaça não foi executada em razão de divergências internas à Comissão.
António Costa é frequentemente qualificado como “hábil”. Isso porque, até agora, soube navegar entre o respeito aos compromissos com Bruxelas e a vontade de seus aliados de virar a página da austeridade. “O que foi decidido é que essa maioria tentará aumentar a renda dos portugueses, especialmente os mais pobres, observando o máximo possível as regras da União Europeia”, explica Gusmão.
Sob a Troika e o governo de direita do PSD-CDS, a renda da população sofreu uma redução ininterrupta. Pela primeira vez em sua história, o salário mínimo teve queda em seu valor real: congelado em 485 euros mensais brutos (para catorze salários em um ano) entre 2011 e 2014, ele foi, a partir de 2013, amputado pelo aumento das contribuições sociais. As pensões dos aposentados e os salários dos funcionários públicos diminuíram, primeiro para os mais bem remunerados, depois para todos, com a supressão do 13º e do 14º salários. O montante líquido das remunerações também caiu por causa do aumento das contribuições para a previdência e a seguridade social. Podemos ainda mencionar o corte pela metade da majoração das horas extras, a supressão dos bônus e a redução do valor e do tempo cobertos pelo seguro-desemprego. A mudança de oito para cinco parcelas no sistema de imposto de renda elevou automaticamente o valor pago pelos menos tributáveis. Redução de salários e pensões, corte de orçamentos para serviços estatais, incluindo saúde e educação, cessão de empresas públicas, feriados: o facão foi brutal.
Na sede da Associação Sindical do Pessoal de Tráfego da Carris (ASPTC), sindicato dos trabalhadores de ônibus e bondes de Lisboa, a primeira metade da década deixou péssimas lembranças. Fernando Gomes, de 54 anos, Victor Santos, de 45, e João Pisco, de 41 (respectivamente 29, 11 e 18 anos de empresa), ainda não absorveram o choque. “Sob o governo de Sócrates [José Sócrates, primeiro-ministro de 12 de março de 2005 a 21 de junho de 2011 e secretário-geral do Partido Socialista Português], as horas extras eram majoradas em apenas 25%, em vez de 50%. Com a Troika, passamos de um salário médio de 1.100 euros para 900 euros”, explica João Pisco. “O Estado não injetou dinheiro na Carris, que se endividou com os bancos. Quando a Troika chegou, a administração cortou, cortou, cortou: os salários, o número de ônibus, os custos operacionais. Ela também congelou as carreiras e aumentou o preço da passagem. Os motoristas emigraram, porque não conseguiam mais pagar seus empréstimos. O serviço se degradou, com menos ônibus em cada linha. Os ônibus não foram mais reparados.” Santos acrescenta: “Os usuários ficaram agressivos, porque o tempo de espera aumentou muito e porque eles também estavam sob pressão. Para os motoristas, tudo isso causou problemas financeiros, tensões familiares, sofrimento psicológico. O único ponto positivo desse período foi que conseguíamos dirigir muito melhor: o número de carros em circulação diminuiu”.
Todos aplaudiram a chegada de Costa. A Carris, que o governo de direita queria ceder para a iniciativa privada, foi municipalizada. Os funcionários recuperaram integralmente o 13º e o 14º salários, bem como a majoração de 50% nas horas extras. Em janeiro de 2018, o congelamento do tempo de carreira será totalmente suspenso. “Nossa situação e a dos usuários melhoraram lentamente. A empresa começou a contratar – setenta pessoas no ano passado, cem neste”, afirma Santos. “O número de passageiros aumentou, porque o emprego se recuperou e quem trabalha precisa se deslocar. Os descontos para jovens e idosos foram restaurados. Mas continuamos com déficit de ônibus. E eu ganho 200 euros por mês a menos do que em 2011.”
Nem todas as medidas de austeridade foram retiradas em dois anos, e a recuperação do poder de compra é lenta. O governo de Costa segue uma política de pequenos passos, embora mais rápidos do que se previa, estimulada por seus aliados do PCP e do Bloco de Esquerda. Os socialistas comprometeram-se a elevar o salário mínimo para 600 euros mensais brutos. Na metade do mandato, ele está em 557 euros mensais brutos (para catorze meses). As pensões e os salários do serviço público começaram a recuperar os níveis da pré-austeridade. O governo também conseguiu reverter o aumento de alguns impostos, incluindo o Imposto sobre Valor Agregado (IVA) de certos bens e serviços, que tinha passado de 6% para 23% no caso da eletricidade e do gás, diversos produtos alimentares e do setor de restaurantes. A energia voltou à sua taxa anterior, e a conta do restaurante inclui um IVA de 13%. “Com esses pequenos aumentos do salário mínimo e das pensões, vemos uma recuperação do consumo”, alegra-se João Viera Lopes, presidente da Confederação do Comércio e Serviços de Portugal (CCP). “Quem ganha 20 ou 30 euros a mais por mês os gasta com alimentação, restaurantes, vestuário.” A CCP foi a única organização patronal que não criticou já de saída o governo de Costa. E por uma boa razão: em Portugal, 97% das empresas do setor são muito pequenas. Elas foram atingidas com toda a força pelas medidas de austeridade: no auge das restrições, cem pontos de venda fechavam por dia. “Os tecnocratas da Troika eram muito dogmáticos”, diz Lopes. “Eles não entenderam que suas medidas levariam a uma recessão muito forte. Nossas reuniões com eles foram péssimas, falávamos com as paredes.”
Emigração, uma válvula de escape
A política da Troika, agravada pela do governo PSD-CDS, resultou em uma emigração maciça comparável à da década de 1960, principalmente dos jovens mais qualificados: “Quinhentas mil pessoas deixaram o país, o equivalente a mais de 10% da população ativa, e grande parte desses migrantes eram jovens diplomados”, enfatiza Raquel Varela, professora da Universidade Nova de Lisboa, especialista em História do Trabalho. E o governo incentivou esse fluxo: “A emigração é uma verdadeira válvula de escape em um contexto social tenso”, afirma a professora. Mas hoje o consenso é preocupar-se com tal movimento: “É um perigo para o país, especialmente porque a demografia não é robusta”, destaca João Duque, professor de Economia. “Temos dificuldade em recrutar trabalhadores qualificados”, lamenta Artur Soutinho, presidente da More Textile, florescente empresa de roupa de cama de Guimarães, cujos clientes são marcas norte-americanas e europeias. Esses dois fervorosos defensores da austeridade não veem nenhum paradoxo entre seu apoio às medidas de redução de salários e à lei de 2012, a qual flexibilizou o trabalho, e sua atual preocupação. Soutinho teme que o governo reveja o “banco de horas”, um pacote de duzentas horas extras anuais por trabalhador pagas pelo valor normal e utilizáveis a critério do empregador. Sua preocupação não parece fundamentada: por enquanto, nem o Bloco de Esquerda, nem o PCP, nem a CGTP-IN, que exigiam sua abolição, foram ouvidos.
Os aliados do Partido Socialista, inclusive a CGTP-IN, estão começando a ficar impacientes. “A taxa de desemprego em nossa região é menor que o nível nacional, mas isso se baseia em contratações por tempo determinado, por meio de agências de emprego temporário”, lança Domingo Costa, representante comunista de Vila Nova de Famalicão. “A crise justifica tudo: demitir, baixar salários. Mas, quando vem a recuperação, não se volta à situação anterior.” Não houve progressos na candente questão das convenções coletivas, cuja duração foi reduzida e que, sobretudo, caducam em caso de falha nas negociações de renovação. Também não houve progresso no que diz respeito à precarização do trabalho. “Nessa área, conseguimos muito pouco, com exceção do aumento do salário mínimo e da integração programada dos trabalhadores precários do Estado. Na verdade, o governo pensa que a flexibilização do trabalho tem sido uma política muito boa e não quer questioná-la. É um ponto de tensão muito forte”, lamenta o economista do Bloco de Esquerda José Gusmão.
Hoje, o primeiro-ministro enfrenta a reivindicação de uma redistribuição mais rápida e ampla. No momento, ela ainda é feita em voz baixa, mas pode ganhar amplitude. “Queremos uma política de investimento público centrada nos setores nos quais existem déficits externos: energia, habitação, produtos alimentícios”, explica Gusmão. “Isso porque, com a recuperação do consumo, as importações tendem a aumentar, o que agrava ainda mais nosso déficit comercial.” É aí que está o problema: as medidas de recuperação do poder de compra foram amplamente financiadas pela queda do investimento público. Ele caiu 30% em 2016, atingindo o nível mais baixo em setenta anos.
*Gwenaëlle Lenoir e Marie-Line Darcy são jornalistas.