Feminismo como islamofobia velada domina o debate sobre o Afeganistão
O mundo cristão está longe de ser imune à violência de gênero. E se olharmos bem de perto, encontraremos muitos casos de violência contra as mulheres no Ocidente que raramente são contextualizados em torno da religião. Esta história de violência de gênero não é uma história do Oriente Médio, é a nossa história
Guerra em nome de direitos humanos é um oximoro. No entanto, é assim que os Estados Unidos, e sua grande mídia, estão desviando a atenção do fato de que acabaram de perder outra guerra. Feminismo e direitos LGBTQ+ nunca foram a motivação por trás da ocupação do Afeganistão. Mesmo assim, o tratamento dado pelo Talibã às mulheres e gays parece ser o centro de todas as discussões midiáticas sobre a retirada das tropas americanas. Como mulher, é pertinente mostrar honestamente como é desconfortável ver os direitos das mulheres sendo usados para enaltecer um regime imperialista racista. Sobrepor as preocupações com o futuro de meninas afegãs com as demandas pelo extermínio de islâmicos “primitivos” parece usar o feminismo para velar a islamofobia. Os direitos das mulheres são violados pelo mundo inteiro, todos os dias. Será que não temos visão clara da violência de gênero presente no mundo cristão porque estamos submersos nele?
O mundo cristão está longe de ser imune à violência de gênero e, claro, está alheio a essa violência — está alheio até mesmo ao seu próprio cristianismo. Você conhece alguma mulher que não tem medo de andar sozinha pela cidade à noite? Que nunca se sentiu pressionada a se casar e começar uma família? Que não teve medo, ficou insegura ou negou suas tendências homossexuais? E se olharmos bem de perto, encontraremos muitos casos de violência contra as mulheres no Ocidente que raramente são contextualizados em torno da religião. Esta não é uma história do Oriente Médio, é a nossa história. Estamos todas — em todos os lugares — lutando do nosso próprio jeito para alcançar o mínimo de bem-estar social, idealmente livre de desigualdade e fobias. E, vamos ser honestos, nenhum de nós chegou perto de alcançá-lo.
Para continuarmos a ver os EUA e a Europa como a vanguarda do desenvolvimento humano, devemos fazer uma ginástica mental elaborada, na qual apenas vemos as coisas que os vangloriam e escondemos as más. Neste caso, o “cristianismo secular” faz maravilhas para esconder os lados feios do fundamentalismo religioso ocidental, ao mesmo tempo que endossa a crença (nada secular) na superioridade étnica. Líderes governamentais costumam citar a Bíblia, e os legisladores são inevitavelmente influenciados por suas visões religiosas, explícita ou implicitamente. Ao mesmo tempo, esses líderes contam com um senso de superioridade que, supostamente, decorre de conceitos exagerados como Democracia e Liberdade.
“Os discursos ocidentais em torno do Islã, do fundamentalismo e das mulheres muçulmanas estão entrelaçados desde o início dos projetos coloniais europeus.” — Janine Rich em “Salvando” Mulheres Muçulmanas: Feminismo, Política dos EUA e a Guerra ao Terror
De que forma a defesa da educação das mulheres remete à colonização europeia? A colonização sempre contou com a supremacia racial para se desenvolver. Foi o ambiente em que a escravidão e a cristianização eram justificadas. Para que o projeto colonial perdure, o “outro”, ou o colonizado, deve ser resgatado de si mesmo; porque impor uma narrativa é mais fácil e barato do que impor um aparato de força bruta. No caso da ocupação estadunidense, ambas as ferramentas foram utilizadas descaradamente. ‘Permitir que meninas estudem’ sustentou a narrativa de que a presença dos EUA fez algo para civilizar tribos primitivas. Como Leila Ahmed descreve em seu livro Women and Gender in Islam: Historical Roots of a Modern Debate:
“A ideia de que outros homens, homens em sociedades colonizadas ou sociedades além das fronteiras do Ocidente civilizado, oprimiam mulheres deveria ser usada, na retórica do colonialismo, para tornar moralmente justificável seu projeto de minar ou erradicar as culturas dos povos colonizados.”
De acordo com Janine Rich, em sua publicação na International Affairs Review em 2014, “salvar mulheres” tem sido uma ferramenta poderosa para a interferência ocidental no Oriente Médio, especialmente quando a região se tornou central no cabo de guerra entre os EUA e a URSS. Rich vai além para demonstrar que a presença militar ocidental no Oriente Médio não apenas se apropriou do feminismo para justificar a “guerra ao terror”, mas também piorou “o status dos direitos das mulheres na região”. Embora o Talibã tenha restringido o acesso das mulheres à educação e tornado o véu obrigatório, isso significou mudanças na demografia urbana, que desde os anos 1990 representa menos de 26% da população afegã. Para as mulheres nas áreas rurais, o que mudou foi a erradicação quase completa do estupro.
Além disso, durante todo o século 20, os levantes feministas das mulheres afegãs foram severamente enfraquecidos pela suspeita de interferência ocidental. Um exemplo notório disso foi a Rawa (Associação Revolucionária das Mulheres do Afeganistão), fundada nos anos 1970 em oposição não apenas a todos os sistemas de governo afegão, mas também à intervenção soviética e estadunidense. Elas até ameaçaram processar o governo dos Estados Unidos pelo uso não autorizado de suas imagens por americanos durante a invasão em 2001, e posteriormente argumentando que as forças afegãs apoiadas pela Otan eram tão problemáticas quanto o Talibã. Desde o início dos anos 1980, a Rawa está no Paquistão — amplamente ignorada pelas organizações feministas ocidentais. Como Rich explica:
“Para simplificar, não é conveniente tentar salvar uma mulher que está lhe dizendo que sua organização e seu país de origem estão causando mais danos do que ajuda.” […]
“Eles [‘os outros homens’] são o mal supremo, então nós somos o bem supremo. Eles prejudicam as mulheres, por isso trazemos apenas justiça de gênero. Esta é uma falsa dicotomia que opera em muitos níveis, em que não apenas assumimos a diferença absoluta de nossos inimigos, mas também a diferença absoluta das ‘mulheres oprimidas’ que pretendemos salvar.”
Essa distinção entre nós e as mulheres que deveriam ser salvas é exemplificada pelo desastre que foi a proibição do burkini na França alguns anos atrás. A aura muçulmana que emanava da ideia do uso do traje deixava muitos franceses e legisladores do país extremamente desconfortáveis. Esse desconforto, causado pelo contraste entre ‘nós’ e ‘eles’, teria sido cômico se não significasse década após década de guerra, sustentada pela narrativa de que qualquer coisa ‘árabe’ é ‘terror’. A vida das mulheres que usavam burkini melhorou após a aprovação dessa legislação? Absolutamente não. As vidas das mulheres que não usavam burkini melhorou? Também não.
“As mulheres muçulmanas na França são um grupo minoritário e, obviamente, nem todas as mulheres muçulmanas na França desejam vestir este estilo particular de roupa de banho (na verdade, o The Times chegou a informar que muitos dos prefeitos considerando a implementação de uma proibição admitiram que nunca tinham visto um burkini). Mas, infelizmente, a ligação cognitiva entre o que é visivelmente reconhecido como estilos islâmicos de vestimenta modesta e ameaças de terrorismo já está bem estabelecida na França. Ao que parece, uma pessoa não precisa trabalhar muito para convencer a maioria da população de que existe uma ligação direta entre uma mulher que cobre o cabelo em público e um homem-bomba.” — Janine Rich em “The ‘Burkini Battle’: a capitulação da França ao extremismo”
A proibição dos burkinis, a guerra ao terror e a ocupação do Afeganistão pelos Estados Unidos não têm nada a ver com a melhoria da vida das mulheres. Por que, então, os direitos das mulheres se tornaram centrais em qualquer discussão sobre esses tópicos? Devemos analisar criticamente como a grande mídia retrata os povos islâmicos. Na maioria das vezes, o discurso é contaminado por preconceitos, pelo medo do desconhecido e, o mais importante, pelos interesses geopolíticos das forças imperialistas que não têm o melhor interesse do povo — qualquer povo, em qualquer lugar — em mente. Costuma-se dizer que a guerra é uma indústria lucrativa, e vale a pena enfatizar como isso se aplica especificamente aos Estados Unidos — já que eles fabricam mais armas do que todos os outros países juntos. Talvez por causa de sua magnitude, esta indústria está fora de nosso escopo de influência como indivíduos. Mas saber o que os direitos das mulheres realmente significam está ao nosso alcance. Demonstrar respeito e admiração pelo povo afegão e sua história está ao nosso alcance. Dessa forma, podemos combater a narrativa que viabiliza tal brutalidade, impedindo que o Feminismo seja usado para promover a islamofobia institucionalizada.
Mirna Wabi-Sabi é escritora, editora, teórica política, professora e tradutora. É editora do site Gods and Radicals e editora-chefe da Plataforma9.