Fazer sumir: políticas de combate à Cracolândia
É política concreta de “arrasa quarteirão”, que, com rapidez, eficácia, legalidade duvidosa e estratégia militarizada, visa erradicar essa famigerada territorialidade, abrindo espaço para acionar práticas de fazer sumir os que conflitam com o projeto de cidade limpa, moderna e parceira da iniciativa privada
Incêndio após operação policial na “nova cracolândia”, no dia 11 de junho de 2017
Em São Paulo, o dia 21 de maio despertou ao som dos aparatos de combate. Atiradores de elite da Polícia Civil, observados do alto por um helicóptero da Polícia Militar, posicionaram-se. Ao chão, mais especificamente no cruzamento entre as ruas Dino Bueno e Helvétia, balas de borracha e bombas se anteciparam à chegada das tropas, formadas por centenas de policiais, que se deslocaram em direção ao fluxo, onde se aglomeravam pessoas em situação de rua, consumidores de crack, sujeitos sem condições de habitar outros cantos da cidade, prostitutas, egressos do sistema penitenciário e da Fundação Casa, entre outros marginalizados urbanos. Cavalos e cães também compuseram a cena, cujo traço distintivo foi a completa desproporção das forças. De um lado, armaduras, fuzis, metralhadoras, capacetes, coturnos, escudos, corpos fortes; de outro, cobertores esfarrapados, chinelos, corpos sujos e emagrecidos, cachimbos e pedras – nas mãos e na mente. Em poucos instantes, policiais civis – em suas versões militarizadas (Garra, GOE) – desmontaram barracas, invadiram hotéis, apreenderam drogas e importunaram pessoas. Sob as justificativas de conter a presença do chamado “crime organizado” e destruir a “feira livre de drogas”, donos de pensões, pequenos comerciantes e toda uma miríade de grupos sociais marginalizados, que vivem e sobrevivem dos recursos, afetos e solidariedades que circulam por esse pequeno recorte do urbano, foram escorraçados do coração da cidade.
Por volta das 17h, quase dez horas após o início da operação, a Rua Dino Bueno, antes ocupada por dezenas de pessoas, encontrava-se totalmente vazia, sem sequer um papel de bala. Apenas os jatos de água lançados pelos caminhões-pipa tocavam o chão, como se estivessem à procura de um palito, um plástico, um fósforo, um único copo, para erradicá-los do tecido urbano. Já na Rua Helvétia, logo à frente da tenda do agora extinto programa De Braços Abertos, as viaturas da Inspetoria de Operações Policiais (Iope), da Guarda Civil Metropolitana – mais uma tropa de combate –, dividiam espaço com as “viaturas” da assistência social. Fardas azuis, jalecos brancos, verdes e azuis, e alguns poucos usuários, sem destino, transitavam pela região. Longe de ser ineficiente, o objetivo da operação foi alcançado em seu propósito: desgarrar pessoas daquele espaço, fazer sumir corpos, barracas, restos, cheiros, cores. O projeto das autoridades públicas se concretizou: a área ficou limpa.
***
Alvo novamente de uma megaoperação espetacularizada, a região estigmatizada como Cracolândia está, ano após ano, no centro das disputas políticas em São Paulo.1 Repondo táticas de operações anteriores (2005, 2007 e 2012), a recente incursão militarizada também esteve imbricada, por um lado, com a intervenção urbana, alicerçada sob a lógica da limpeza do espaço, da demolição de imóveis e da reconfiguração dos grupos sociais que frequentam o território, sempre acompanhadas da tentacular especulação imobiliária; e, por outro, com o confinamento em instituições de controle, sejam elas punitivas, como as prisões, para os tachados como “traficantes”, ou vinculadas a certa perspectiva de saúde e assistência, como as comunidades terapêuticas e clínicas de reabilitação psiquiátrica para os apressadamente diagnosticados como “dependentes químicos”.
Os efeitos espaciais de tais ações, apesar de conhecidos, aperfeiçoam-se: à dispersão de dezenas de pessoas pelas vias centrais da cidade, conformando pequenos agrupamentos que se fixam em territórios adjacentes ou seguem circulando, em geral direcionados pela atuação das forças policiais militarizadas (estatais ou municipais),2 articulam-se a concentração e o cerceamento destes em espaços circunscritos, fazendo o fluxo orbitar em torno de si mesmo, como é o caso recente da Praça Princesa Isabel. Longe de serem incompatíveis, trata-se de estratégias, a um só tempo, de controlar e circunscrever os fluxos de tais sujeitos pela cidade.
O que está em questão em operações com tais contornos, acentuadas e atualizadas ano após ano, é mais do que o sempre criticado higienismo. É política concreta de “arrasa quarteirão”, que, com rapidez, eficácia, legalidade duvidosa e estratégia militarizada, visa erradicar essa famigerada territorialidade, abrindo espaço para acionar práticas de fazer sumir os que conflitam com o projeto de cidade limpa, moderna e parceira da iniciativa privada, tal como proposto pelo prefeito João Doria desde o início de seu mandato.
Muito tem sido escrito e narrado sobre essa operação e seus efeitos. Para esse conjunto de narrativas – que, em geral, oscilam entre a defesa de mais punição para “traficantes”, mais tratamento e atenção para “dependentes químicos”, e a observação dos interesses mercantis no espaço –, interessa-nos contribuir com a sistematização das múltiplas tecnologias de poder e controle conectadas a esse tipo de ação, que, ao botar para circular, contudo, sem deixar de confinar, almeja fazer sumir essa população considerada indesejável e perigosa.
O encarceramento – sobretudo o provisório – opera há tempos como um mecanismo que retira temporariamente homens e mulheres das ruas da cidade. Ao longo dos últimos anos e tendo como justificativa a mesma retórica do combate ao tráfico, centenas de pessoas foram encarceradas na região, literalmente “presas por atacado”. Apenas para ter uma ideia, entre junho e outubro de 2009 ao menos 261 pessoas foram encarceradas.3 Entre 3 e 9 de janeiro de 2012, início da Operação Sufoco, 48 presos – 23 por tráfico e 25 recapturas.4 No decorrer de 2014, somente a GCM fez 319 prisões.5 Na última megaoperação, em um único dia, ou melhor, em pouquíssimas horas, 53 pessoas foram detidas, entre as quais, segundo a Secretaria de Segurança Pública (SSP-SP), 48 traficantes.6 Se a máquina de produzir supostos traficantes opera em velocidade acentuada, inclusive com o retorno deles às ruas por inconsistência das acusações, o mesmo não pode ser dito em relação às propaladas armas e drogas, que, quando apreendidas, se resumem a quantias risíveis, como na operação realizada pela mesma Polícia Civil em fevereiro de 2010, na qual foram necessários mais de noventa homens fortemente armados para, entre outras miudezas, apreender 410 pedras de crack, que juntas pesavam menos de 500 g, nove porções de maconha, que somavam menos de 10 g, um revólver calibre .22, que cabia na palma da mão de um único policial, e 25 cachimbos artesanais. Nesta recente, centenas de policiais apreenderam quase 20 kg de drogas, entre crack, cocaína, maconha e lança-perfume. Algo ínfimo diante da quantidade comercializada diariamente na cidade. Nada, em comparação com um helicóptero recheado com meia tonelada de cocaína…
Concomitantemente à prisão – e não deixa de espantar o paralelismo com a lógica do encarceramento por atacado –, ressaltam-se as múltiplas possibilidades de internação, entre elas a proposta de internação compulsória em massa, que, por mais que não tenha sido colocada em prática, explicita o tipo de “tratamento” disponibilizado a esse contingente populacional, evidenciando que a lógica manicomial – a despeito da reforma psiquiátrica – não é coisa do passado. Com efeito, constata-se que tal estratégia não é de todo nova. A assinatura do primeiro termo pelo governador Geraldo Alckmin em 20137 mobilizou à época o Cratod, serviço de referência em dependência química, que acabou se tornando alvo de disputas públicas em torno dessas internações, que, ademais, foram criticadas em carta aberta pelos funcionários da instituição.8 Tratando-se de estratégia discursiva potente, porque apoiada pela opinião pública, os efeitos de pôr em cena esse tipo de proposição visam criar uma possibilidade nebulosa para a abertura de convênios entre órgãos públicos e instituições privadas, que competem pela “terapêutica” mais eficiente.
Menos visível e, portanto, em total ressonância à lógica do fazer sumir, encontra-se a possibilidade de submeter os “dependentes químicos” às chamadas medidas de segurança, cumpridas em Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTPs). Ponto de fixação e parada, sobretudo em relação às prisões provisórias, haja vista que a saída desses hospitais se vincula à produção de laudos psiquiátricos que, em geral, sempre tardam a interromper o tratamento-contenção, é em tais instituições que o crack – substância sempre equiparada às forças do mal – cede espaço às pílulas psiquiátricas de todos os tipos, cores e tamanhos, além de injetáveis como o haldol, que muitas vezes opera como mecanismo de tortura. Ressalta-se que após a chegada dessa população a tais hospitais, movimento que ganhou força ao longo dos últimos anos, tornam-se visíveis reconfigurações locais, simbolizadas, entre outros traços, pela profusão de cercas, revistas e outras tantas técnicas de segurança, que apenas acentuam o caráter carcerário do “tratamento”.
Além do acionamento de instituições como prisões, comunidades terapêuticas e albergues, que compõem a rede estatal e municipal, uma série de outros equipamentos, como as religiosas Cristolândia e Missão Belém, serve de “refúgio” àqueles que sofrem com as operações. É comum também o “incentivo” ao “retorno para casa”, cujo exemplo mais ilustrativo foi figurado em vídeo recentemente publicado pelo próprio secretário de Assistência Social, Filipe Sabará, que, no auge do projeto de fazer sumir as pessoas do centro da cidade, acompanhou um morador de rua até a rodoviária para que ele pudesse voltar à sua “terrinha”, o Maranhão, portando ao seu lado o “kit dignidade”, composto de materiais de higiene. Bem longe de indicar assistência social como direito, repete-se uma prática comum às prefeituras que, ao emitirem passagens, despacham de sua vista e responsabilidade a situação de rua.
Ainda mais explícita que a tentativa de fazer sumir foi a entrada avassaladora de tratores com o logotipo do Projeto Redenção nas ruas Helvétia e Dino Bueno, demolindo ilegalmente imóveis, derrubando paredes sobre as pessoas e fechando pequenos comércios. Reeditando velhas iniciativas de revitalização da área, os governos estadual e municipal pretendem demolir quarteirões inteiros, a fim de construir novos empreendimentos e atrair outros grupos sociais à região. Assim como anteriormente, trata-se de mais uma tentativa de expulsar os sujeitos que circulam por ali, nos cortiços, hotéis, pensões, ruas, ocupações e bares, atingindo não apenas os usuários de crack, mas também moradores e trabalhadores do centro paulistano. O mais novo projeto, segundo tais autoridades, é a construção de prédios de habitação popular, os quais, porém, ao que tudo indica, não servirão aos já moradores da área. As recentes provas de que o plano em curso envolve a expulsão de tais grupos são a repressão ao estabelecimento de barracas nas ruas da região e os pedidos de reintegração de posse às ocupações Mauá, Marconi e São João, todas localizadas nas adjacências, e que estavam em via de ser regularizadas anteriormente. Sem espaço seguro para se estabelecerem, com as forças policiais impedindo a montagem de lonas e barracas que protegem do frio cortante, as pessoas em situação de rua se deslocam para albergues e outras áreas da cidade, como a favela do Cimento, na Radial Leste, que cresceu ao longo das últimas semanas.
Por certo, as faces do fazer sumir são inúmeras, incluindo também o apagamento de memórias e experiências acumuladas. Não é de hoje que a “Cracolândia” é conhecida, estudada e igualmente prenhe de projetos, programas públicos e privados, além de ações de interesse internacional. Apresentar essa última megaoperação como a de um governo que, finalmente, agiu sobre a situação é, no mínimo, questionável. Trata-se também de políticas de fazer sumir do mapa cognitivo qualquer referência progressista, qualquer pesquisa ali realizada, bem como a mobilização social e cultural que se aglutinou nos últimos anos.
Os que hoje estão sendo varridos do centro de São Paulo configuram uma população – como diria Deleuze (1992) – pobre demais para ascender ao mundo do consumo e numerosa demais para ser simplesmente confinada nas prisões ou internada em hospitais psiquiátricos e comunidades terapêuticas.9 Alguns são definitivamente aniquilados por máquinas de matar, manejadas tanto por forças estatais como por (des)arranjos no universo do crime. A grande maioria, entretanto, não se evapora, não desaparece. Tais homens e mulheres, ainda que sejam colocados para circular indefinidamente,10 por instâncias que articulam punição e repressão; assistência e saúde,11 fazendo sumir os indesejáveis, vão se instalando em lugares e limiares da cidade, traçando linhas de fuga que criam outras tantas territorialidades. Gestados e geridos pelas políticas dos tempos presentes, compõem a população – cada vez mais crescente – de refugiados urbanos.
*As questões aqui elencadas têm sido trabalhadas coletivamente no âmbito de um Projeto Temático Fapesp intitulado “A gestão do conflito na produção da cidade contemporânea: a experiência paulista” e coordenado por Vera Telles, professora do Departamento de Sociologia da USP. Fábio Mallart é doutorando em Sociologia pela USP (bolsista Fapesp); Marina Mattar é mestre em Sociologia pela USP; e Taniele Rui é professora do Departamento de Antropologia da Unicamp.