Fascista ou não fascista? Eis a questão
Se pensarmos na experiência brasileira de um fascismo no século XXI, como ela se coaduna com a produção científica do tema desde 1920?
O neofascismo grassa no mundo. De Viktor Orbán a Rodrigo Dunterte, avolumam-se as experiências sobre as quais historiadores, cientistas políticos, sociólogos e antropólogos discutem a viabilidade e correção do uso do ferramental cognitivo criado pelo estudo das experiências fascistas do século XX para o século XXI. O Brasil, florão da América, fulgura como caso a ser discutido e três costumam ser os interditos dos que acreditam que não temos uma experiência fascista: Bolsonaro não seria “nacionalista” haja vista sua submissão aos Estados Unidos, o regime de Bolsonaro seria por demais contrário à ciência e à tecnologia e, diz-se também, que o fascismo rejeita a noção de liberalismo e que a presença de Paulo Guedes distancia Bolsonaro do modelo fascista do século XX. As três oposições ao uso do termo “fascismo” para o regime brasileiro estão, contudo, equivocadas. Bolsonaro comanda um sistema flagrantemente fascista e é preciso analisar mais as ações fascistas do que sua retórica. Hoje, tal qual se fez no século XX.
Há um consenso internacional a respeito do governo Bolsonaro: seu caráter autoritário. O que, no início de 2018, parecia apenas um ranço mal resolvido dos tempos de caserna, se mostrou como um desdenho pela existência de múltiplos e concorrentes poderes, que caracterizam a democracia moderna. Inúmeras vezes o mandatário brasileiro disse, sem vergonha ou polidez, que “quem manda” é ele. Se havia uma nesga de esperança (inocente) de que as instituições democráticas pudessem conter a sanha autoritária do presidente, ela se esvaiu em algum lugar entre a demissão de Sérgio Moro e o recrudescimento dos ataques ao Supremo Tribunal Federal nos últimos trinta dias.
A discussão internacional mais corrente sobre o governo brasileiro, contudo, não é tanto sua completa inabilidade para tratar a pandemia, seu descaso para com o meio ambiente, ou sua frenética busca pela desconstrução dos apoios institucionais para educação e cultura nacionais. Olhando-se o conjunto da obra, a discussão hoje se assenta no caráter fascista que se desvela ante um país que já contabiliza mais de 50 mil mortos pela pandemia.
Seria o governo Bolsonaro fascista? Em que medida o conceito de “fascismo” poderia ser usado para explicar Bolsonaro e prever suas ações e intenções? Haveria, assim, um “fascismo à brasileira”?
Se, em 2018, esta discussão parecia erudição acadêmica sem sentido, passados apenas dois anos da eleição, ela se reveste de extrema importância, já que foi dado prazo suficiente para que Bolsonaro se acomodasse dentro do arranjo institucional de poder brasileiro. O comportamento arredio e arrivista de quem comanda hoje o Executivo não apenas traz intranquilidade para todo o país, como efetivamente contribui de forma decisiva para agravar as crises econômica e sanitária pelas quais o país passa.
Analisado friamente, o governo Bolsonaro tem todas as características que a historiografia sobre o fascismo assentou como importantes e/ou imprescindíveis para o assunto. Possui o caráter político “iliberal”, segundo a construção recente de Madeleine Albright (2018); sustenta um reacionarismo anti-moderno, conforme defende Ernst Nolte (1963); é profundamente anti-socialista, como argumentam Nico Poulantzas (1979) e Georg Lukács (1980); e é também anti-racional, em consonância com os argumentos de Zeev Sternhell (1994) e Ian Kershaw (2015), por exemplo.
Se estamos no frágil campo da conceituação pela negação (anti, anti, anti …), e daí há de vir alguma crítica, é possível dizer-se também que o governo Bolsonaro contempla as definições positivas de Roger Griffin (1991), com a ideia da reconstrução mítica do passado como forma de controle de um ultra-nacionalismo (mito palingenético); de Michael Mann (2004) e a criação de milícias armadas paramilitares a desestabilizar o sistema; de Robert Paxton (2004) com o machismo e exaltação da masculinidade, além de demonstrar também o racismo e a defesa do colonialismo estrutural como trazem os argumentos de Giorgio Agamben (1995). É uma profusão tal de características que explica a formação do consenso em torno da correção do uso do termo “fascismo” (ou ao menos “neofascismo”) para referenciação do atual governo brasileiro.
De apontamentos de similaridade e de ressonância entre o fascismo do período entre-guerras e o momento atual no mundo, há muitos artigos bons e bem escritos. Quero tratar aqui de três questões também essenciais ao conceito de fascismo e que, tomadas sem o devido cuidado, costumam ser usadas como interdito ao uso do termo fascismo para o governo brasileiro. Falo da relação entre fascismo e nacionalismo, de fascismo e ciência/tecnologia e fascismo e liberalismo.
Quando o assunto fascismo é tratado com um certo descuido conceitual, costuma-se argumentar que a postura submissa do governo de Bolsonaro aos Estados Unidos não permitiria o uso do termo fascismo, já que os modelos clássicos da Itália e da Alemanha no entre-guerras traziam no seu bojo a indiscutível exaltação da nação. O nacionalismo (ou a falta dele) seria, assim, uma evidência da imprecisão do uso do adjetivo fascista para Bolsonaro. O tema do nacionalismo é um dos mais caros aos historiadores do século XX, seja porque foi base de organização institucional e ideológica de todo o século passado, seja porque muitas vezes se confunde nação com Estado. No senso comum, inclusive, esta confusão é generalizada: nação e Estado são tomados como conceitos intercambiáveis.
Nesse sentido, defender a “nação brasileira” ou “o Brasil” seria o mesmo que defender o “Estado brasileiro”. E se Bolsonaro rifa o capital diplomático brasileiro, nossas potencialidades econômicas e sociais em troca de acenos desimportantes do governo norte-americano ele não seria, portanto, nacionalista.
O problema com esse argumento são essencialmente dois. Em primeiro lugar, não há um membro do alto estamento do governo Bolsonaro, incluindo o próprio, que não se diga, se assuma e realmente acredite ser “patriota” e estar lutando “por um Brasil melhor”. Do ponto de vista da formação da ação política, os sujeitos estão convencidos de que defendem o Brasil e isto afastaria a hipótese de burla ou perversidade. Paulo Guedes pode tomar atitudes econômicas baseadas em seu ganho pessoal e apenas justificá-las como sendo “de interesse nacional”. Bolsonaro não. É preciso, portanto, discutir qual o entendimento que Bolsonaro tem do termo “nação” e aí cai-se no argumento de Eric Hobsbawm sobre o nacionalismo. Como um termo polissêmico, a ideia de “nação” comporta tantas definições quanto sujeitos que a ela se apropria. Na cabeça de Bolsonaro e seus generais-ajudantes pode-se defender o Brasil e ceder a base de Alcântara porque, num futuro mágico, “isso será bom para o país”. Essa ressignificação da noção de nacionalismo pode parecer uma característica da ignorância de Bolsonaro, mas em realidade é – como mostra Hobsbawm – a característica do conceito.
Durante o século XX a carta do nacionalismo foi usada pelos franceses para resistir aos alemães, pelos ingleses para suportar os bombardeios da Segunda Guerra e também pela Alemanha para incitar os sacrifícios brutais de seus soldados no front. Ocorre que o mesmo nacionalismo foi invocado por tropas indianas para se submeterem ao jugo inglês e lutar na guerra ao lado do exército da rainha, pelos soviéticos para resistirem ao avanço alemão e assim por diante. Em suma, o “nacionalismo” admite construções imagéticas, simbólicas e mesmo materiais de toda sorte funcionando como um “coringa” discursivo apontado para o que quer que o governo do momento defina ser “de interesse” ou não da nação.
Entretanto, a única e verdadeira característica do nacionalismo é sua condição ontológica de separação dos cidadãos. Se cria uma nação apontando para todos os indivíduos que dela NÃO fazem parte, ainda que vivam no mesmo território, falem a mesma língua e tenham a mesma cultura. Hitler excluiu todos os judeus-alemães da nação alemã com o mesmo argumento que Mussolini dizia que os italianos modernos estavam irmanados com o império romano. O jogo de inclusão e exclusão é, portanto, a característica básica e a razão de existência do nacionalismo.
Para Bolsonaro e seu entorno, vender, alugar ou franquear o Brasil, suas posses e possibilidades ao uso dos Estados Unidos importa menos do que repetir que “nossa bandeira não será vermelha”. Aliás, o moto bolsonarista joga um papel essencial na demonstração do caráter fascista de Bolsonaro e não é pelo reforço do anti-comunismo, mas por excluir da “nação brasileira” todo o brasileiro que defende uma bandeira vermelha. De repente e simbolicamente, “ser brasileiro” torna-se uma função da cor da bandeira que supostamente se acena. E com isso fecha-se o círculo da exclusão, característica do fascismo. Todos aqueles que empunham bandeiras vermelhas não são brasileiros, não têm mais direito aos recursos do Estado brasileiro e a eles deve ser dados apenas a violência policial e militar e o rigor do conjunto legal de restrições. Voilá! Eis que Bolsonaro vê-se “defensor” do nacionalismo exatamente quando exclui simbolicamente brasileiros da condição de serem brasileiros.
A segunda interdição comum ao uso do termo fascismo para o Brasil seria a questão da relação que Bolsonaro tem com a ciência e tecnologia. O fascismo e o nazismo investiram e confiavam muito na ciência e tecnologia. Hitler e seus cientistas estiveram a um triz de criar a bomba atômica e efetivamente tiveram acesso às tecnologias dos motores à jato antes mesmo que os aliados o fizessem. Para irmos mais longe, a superioridade racial defendida por Hitler tinha base “científica”, assegurada pelas teorias do século XIX (darwinismo social). Da mesma forma, toda construção excludente das relações civis e de Estado se baseavam muito nas obras de Carl Schmidt. Nos campos de concentração, por exemplo, monstruosas experimentações eram levadas à cabo em nome da “ciência”, e mesmo as campanhas italianas para o aumento da produção agrícola também tinham um pé na “ciência”. Como seria possível Bolsonaro ser fascista e obscurantista ao mesmo tempo?
Novamente aqui entra o jogo de significação e ressignificação. Bolsonaro utiliza o que há de tecnologia mais avançada a seu favor. É com o uso das mais modernas ferramentas de comunicação que ele foi eleito, e é também a partir das mais modernas tecnologias de controle psicológico e simbólico-narrativo que seus filhos montaram (com a ajuda de Steve Bannon) as redes do ódio que acabaram por sequestrar a democracia brasileira. A relação de aproximação e distanciamento da ciência e da tecnologia é, portanto, idêntica ao padrão que se viu no entre-guerras. A ciência precisa curvar-se ao interesse político do mandatário fascista. Se não o faz “deixa” de ser ciência para ser “mera especulação”. O mesmo acontece com conhecimentos de senso comum. Se a cloroquina serve a interesses econômicos e políticos do governo, criam-se até indícios inexistentes de eficácia e coloca-se neles o rótulo de ciência, e revolucionária, ainda por cima.
O que se percebe é a genuflexão de todo o mundo socioeconômico ao interesse político do mandatário fascista. Seja pela distorção simbólica e retórica dos objetos, seja por meio da inclusão/exclusão de tais objetos nos campos de confiança e desconfiança delimitados politicamente pelo fascista. Tudo é ad hoc e tudo pode ser invertido. Em realidade, essa forma de viver a política é característica do fascismo. Mussolini quando admoestado pela Liga das Nações, após a violência geopolítica contra a Abissínia (Etiópia), endereçou à nação italiana um discurso dizendo que a “civilidade” e o “caráter humano” do governo e do povo italiano tinham “decidido” que o melhor caminho era não avançar por sobre a Etiópia. A história mostra, contudo, que as inúmeras sanções econômicas e a pressão diplomática internacional uniram-se à falta de suporte alemão aos interesses italianos no momento, e fizeram Mussolini recuar.
As “idas e vindas” decisórias de Bolsonaro constituem exatamente o modo fascista de governo.
![O presidente da República, Jair Bolsonaro participa do hasteamento da Bandeira Nacional. Foto: Marcos Corrêa/PR](https://diplomatique.org.br/wp-content/uploads/2020/06/49987936616_e3dd8a3cbe_o_0-300x225.jpg)
Um último ponto utilizado para negar a correção do termo fascismo para o caso brasileiro seria a presença do liberalismo (ou neoliberalismo) estridente de Paulo Guedes. Supostamente, o fascismo seria o primado do Estado, e isto não caberia nos ditames de Bolsonaro do “Estado mínimo”. Aqui é preciso ouvir Robert Paxton e analisar a prática fascista e não apenas a sua retórica.
Em primeiro lugar, é preciso diferenciar liberalismo político do liberalismo econômico. Ambos são tão diferentes que, em diversos momentos, se tornam excludentes. A ode ao mercado não admite a manutenção dos direitos e prerrogativas individuais tais como defendidas pelos liberais do século XVIII. Trocando em miúdos, entre o direito de ir e vir e a defesa da propriedade privada, a segunda tem sempre primazia. Entre o direito à vida e a regulação do mercado por um salário de fome, o liberalismo político sucumbe ante o econômico, na percepção dos liberais que temos hoje. Não fosse assim e a renda básica, por exemplo, seria bandeira liberal e não da esquerda.
Daí que a oposição ferrenha que o fascismo faz é ao liberalismo político e não ao econômico. De fato, vários são os estudos que mostram que tanto Mussolini, quanto Hitler fizeram a defesa sacrossanta da propriedade privada e do trabalho assalariado, além de elevarem a exploração de mais-valia ao limite da existência, ultrapassando em muito a da humanidade. O que fica claro quando se lê o Mein Kampf ou os discursos de Mussolini é que eles abominavam o capitalismo financeiro transnacional, o qual culpavam pelo Estado de miserabilidade de seus respectivos países no entre-guerras. Daí a criação sintética da figura imaginária do “judeu-banqueiro-comunista” que Hitler faz, para usar como bode-expiatório de todo o ódio da nação alemã.
Ora, o “judeu-banqueiro-comunista” do Mein Kampf é exatamente a figuração simbólica que Bolsonaro e seus filhos (e tristemente nosso chanceler) fazem, por exemplo, de George Soros. O mesmo processo tresloucado de ressignificação fascista cuja necessidade de sintonia com o empírico é rigorosamente zero.
Há também que se separar o pensamento econômico fascista do exercício das tomadas de decisão econômicas quando em preparação para a Segunda Guerra. Se comparados os primeiros anos dos dois governos (alemão e italiano) fica claro que foram apoiados pelos industriais e empreendedores da época, fizeram inúmeras concessões a estes (incluindo privatizações de serviços públicos na Alemanha e Itália) e somente ante ao esforço de guerra passaram a colocar sob a tutela do Estado determinadas áreas estratégicas (como siderurgia, por exemplo). E ainda se falhassem os acordos com os respectivos industriais, como a sobrevivência (e crescimento) da Thysen e da Krupp mostram bem.
Novamente aqui surge a mesma ideia. A economia, os capitalistas e o capital precisam se submeter “aos interesses da nação”. E se assim o fizerem, serão abraçados e santificados. “No tocante a esta questão”, o melhor é deixar o próprio Mussolini falar. Em entrevista ao jornalista Emil Ludwig, em 1932, afirmou:
“Isto é algo que é necessário que você entenda muito bem: o Estado fascista dá a direção aos empreendedores, sejam pescadores ou donos de indústria pesada em Val’Aosta. Lá [na URSS] o Estado realmente é dono das minas e dos transportes, sendo as linhas férreas propriedades do Estado. Assim como muitas fábricas. No final das contas, este [a Itália fascista] não é um Estado socialista porque nós não queremos estabelecer um monopólio em que o Estado faça tudo” (Ludwig, 1933, p.153-154).
Assim, fascismo e liberalismo econômico somente se tornam excludentes no processo de preparação para a Segunda Guerra, e apenas para os empresários que não se “adequaram” ao caminho escolhido pelo governo. O capitalismo, diz Mussolini, precisa servir “à Nação”. E essa frase certamente teria a concordância de Bolsonaro e o olhar torto de Paulo Guedes.
No fim, o governo Bolsonaro tem todas as características do que foi identificado como fascismo no século XX. O controle da informação, o caráter ritualístico e estético da política, o arrivismo e o desprezo pelas instituições democráticas, o mal-estar para com a modernidade, e os condicionantes estruturais machistas e racistas-coloniais. E, em um olhar mais cuidadoso, repete também o processo pendular de aproximação e afastamento com liberalismo econômico, e as ressignificações ad hoc das noções de Estado e do próprio nacionalismo. Ou Bolsonaro não aparelhou todo o alto escalão do governo federal com militares que acumulam seus salários e que repetem que defendem o Brasil com a mesma naturalidade que demonstram a total inadequação técnica para as funções que ocupam? É o Estado mínimo verde-oliva.
Fernando Horta é historiador, doutor em História das Relações Interacionais pela UnB e pós-doutor pela Josef Korbel School of International Studies, Denver University
Obras Citadas
Agamben, Giorgio. Homo Sacer: Sovereign Power and Bare Life. Roma: Giulio Einaudi, 1995.
Albright, Madeleine. Fascism a warning. Nova Yor: Harper, 2018.
Griffin, Roger. The Nature of fascism. Nova York: Routledge, 1991.
Kershaw, Ian. The Nazi Dictatorship: problems and perspectives of interpretation. Nova York: Blumsbury, 2015.
Ludwig, Emil. Talks with Mussolini. Boston: Little, Brown and Cia, 1933.
Lukács, Georg. The destruction of reason. Londres: Merlin Press, 1980.
Mann, Michael. Fascists. Nova Iorque: Cambridge University Press, 2004.
Nolte, Ernst. Three faces of fasicsm: Action Française, italian fascism, national socialism. Nova York: Holt, Rinehart and Winston, 1963.
Paxton, Robert. The Anatomy of fascism. New Iorque: Alfred Knopf, 2004.
Poulantzas, Nicos. Fascism and Dictatorship: The third international and the problem of fascism. Londres: Verso, 1979.
Sternhell, Zeev, Mario Sznajder, e Maia Asheri. The birth of fascist ideology. New Jersey: Princeton, 1994.