Certa vez um filósofo na segunda metade do século XIX se horrorizou com o apoio popular francês ao sobrinho do temível Napoleão Bonaparte. Este sobrinho se tornaria o Napoleão III, governando uma França muito diferente da França que foi governada pelo seu tio, com quase 50 anos de diferença. O horror do filósofo a essa “repetição” na história da França o fez formular um importante aforismo para a análise historiográfica sobre como os fatos se repetem: “a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa”[i].
Isso ressalta a importância não só da percepção das diferenças, mas principalmente das semelhanças, da continuidade. A relação entre diferentes coisas constitui uma estrutura e faz funcionar um sistema. Se cada elemento for analisado separadamente, em suas especificidades, não é possível perceber o conjunto, as conexões. Isso está na nossa própria forma de se expressar, já que a língua é um sistema que cria os seus significados pela combinação de diferentes traços que se repetem e se conjugam. Ou seja, a palavra “palavra” possui três letras “a”, combinadas com outras letras. Se formos analisar somente a diferença entre as letras, nunca chegaremos na composição mais ampla – a palavra, ou nem mesmo na totalidade do texto -, que é a relação estabelecida entre os diferentes traços (nosso alfabeto), que se repetem e se misturam infinitamente.
Não é à toa, portanto, que entre a língua e a história está o discurso. Ou seja, diferentes sentidos em diferentes processos de significação que influenciam fatos, geram consequências e, mais importante, dão significados aos próprios fatos e às consequências.
Eni Orlandi, uma grande estudiosa dessa relação entre língua e história, analisando paráfrases e polissemias, alertou sobre a importância de perceber o mesmo no diferente: “uma relação contraditória porque não há um sem outro”[ii]. É na repetição, mesmo que diferente, que podemos encontrar conexões e explicações. A história possui mais sentido, portanto, quando descobrimos o que está se repetindo no novo. “O que funciona no jogo entre o mesmo e o diferente é o imaginário na constituição dos sentidos, é a historicidade na formação da memória”[iii].
A compreensão do conjunto precisa, então, pensar no amplo, afastar-se. A história nunca pode ficar só no presente. É preciso olhar o passado, buscando exatamente as conexões entre diferentes traços que vão nos dar um significado, uma explicação. O processo para se afastar, entretanto, costuma esbarrar nas insistentes obviedades das diferenças, principalmente quando tais diferenças caem nas armadilhas do uso de conceitos que procuram significar só o peculiar.

Por exemplo, por mais que exista diferença entre o trabalho de um escravo do antigo Egito, de um escravo do Brasil colonial e de um operário nas indústrias de São Paulo, o fato de eles exercerem uma prática de produção ressalta uma continuidade, uma semelhança. Se usarmos o conceito de trabalhador só para se referir ao assalariado ou empreendedor precarizado do século XXI, não vai ser possível compreender as engrenagens que fazem funcionar o mundo do trabalho ao longo da história. Por outro lado, se ampliarmos o conceito para permitir a observação das similaridades, compreende-se o papel do trabalhador em cada sistema histórico e como eles se repetem na manutenção e consolidação de poderes políticos e econômicos.
Como analisar, então, as mentiras de fins de 2010 que afetam a política? Observar o específico ressaltando as diferenças e ignorando as similaridades está nas tentativas atuais de compreender o fenômeno das fake news. A própria forma de expressão linguística consolidada no uso comum, fake news, para se referir à nova prática de divulgar informações falsas, atrapalha a percepção das continuidades. Considerar esse fenômeno como um conceito específico, diferente do conceito de informação de falsa, por exemplo, por causa da forma linguística em que é expressado, do período a que se refere e do meio tecnológico em que é divulgado, não anula o fato de que há décadas de críticas às mídias em razão da forma como elas manipulam opiniões pública e divulgam informações falsas.
Marc Bloch, em 1921, escreveu um texto “Réflexions d´un historien sur les fausses nouvelles de la guerre” [iv], que traduzo livremente como “Reflexões de um historiador sobre as ‘fake news’ da guerra”. Neste texto, Bloch procura compreender como mitos e lendas se tornam certezas e verdades. A atenção dele está focada principalmente nas informações falsas na época da primeira guerra mundial. Uma coisa é inegável: Bloch não precisou especificar que se tratava apenas de informações divulgadas em aplicativos online da rede social do século XXI.
As diferenças das fake news de 2018 para as mentiras que constituíram a desastrosa certeza sobre o perigo judaico na Alemanha de 1930 está, sem dúvida, nas ferramentas tecnológicas e algorítmicas possibilitadas por ultravelozes microprocessadores. A rapidez e eficiência em espalhar informações falsas de 2018, portanto, não diminui o impacto histórico das fake news das décadas anteriores. Isso quer dizer que impressa em jornais, ditas em telejornais ou rádios, passadas de boca em boca na informalidade, ou escritas em aplicativos online, as fake news sempre fizeram parte da nossa história e sempre foram capazes de impactar fatos históricos com todas suas consequências econômicas e sociais.
A destituição de João Goulart, em 1964, tinha como uma das justificativas uma “ameaça comunista”. Em 2018, ainda há a ideia de que reformas sociais seriam comunistas e de que “nossa bandeira não será vermelha”. É preciso considerar que não havia ameaça comunista em 1964, de acordo com a historiografia sore o período, e muito menos em 2018. Todavia, tanto em 1964 como em 2018, foram divulgados diferentes planos com evidências de como exércitos guerrilheiros tomariam o poder contra a família e a tradição, seja na forma de médicos cubanos ocupando vagas em locais remotos desprezadas por médicos brasileiros na década de 2010, seja na forma de trabalhadores rurais exigindo direitos trabalhistas na década de 1950.
Se fôssemos privilegiar as diferenças, haveria meios intelectuais, filosóficos e metodológicos para ressaltar como as informações falsas de 1964 são diferentes das fake news de 2018, que a mensagem de ameaça comunista de 1964 não é a mesma de 2018 e etc. Porém, tais diferenças não contemplam a similaridade de que ambos os períodos foram marcados por uma falsa imagem de que defender direitos sociais seria ser comunista, nem abarca a percepção de que foram eras de mudanças de governos que passaram a não privilegiar políticas sociais e trabalhistas. Retomando o filósofo mencionado no início deste texto, se em 1964 houve a tragédia, a farsa de 2018 se tornou tão clara quanto a referência mitológica na forma como foi chamado o candidato beneficiado pela imagem de luta contra uma ameaça comunista em pleno século XXI.
Ressaltar a diferença, nesse caso, seria dar atenção a um único dente de apenas uma peça das engrenagens que fazem mover a história. As palavras e os conceitos, nesse caso, devem procurar significar o que há de continuidade nessa relação entre as fake news de décadas passadas para as de 2020. A quem interessa a desconexão da relação que existe entre o significado de fake news e informação falsa? Cabe deixar a responsabilidade das fake news atuais só nas novas tecnologias de trocas de mensagens online e redes sociais?
As palavras são importantes pelo sentido que elas carregam. Os conceitos são importantes pelas engenhosas significações que permitem fazer recortes de diferentes realidades. Entretanto, seus usos para compreender a história precisam assimilar o mesmo no diferente, perceber o contínuo no exclusivo.
Quando estudamos semântica de outros idiomas, é possível perceber uma outra forma de olhar o mundo. Nesse caso, chamo atenção para a palavra “unterscheiden” do alemão, que significa “distinção”. A formação dessa palavra possui, curiosamente, a palavra “scheiden”, que significa “separar”, assim como está presente em “entscheiden” com seu sentido de “determinar”.
Distinguir não deixa de ser separar, divorciar, desconectar. Determinar também significa dar termo, cercar a coisa em um significado. Separar as coisas para perceber o que há de peculiar em cada uma delas é importante, sem dúvida, mas especificar tal diferença só faz sentido se for para compreender como as diferenças se relacionam, se conectam e fazem movimentar os sistemas.
Seja qual for a palavra e o conceito usado para falar sobre as mentiras espalhadas em redes sociais do século XXI, não se pode perder de vista que estamos falando simplesmente de “informação falsa”, um simples sintagma, não necessariamente um conceito bem elaborado para especificar uma relação teórico-metodológica. Separar o atual do antigo, portanto, com engenhosas manipulações conceituais sem perceber o mesmo no diferente, não vai permitir a compreensão desse fenômeno antigo e insistente na manipulação da informação para fins políticos.
Frederico S. Guimarães é graduado em História pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e doutor em Estudos da Linguagem pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente investiga a relação entre discurso ideológico e as significações dos termos “populismo” e “fake news”.
[i] MARX, Karl. (2002). O 18 Brumário e cartas a Kugelmann. Paz e Terra, São Paulo, p. 21.
[ii] ORLANDI, Eni. (1998) Paráfrase e polissemia. In: RUA – Revista do Núcleo de desenvolvimento da Criatividade da Unicamp. Nº 4, 9-20, Campinas, p. 15.
[iii] ORLANDI, Eni. Op cit., p. 15
[iv] BLOCH, Marc. (1921). Réflexions d´un historien sur les fausses nouvelles de la guerre. Revue de synthèse historique. Tome 33.