Ferrogrão segue modelo de retrocesso na Amazônia
Ferrovia EF-170 MT/PA impactará 48 áreas protegidas, entre terras indígenas e unidades de conservação, e pode fazer o Brasil renunciar à Convenção 169 da OIT
O direito de ser ouvido antes de um grande projeto de infraestrutura ser construído, novamente, torna-se uma questão para povos indígenas e populações tradicionais da Amazônia. Desta vez, as comunidades contestam o projeto de uma ferrovia: a Ferrogrão ou EF-170 MT/PA. Projetada para percorrer mil quilômetros entre Itaituba, no Pará, e Sinop, no Mato Grosso, a ferrovia ligará o porto de Miritituba (PA) à maior região produtora de grãos do país, o nortão mato-grossense.
O governo federal afirma que, mesmo sem consulta, o leilão da obra deve acontecer até outubro de 2021. Com 933 km de extensão, a ferrovia está estimada pelo governo federal em R$ 21,5 bilhões de investimentos ao longo da concessão. A Ferrogrão, tal qual obras que foram leiloadas e licenciadas sem oitivas aos indígenas como a Hidrelétrica de Belo Monte no Pará, é justificada pelo discurso de prioridade para a economia do Brasil. A redução de custos com o frete das safras é o argumento dos defensores.
Para ser leiloada no prazo previsto pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), a obra exigirá mudanças na legislação brasileira. A primeira destas modificações já aconteceu depois da aprovação da lei nº 13.452/2016, que ampliou a faixa de domínio da Rodovia BR-163, a Cuiabá (MT) e Santarém (PA). Esta alteração foi feita para estabelecimento do traçado da ferrovia.
“Ao ser proposta dentro das faixas de domínio da BR-163, os proponentes do projeto afirmam que a ferrovia não trará mais impactos, uma vez que não irá alterar o que já foi alterado pela estrada. O que é altamente contestável. Outro ponto é que o projeto se auto intitula um investimento verde, mas não há muitas explicações no projeto sobre isso”, afirma Paulo Zahan Taques, advogado do Instituto Antônio Augusto de Leverger (IAAL), uma das entidades que contesta a ausência de oitivas aos povos impactados.
Recentemente, o governo federal busca registrar a Ferrogrão como uma obra que evitará emissões de até 77% de CO2 no transporte da safra de grãos. Caso isso ocorra, será possível inclusive vender crédito de carbono com o projeto. Porém, no cálculo apresentado pelo governo federal não está contabilizado o aumento do desmatamento em decorrência da Ferrogão, que será, justamente, nos dois dos estados que representam mais de 61,89% do que foi desmatado na Amazônia em 2020, segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).
A segunda modificação proposta para possibilitar a construção da Ferrogrão segue em análise no Supremo Tribunal Federal (STF). A Medida Provisória 758/216 prevê a redução do Parque Nacional do Jamanxim, no Pará, que fica em uma região líder em queimadas e desmatamentos, segundo o Imazon. Em março, o ministro do STF, Alexandre de Moraes, suspendeu a Lei 13.452/17, originada da MP, que excluía 862 hectares do parque. A decisão final será votada no plenário do STF. Nesta decisão também segue suspenso todo o licenciamento da ferrovia.
Outro possível impacto da Ferrogrão pode afetar o direito dos povos e comunidades tradicionais do país todo. . A construção da ferrovia pode ser um dos propulsores para o Brasil abandonar a Convenção 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT). O artigo 60 deste acordo internacional, do qual o país é signatário desde 2002, prevê a obrigação de realizar consultas prévias, livres e informadas com povos indígenas e demais populações tradicionais afetadas por qualquer projeto, seja do Legislativo ou do Executivo.
Tramita no Congresso Nacional o projeto de lei 177/2021, que propõe que o Brasil deixe de ser signatário da a Convenção 169. O PL está para análise na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional da Câmara dos Deputados. De autoria do deputado federal Alceu Moreira (MDB – RS), a proposta permite que o presidente Jair Bolsonaro abandone a Convenção 169 da OIT.
Se o PL não for aprovado, a adesão do Brasil à Convenção segue automática até setembro de 2032, quando novamente poderá ser revista. Se for aprovado, os indígenas e demais populações tradicionais, como os quilombolas, perdem voz nas decisões sobre a ferrovia e outros projetos que possam ser propostos e afetem seus territórios ou direitos.
O Ministério Público Federal divulgou uma nota sobre a possibilidade do país deixar a Convenção em junho. “A eventual saída do Brasil da Convenção 169 da OIT só demonstraria a nossa incapacidade de lidar com a diversidade que sempre foi uma das nossas principais características como nação. É dizer: ao invés de dialogar com os nossos povos tradicionais, vamos simplesmente calá-los”. A afirmação foi feita pela coordenadora da Câmara de Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais do Ministério Público Federal (6CCR/MPF), Eliana Torelly, durante um webinário no qual foi discutida a importância do tratado internacional para a defesa dos direitos das comunidades tradicionais brasileiras. O evento – promovido pelo MPF em parceria com a Associação Brasileira de Antropologia (ABA) – teve como foco o debate sobre a tramitação do projeto de lei que pretende autorizar o presidente da República a retirar o Brasil do rol de nações que fazem parte da Convenção 169.A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR) e a Associação Nacional dos Procuradores e Procuradoras do Trabalho (ANPT), entidades que congregam e representam os Procuradores e as Procuradoras da República e do Trabalho de todo o país, publicaram nota técnica contra a aprovação do PDL.
No dia 15 de agosto, uma delegação internacional chega ao Brasil para pressionar contra a construção da Ferrogrão. A comitiva é ligada à Internacional Progressista, entidade criada no ano passado pelo senador americano Bernie Sanders e pelo ex-ministro das Finanças da Grécia Yanis Varoufakis, e que reúne políticos, ativistas e celebridades de diferentes países.
Consultas prévias, livres e informadas
O direito de ser ouvido e comunicado sobre os impactos é a principal demanda dos povos indígenas em relação à Ferrogrão. Ao menos cinco nações indígenas reivindicam oitivas, como os povos Munduruku, Kayapó, Apiacá, Terena e Panará. Eles alertam que a ferrovia pode afetar 49 terras protegidas, entre indígenas e unidades de conservação. O impacto mais grave é o aumento do desmatamento na Amazônia. Se forem considerados os impactos sinérgicos da construção de novos portos fluviais, terminais de navegação e silos, essa pressão sobre a Amazônia e o Cerrado aumenta.
Áreas protegidas são fundamentais para a conservação de floresta, segundo estudo da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, publicado em junho de 2021, “Povos Tradicionais e Biodiversidade: Contribuições dos povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais para a biodiversidade, políticas e ameaças”. O artigo dos pesquisadores Antonio Oviedo, do Instituto Socioambiental (ISA), e Juan Doblas, do Inpe, mostra que as terras indígenas são os territórios tradicionais que mais preservam a floresta: apenas 2% da cobertura foi perdida em 33 anos.
A luta para que o direito a consulta seja respeitado fez a Ferrovia EF-170 MT/PA ser um dos temas dos protestos indígenas, que aconteceram em Brasília durante o Levante pela Terra, encontro que durou até o dia 20 de julho e reuniu etnias de todo o Brasil. A Ferrogrão também motivou reuniões entre caciques e representantes dos três poderes.
“Não é apenas uma ferrovia, pois abre precedentes para discutir a necessidade de se ouvir os indígenas e trás junto a necessidade de novas hidrelétricas para gerar a energia que o agronegócio demanda. Eles também não estão discutindo os impactos de mais silos de grãos, desmatamento e a pressão por mineração nas terras indígenas e no entorno.”, diz Alessandra Munduruku, liderança do território mais próximo da área onde será o terminal final da Ferrogrão, em Itaituba, no Pará.
“Mas não vamos desistir dos nossos direitos. Nos reunimos com os ministros do Tribunal de Contas da União e do Supremo Tribunal Federal . Temos esperança de que a lei e os acordos internacionais dos quais o Brasil faz parte não serão desrespeitados”, diz.
Outro lado
Agência Nacional de Transportes Terrestres (ANTT), a proponente da Ferrogrão, defende que as consultas aos indígenas já aconteceram. “É preciso lembrar que a ANTT realizou a Audiência Pública nº 14 de 2017 para que a população e interessados em geral, como um todo, pudessem se manifestar. As sessões públicas presenciais sobre a Ferrogrão foram realizadas em Cuiabá/MT, Belém/PA, Brasília/DF, Itaituba/PA e Novo Progresso/PA, com a presença e a participação efetiva de diversas lideranças indígenas[1]. Durante a audiência pública mencionada foram ouvidas as etnias do Parque Indígena do Xingu, Munduruku, Kayapó, além de outras, tanto nas sessões públicas presenciais da Audiência Pública como em reuniões privadas na ANTT, em Brasília”, respondeu os representantes da ANTT, através de sua assessoria.
“Esse é o problema. Eles acreditam que as audiências são consultas e não é o que diz a lei. Eles deveriam ter realizado visitas aos territórios indígenas. As audiências nem aconteceram, nós protestamos quando descobrimos que muitos não poderiam participar. E mesmo assim eles disseram, em 2019, que o processo tinha acontecido.”, diz o cacique Francisco Munduruku. “Na época nem o traçado da Ferrovia foi apresentado”, conclui.
A ANTT assume que as informações transmitidas na audiência pública estavam incompletas. “À época da audiência ocorrida, não se dispunha de informações concretas para se delimitar quais Terras Indígenas seriam impactadas e, com a maturação desse traçado, foi possível realizar as plotagens e assim determinar quais Terras Indígenas teriam a presunção de serem afetadas. Sobre esse assunto, cabe esclarecer que a delimitação dos povos indígenas participantes do processo de licenciamento ambiental é definido pelos parâmetros da Portaria Interministerial MMA/MC/MJ/MS nº 060/2015, a partir de provocação do órgão licenciador, e encontra-se especificada no Termo de Referência Específico (TRE) da Ferrovia, expedido pela Fundação Nacional do Índio (Funai) à Empresa de Planejamento e Logística (EPL), em setembro de 2019.”, afirma a assessoria da ANTT em nota à reportagem.
Para a ANTT, nem as terras indígenas que estão a menos de 40 quilômetros do traçado dos trilhos serão incluídas no licenciamento ambiental da obra. “Com as informações disponíveis até o momento no processo de licenciamento ambiental, não se presume a ocorrência de afetação às terras indígenas Baú e Menkragnoti, do povo Caiapó, que, segundo análise cartográfica oficial realizada pela Funai (Informação Técnica nº 110/2020/COTRAM/CGLIC/DPDS-FUNAI), estão distantes, respectivamente, 29,91 km e 47,7 km da Ferrogrão.”, diz a nota da Agência.
Os povos que reivindicam o direito à consulta afirmam que o anúncio da Ferrogrão já traz impactos. Desde que começou a ser debatido o projeto, o fluxo de caminhões nas estradas que contornam as aldeias teria duplicado. “Eu imagino quando liberarem esse trem. Toda soja que vem da região de Querência (MT) pelo Xingu vai acabar aqui pela MT-322. Da forma como esta hoje muitos animais já morreram atropelados. Isso também acaba incentivando os produtores a arrendar sítios, e com isso vem os pesticidas e queimadas. E isso tudo sempre impacta nosso território. É isso que precisamos debater.”, reivindica Messias Clemente Rondon, liderança do povo Terena.
Lembranças de horror
Os Terena, originalmente do Mato Grosso do Sul, têm uma história marcada pelos planos nacionais de infraestrutura. A abertura de grandes fazendas e estradas em seus territórios ancestrais os relegou à condição de “povos sem terra” por mais de vinte anos. Eles acabaram perdendo suas terras para esses empreendimentos.
Depois de um processo contra o governo federal, o povo Terena ganhou uma indenização (ainda não paga) de 2 mil hectares de terras demarcadas, em outro estado e bioma, no Norte de Mato Grosso. É nesse novo território, vizinho à área Caiapó e Panará, que eles aguardam com apreensão os desdobramentos sobre a Ferrogrão.
Os Caiapó discordam da ANTT sobre as oitivas e impactos. Em agosto de 2020, um grupo Caiapó parou a BR-163, na altura de Novo Progresso (PA), em protesto contra a ferrovia. Foram cinco dias até que a Advocacia Geral da União (AGU) entrasse com um pedido à Polícia Federal para retirada dos indígenas da rodovia.
“Nossa terra é a mais próxima do trilho e o estudo diz que não vai impactar. Basta olhar e lembrar da história da BR-163 e ver as plantações de soja que já estão beirando a reserva. Imagina com essa Ferrogrão. Já tem agrotóxico matando todos os nossos peixes. Depois desse projeto, os empresários vão vir com mais força e cortar mais floresta. Precisamos ser ouvidos sobre os problemas que já existem e os que ainda irão aparecer.”, reclama Mydjere Kayapó, presidente do Instituto Kabu, organização que reúne 11 aldeias das terras indígenas Baú e Mekrãgnotire.
Segundo as lideranças, há cinco anos os Caiapó tentam debater a Ferrogrão. Em de 2017, o povo Caiapó Mekragnotire enviou um ofício ao Ministério de Transportes, Portos e Aviação Civil solicitando participarem da consulta. Em março de 2021, após descobrirem que a ANTT pediu ao TCU liberação do leilão, novamente uma comitiva indígena visitou Brasília. O grupo formado pelos líderes Munduruku e Caiapó foi recebido pelo ministro Aroldo Cedraz, relator do processo sobre o leilão da Ferrogrão, e pela ministra Ana Arraes, presidente do TCU.
Atualmente, o TCU e o STF são as instâncias que irão definir o futuro da Ferrogrão. Segundo resposta da assessoria do tribunal , dois processos correm sobre a EF-170, ambos de relatoria do ministro Aroldo Cedraz. “O TC 037.044/2020-6 tem por objeto uma representação do Ministério Público Federal acerca de possíveis violações de direitos de povos indígenas no projeto da Estrada de Ferro EF -170 (Ferrogrão). O relator, ministro Aroldo Cedraz, ouvirá o Ministério Público junto ao TCU antes de se pronunciar nos autos. Já no TC 025.756/2020-6 o Tribunal vai analisar a Concessão da EF-170 (Ferrogrão)”, explicou em nota à reportagem.
Nenhum dos processos teve decisão do TCU publicada até o fechamento desta reportagem.
Outros impactos
Além dos indígenas, pescadores e moradores das cidades por onde os trilhos irão passar contestam o projeto. A ação movida pelo IAAL tem como foco grande parte dos povos indígenas e das comunidades tradicionais impactadas, entre estes os Caiapó de Mato Grosso, Apyaká, Panará, Terena e a colônia de pescadores Z53 do Pará, entre outros. “Além do impacto nas comunidades, muitos locais de importância histórica e cultural serão literalmente rasgados pelos trilhos”, explica o representante jurídico do IAAL, Paulo Taques.
Em maio, o Ministério Público Federal também publicou um pedido reforçando a necessidade das oitivas.
Pró-ferrovia
A obra segue movimentando polêmicas. Apesar de tantas vozes contrárias, a Ferrogrão conta com um defensor de peso, o presidente Jair Bolsonaro e membros do primeiro escalão do governo. No início de junho, o ministro da infraestrutura, Tarcísio de Freitas, declarou durante o Fórum Brasil de Investimentos 2021 que tem segurança jurídica para leiloar a ferrovia.
“[A Ferrogrão] Tem o poder de jogar a tarifa para baixo e tornar os nossos produtores extremamente competitivos em relação aos nossos pares ao redor do mundo. E a ferrovia faz sentido porque vai atender um estado que vai produzir em 9 anos 120 milhões de toneladas de grãos por ano. Quando nós começamos a estruturar esse projeto o Mato Grosso produzia 50 milhões de toneladas, hoje produz 70 [milhões de toneladas] três anos depois”, afirmou.
O projeto
A ferrovia AEF-170/MT/PA, a Ferrogrão – como foi denominada pelo grupo Estação da Luz Participações Ltda (EDLP), proponente dos estudos, integra o Programa de Parcerias de Investimento e a criação do novo corredor ferroviário de exportação do Brasil pelo Arco Norte. A proposta é fazer a conexão do Porto de Miritituba, em Itaituba, no Pará, com Sinop, em Mato Grosso, percorrendo 933 quilômetros com trilhos.
Estão previstos, também, o ramal de Santarenzinho, entre Itaituba e Santarenzinho, no município de Rurópolis/PA, com 32 km, e o ramal de Itapacurá, com 11 km.
Segundo a ANTT, o investimento público previsto é de R$ 6,2 bilhões, deste montante o investimento para custos socioambientais seriam de R$ 756 milhões, o que inclui obtenção de licenças e compensações socioambientais.
Juliana Arini é jornalista
[1] Todos os registros das contribuições e documentos dos estudos técnicos podem ser encontrados em: