Feminismos periféricos e campesinato: resistências ao neoliberalismo
A organização de movimentos de mulheres rurais durante a década de 1980 trouxe à tona um processo que articulou distintas formas de resistência e mobilização na luta por direitos e pelo reconhecimento do seu trabalho
O ano é 2020 e vimos diante de nós todos os problemas já mais que conhecidos se agravarem de forma intensa e acelerada. Em meio a tanta distopia, a condição das mulheres em todas as regiões do planeta merece destaque. Eram elas na “linha de frente” majoritariamente feminina de combate ao vírus, foram elas que sofreram com o aumento vertiginoso da violência doméstica, da sobrecarga imposta pelo home office, do desemprego e da precarização das condições de trabalho. Tudo isso acompanhado da narrativa que insiste em nos oferecer a ideia de que caminhamos para um “novo normal”, marcado por mecanismos de desumanização, atravessado pela naturalização do uso de inúmeros aplicativos, pelo aumento da carestia de vida e da nossa ansiedade por uma vacina. Não podemos julgar como normal (menos ainda como “novo normal”) o obscurantismo em torno das razões pelas quais lidamos com cada um desses graves problemas, já que absolutamente nenhum deles é obra do acaso ou da nossa má sorte.
É interessante notar como nos primeiros meses da pandemia surgiram inúmeras análises acerca dos aspectos estruturais que nos trouxe até esse fatídico ano, mas já não os vemos mais com tanta frequência e outros temas ganharam as manchetes. E, exatamente por essa razão, interessa aqui trazer a análise de Barruti que nos apresenta a relação entre o modelo hegemônico de produção de alimentos, o surgimento de epidemias e pandemias, onde não é mais possível negligenciar o impacto que o agronegócio possui a nível global. Evidentemente, não estamos falando do seu tão propagado potencial no combate à fome e na sua capacidade de produção de alimentos em escala industrial, mas das consequências trágicas de décadas de exploração e mercantilização do meio ambiente. Trazer à tona a resistência de mulheres mundo afora implica em olharmos para os aspectos estruturais que formam nossa experiência atual. Dito isto, destacamos a atuação dos movimentos sociais rurais.
Recentemente o Movimento de Trabalhadores Sem Terra, que pouco ou nada aparece na grande mídia, doou quase quatro toneladas de alimentos oriundos da agricultura familiar[1]. No Brasil, em setembro deste ano, enquanto todos estávamos estarrecidos com a alta do preço do arroz, item básico da nossa alimentação, o MST manteve o preço do seu produto orgânico[2] quando empresários sugeriam como alternativa que a população o substituísse por macarrão. Diante desse cenário, torna-se imprescindível voltarmos nossa atenção para as alternativas concretas a esse modelo neoliberal extrativista, apontadas há muitas décadas pelos movimentos sociais no campo de toda América Latina.
A produção de alimentos não representa um mero setor da economia. A forma como nos alimentamos e produzimos alimentos define nossa existência ainda que moradores de grandes cidades, por muitos motivos, ignorem este fato. Desde pelo menos a década de 1950 contamos com a organização de movimentos rurais que combatem esse modelo, resistem ao avanço da modernização conservadora que de todas as formas constrangem a permanência de pequenos agricultores em suas terras e que constroem, geração pós geração, uma agricultura que se traduz também num outro projeto de sociedade. E nele, as mulheres do campo são um ator político fundamental, com uma ampla capacidade de articulação que levaram a conquistas de direitos e inserção consistente na construção de políticas públicas.
Feminismo, feminismos: camponesas na América Latina
Já nos acostumamos a nos referir ao movimento feminista no plural. Sua evidente diversidade não expressa somente a complexidade de um fenômeno político e a heterogeneidade na composição da classe trabalhadora, mas sobretudo o seu enorme potencial transformador. Contudo, nos perguntamos por qual razão os movimentos de mulheres rurais ou mesmo o que podemos chamar de feminismo camponês possui pouca ênfase ou é por vezes circunscrito às questões “específicas” do meio rural. No Brasil, há décadas essas mulheres resistem e lutam de forma organizada contra o agronegócio, a concentração fundiária, a violência crescente no campo e desenvolvem formas contra hegemônicas sem que sejam reconhecidas por tal. Um caminho possível de explicação é a insistente “secundarização” das lutas que não ocorrem sobre os holofotes das cidades. Como se no ranking dos nossos problemas não figurasse a profunda concentração fundiária que atravessou séculos e perdura se intensificando pelas formas mais perversas. Neste artigo tratamos das experiências do Brasil e Argentina vislumbrando alcançar a sua relevância no cenário político latino-americano. Suas pautas, construídas ao longo desse itinerário, articulam o embate contra o modelo extrativista com outras que emergem da luta pela visibilização do seu trabalho, denunciando as consequências que decorrem desse não reconhecimento. Nesse labirinto de ecos colonialistas em que vivemos, perde-se a história, distanciam-se horizontes alternativos e, no caso das mulheres rurais, o silêncio sobre elas não corresponde à eloquência das suas ações, capacidade de organização e articulação política
No Brasil, a organização de movimentos de mulheres rurais durante a década de 1980 trouxe à tona um processo que articulou distintas formas de resistência e mobilização na luta por direitos e pelo reconhecimento do seu trabalho, historicamente depreciado. Ao reivindicar o seu reconhecimento como trabalhadora rural e, por conseguinte, denunciar a sua exclusão dos espaços de representação política, esses movimentos mobilizaram elementos fundamentais para a compreensão da divisão sexual do trabalho nas áreas rurais e dos caminhos que elas trilharam na elaboração de suas pautas. Nesta década temos a emergência de movimentos de mulheres rurais em praticamente todos os estados e a formação de articulações regionais e nacionais e há mais de três décadas temos movimentos como, por exemplo, o Movimento de Mulheres Trabalhadoras do Nordeste (MMTR-NE) e o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC)[3] que representam uma referência fundamental para as lutas populares. Há duas décadas Brasília assiste a marcha de milhares de mulheres rurais vindas de todas as partes do país. A Marcha das Margaridas, em homenagem a sindicalista paraibana Margarida Maria Alves assassinada em 1983, demonstra a força política de mulheres que a contrapelo de toda investida neoliberal seguem resistindo a partir da defesa da agricultura familiar e da agroecologia, articulando a luta pela terra e pela reforma agrária à reivindicações que alcançam outros movimentos populares na medida em que denunciam sistematicamente os mecanismos de invisibilização e de exploração permanente do trabalho desempenhado por elas.
Também na Argentina, as análises feministas das reivindicações das mulheres (seja do ponto de vista econômico ou de direitos em relação à sua saúde e acesso a recursos fundamentais) muitas vezes têm um viés a partir dos centros urbanos e suas periferias, negligenciando as mulheres camponesas. Embora essa invisibilidade seja palpável tanto na esfera acadêmica quanto nas políticas públicas, as camponesas se fazem conhecer. A sua presença ultrapassou o âmbito das suas comunidades e mesmo as fronteiras nacionais para estabelecer alianças cada vez mais consolidadas, persistentes e plurais a nível regional e internacional. Neste contexto, a maioria das camponesas que se organizaram na Argentina o fizeram em movimentos mistos vinculados a demandas mais amplas como o território ou o meio ambiente, e em muitos casos também mesclam suas identidades camponesas e indígenas como parte das demandas pelo reconhecimento da identidade étnica. Todas essas reivindicações, de geografias muito diversas e muitas vezes superando as dificuldades da comunicação, têm uma luta comum. Eles enfrentam ameaças de despejo por apropriação ou riscos à saúde de suas famílias e comunidades decorrentes de lógicas neoliberais que se expressam seja pelo avanço do agronegócio (também conhecida como “fronteira da soja”) nas áreas periféricas até a planície pampeana, ou em enclaves extrativistas em áreas de cordilheira.
Em várias dessas organizações territoriais ou ambientais, o papel desempenhado pelas mulheres é cada vez mais perceptível tanto no ativismo “cotidiano” e em formas de protesto mais públicos e visíveis. Além disso, seus slogans foram ampliados para formar o que chamaram de “feminismo popular e camponês”, que reflete a particularidade de seus interesses e propostas do modo de vida camponesa que defendem, mas também está ancorada no conjunto de problemas que afligem mulheres de setores populares em outros ambientes não rurais. Essas alianças são, do nosso ponto de vista, uma evidência da potencialidade e criatividade do ativismo das mulheres camponesas e uma valiosa contribuição para os movimentos sociais mais amplos que as integram. Em nível nacional, muitas das organizações de mulheres camponesas e indígenas mistas ou somente de mulheres camponesas e indígenas foram nucleadas por vários anos sob o Movimento Nacional Camponês Indígena (MNCI), mas também conseguiram estabelecer laços políticos fortes com o amplo movimento de mulheres.
Elas se tornaram um sujeito político chave em face do avanço da lógica neoliberal de mercantilização da natureza. Dito isto, propomos aqui questionar aquela visão tradicional, típica da lógica desenvolvimentista, que tem pensado as mulheres rurais como sujeitos vulneráveis a serem “empoderados” por meio de políticas assistenciais. É preciso, claro, não perder de vista que as políticas econômicas do agronegócio e do extrativismo, assim como a crise climática e ambiental, têm um impacto desproporcional sobre as mulheres rurais. Sem deixar de lado esse aspecto, interessa-nos destacar seu papel fundamental como sujeitos políticos na construção da legitimidade frente ao avanço das economias extrativistas que assolam a América Latina como um todo e a potencialidade de suas propostas de um modo de vida alternativo que incorpore os conceitos de justiça ambiental, socioeconômica e de gênero de forma abrangente. Neste ponto, vale a pena relembrar as reflexões de Ulloa para casos de feminismo territorial na Colômbia em que sugere que as propostas de mulheres rurais, indígenas e afrodescendentes não têm uma origem meramente causal nos contextos de conflito em torno do recursos naturais, mas são produzidos ali mesmo em resposta a isso. Bem aí está o potencial dos feminismos periféricos
Essa dinâmica econômica neo-ibérica, ao reconfigurar a vida das diferentes comunidades locais (sejam indígenas, afrodescendentes ou camponesas), inclui nessas transformações as dinâmicas e relações de gênero. Diante disso, as ações políticas dessas mulheres não visam apenas resistir ou reverter as desigualdades socioambientais criadas e / ou aprofundadas por esses novos processos, mas também articular e enfrentar demandas por justiça de gênero. A capilaridade de suas ações estão inscritas numa lógica inversa àquela que presume a construção de uma etapa superior capaz de unificar a diversidade de suas lutas e, portanto, entendemos que a sua força como parte de um movimento transnacional é polifônica, se constrói a partir das conexões entre formas de resistência às violências patriarcais, coloniais e capitalista. Os feminismos autônomos que emergiram desses contextos cobram protagonismo e aparecem como propostas geopolíticas frente à lógica neoliberal que nos conduziu à crise atual. Compreender os porquês de tantas diferenças e assimetrias é pedagógico, nos permite um melhor diagnóstico das lutas inscritas no campo feminista e a pensar nas razões dos movimentos de mulheres rurais não figurarem com o merecido destaque. A partir de uma longa trajetória de organização e articulação, eles incluem elementos que congregam o comunitário, a despatriarcalização e o anticapitalismo tecendo cotidianamente novos horizontes e utopias. Nos tornar mais próximas deles é um passo necessário.
Caroline Bordalo, doutora em Ciências Sociais pela PUC-RJ e professora do CEFET-RJ. Pesquisa ações coletivas e temas relacionados aos movimentos de mulheres, especialmente na área rural do Brasil.
Mariela Pena, doutora em Antropologia pela Universidad de Buenos Aires e pesquisadora do Conicet (Argentina).
Referências
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MST: https://mst.org.br/
[1] De acordo com o Censo Agropecuário de 2017, a agricultura familiar é responsável por 70% dos alimentos consumidos no Brasil.
[2] O MST é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina.
[3] O MMTR-NE está presente em todos os estados desta região e o segundo possui abrangência nacional abarcando agricultoras, quebradeiras de coco, pescadoras artesanais, ribeirinhas etc., a partir de uma concepção ampliada de campesinato.