FMI: a Etiópia como prova
Conhecido em todo o mundo ao demitir-se do Banco Mundial, Nobel de Economia no ano passado, Joseph Stiglitz relata, num novo livro, suas disputas com o Fundo Monetário. O caso da Etiópia é especialmente ilustrativoJoseph E. Stiglitz
No dia em que assumi minhas funções de primeiro vice-presidente e de economista-chefe do Banco Mundial, 13 de fevereiro de 1997, o que atraiu meu olhar assim que entrei nos amplos locais, esplêndidos e modernos, de sua sede central, Rua 19, em Washington, foi o lema “Nosso sonho: um mundo sem pobreza”. Numa espécie de átrio de treze andares, ergue-se uma estátua – um menino conduzindo um velho, cego – que celebra a erradicação da oncocercose. (Antes que o Banco Mundial, a Organização Mundial da Saúde e outras instituições unissem forças para combatê-la, milhares de pessoas perdiam a visão todos os anos na África, devido a essa doença curável.) Do outro lado da rua, ergue-se outro monumento, esplêndido, dedicado à riqueza pública: a sede do Fundo Monetário Internacional. Em seu interior, o átrio de mármore, ornamentado por uma flora luxuriante, lembra aos ministros das Finanças em visita que estão no centro da fortuna e do poder.
Essas duas instituições, que freqüentemente a opinião pública confunde, apresentam fortes contrastes: diferem por suas culturas, por seus estilos e por suas missões. Uma se consagra à erradicação da pobreza; a outra, à manutenção da estabilidade mundial. Ambas enviam equipes de economistas, em missões de três semanas, mas o Banco Mundial fez grandes esforços para instalar uma parte importante de seus membros no país que tenta ajudar. O FMI, geralmente, só tem no local um único “representante residente”, com poderes limitados. Seus planos, de modo geral, são ditados por Washington e redigidos durante as rápidas missões de altos dirigentes. Desde que descem do avião, mergulham nos números do Ministério das Finanças e do Banco Central. Hospedam-se confortavelmente em hotéis de cinco estrelas das capitais.
A lógica das cinco estrelas
Quem vem das capitais vê, com seus próprios olhos, que o abismo social aprofundou-se e o número de miseráveis aumentou
A diferença não é meramente simbólica: não se pode aprender a conhecer e a gostar de um país sem o conhecer. Não se deve ver o desemprego como uma simples estatística, como uma “enumeração de cadáveres” – vítimas não intencionais da guerra contra a inflação ou pelo pagamento aos bancos ocidentais. Os desempregados são pessoas de carne e osso, têm famílias, e todas essas vidas são dolorosamente afetadas, às vezes destruídas, pelas medidas econômicas que os especialistas estrangeiros recomendam, ou impõem – no caso do FMI. A guerra tecnológica moderna é concebida para suprimir todo contato físico: as bombas são lançadas de uma altitude de 15 mil metros para que o piloto não “ressinta” o que faz. Com a moderna gestão da economia, é a mesma coisa. Do alto de um hotel de luxo, impõem-se, sem piedade, políticas sobre as quais se pensaria duas vezes caso se conhecessem os seres humanos cujas vidas vão ser arrasadas.
Quem vem das capitais, vê com seus próprios olhos o que dizem as estatísticas nas aldeias da África, do Nepal, de Mindanao, da Etiópia: o abismo entre os pobres e os ricos aprofundou-se; o número de pessoas vivendo em pobreza absoluta – menos de um dólar por dia – aumentou. (…)
As mentalidades não mudam em um dia: isso é igualmente verdadeiro para os países ricos e para o mundo em desenvolvimento. Conceder a independência às colônias (em geral, preparando-as bem pouco para isso) não faz seus antigos senhores mudarem de opinião: sempre se consideram como “os que sabem”. Nunca deixaram de enfatizar que os novos países independentes devem confiar neles e pôr em prática seus conselhos. Depois de tantas promessas não cumpridas, tantas traições, bem que se poderia acreditar que seria diferente. Mas, na realidade, esses países continuaram a seguir os conselhos que lhes eram dados por causa do dinheiro que os acompanhava, e não por confiarem, verdadeiramente, nessas receitas. O pós-guerra viu desaparecer a influência das antigas potências coloniais, mas a mentalidade colonialista permaneceu – a certeza de saber melhor que os países em desenvolvimento o que é bom para eles.
Meus projetos, meus limites
O que poderíamos fazer por todos esses habitantes do planeta – 1,2 bilhão – que sobrevivem com menos de um dólar por dia?
Os Estados Unidos, que se tornaram potência dominante no cenário econômico mundial, tiveram, em matéria de colonialismo, uma herança bem mais leve. Mas penderam para o mesmo lado, menos em virtude de um “destino manifesto”, que os teria empurrado para o expansionismo, do que em razão da guerra fria, durante a qual os princípios da democracia foram vilipendiados ou ignorados (…).
Na véspera de minha entrada para o Banco Mundial, dei a última entrevista coletiva como presidente do Council of Economic Advisers (Conselho de Assessores Econômicos). Como tínhamos um bom controle da economia interna, eu considerava que o maior desafio para um economista era, daí em diante, o problema da pobreza no mundo, que se agravava. O que poderíamos fazer por todos esses habitantes do planeta – 1,2 bilhão – que sobreviviam com menos de um dólar por dia, ou por todos aqueles – 2,8 bilhões, mais de 45% da população mundial – que dispunham de menos de dois dólares por dia? O que poderia eu fazer para que se realizasse o sonho de um mundo sem pobreza? E, primeiramente, o sonho mais modesto de um mundo em que houvesse menos pobreza?
Estabeleci três tarefas: determinar as estratégias mais eficazes para estimular o crescimento e reduzir a pobreza; trabalhar, com os governos dos países em desenvolvimento, por sua implantação; e advogar, com todas as minhas forças, em favor dos interesses e preocupações do mundo em desenvolvimento junto aos países desenvolvidos (…). Sabia que essas tarefas eram difíceis, mas nunca poderia imaginar que um dos piores obstáculos com os quais se chocavam os países em desenvolvimento tivesse sido criado pelo homem, sem a menor necessidade – e que ele estava bem na minha frente, do outro lado da rua: em nossa instituição “irmã”, o FMI. Realmente, pensava que, nas instituições financeiras internacionais ou nos governos que as sustentavam, nem todos os responsáveis tivessem por prioridade absoluta eliminar a pobreza, mas acreditava que houvesse um debate aberto sobre as estratégias cujo fracasso era evidente sob tantos aspectos, a começar pelos pobres. Quanto a esse ponto, eu ficaria decepcionado.
Um presidente esclarecido e boicotado
Sabia que as tarefas eram difíceis, mais não imaginava que o maior obstáculo estivesse na “instituição-irmã” à nossa frente
Após quatro anos em Washington, já me acostumara ao mundo estranho das burocracias e da política. Mas foi ao ir à Etiópia, um dos países mais pobres do mundo, em março de 1997, apenas um mês após haver assumido minhas funções no Banco Mundial, que, de repente, mergulhei no espantoso universo político-aritmético do FMI. A Etiópia tinha uma renda per capita de 110 dólares por ano e havia sofrido uma série de calamidades provocadas pela seca e pela fome que havia matado dois milhões de pessoas. Ia encontrar-me com o primeiro-ministro, Meles Zenawi, que, durante dezessete anos, dirigira a guerrilha contra o sangrento regime marxista de Mengistu Hailé Mariam. Suas forças o derrotaram em 1991; depois disso o governo dedicou-se à difícil tarefa da reconstrução. Médico por formação, Meles havia estudado economia na Inglaterra, na Open University, porque sabia que, para libertar seu país de séculos de pobreza, seria preciso, pelo menos, uma reviravolta econômica. Demonstrava um conhecimento de economia – e, digamos, uma criatividade – que lhe teria permitido dominar as aulas em todos os meus cursos de universidade. (…)
Meles associava a essas qualidades intelectuais uma integridade sem falhas: ninguém punha em dúvida sua honestidade, e havia poucas acusações de corrupção contra seu governo. (…)
Quando o fui ver, em 1997, Meles estava envolvido numa dura controvérsia com o FMI, que havia suspendido os empréstimos. Os resultados “macroeconômicos” da Etiópia – sobre os quais o FMI se deveria concentrar – não teriam podido ser melhores. Não havia nenhuma inflação. Na verdade, os preços baixavam. A produção aumentava regularmente desde que Meles havia conseguido expulsar Mengistu1. Ele demonstrava que, com uma boa política, mesmo um país africano pobre poderia ter um crescimento econômico sustentado. Após vários anos de guerra e de reconstrução, a ajuda internacional começava a voltar (…). Mas, Meles tinha problemas com o FMI. E o que estava em jogo não eram apenas os 127 milhões de dólares trazidos pelo Fundo no âmbito de sua “contribuição para um ajuste estrutural reforçado” (FASR) – empréstimos a taxas muito subsidiadas para ajudar os países muito pobres – , mas também os financiamentos do Banco Mundial.
As notas insensíveis
O FMI sempre perde de vista a preocupação fundamental. Mesmo com o desemprego em dois dígitos há anos, ele dará nota “A” se o orçamento estiver equilibrado e a inflação sob controle
O FMI desempenha um papel particular na ajuda internacional. Supostamente, fiscaliza a situação macroeconômica de cada país recebedor e assegura-se de que este não gasta mais do que pode. Porque, se o fizer, dificuldades inevitáveis devem ser previstas. Um país pode viver tomando emprestado no curto prazo, mas a hora da verdade acabará chegando e haverá crise. O FMI é particularmente atento à inflação. Quando o Estado gasta mais do que arrecada com entradas fiscais e ajuda externa, haverá quase sempre inflação, especialmente se seu déficit for financiado por meio da emissão de moeda. (…)
Um país pode ter uma inflação baixa com um crescimento zero e um desemprego elevado. Num caso desses, a maioria dos economistas irá considerar sua situação macroeconômica catastrófica. Em sua opinião, reduzir a inflação não é um fim em si, mas um meio a serviço de outro fim. Se a inflação preocupa tanto, é porque, freqüentemente, uma inflação alta demais acarreta um crescimento baixo, e este, um desemprego maciço. Mas o FMI, ao que parece, sempre confunde fins e meios, e perde de vista a preocupação fundamental: mesmo que o desemprego esteja em dois dígitos há anos, ele dará nota “A” [a melhor nota] a um país como a Argentina, se seu orçamento aparecer equilibrado e sua inflação sob controle!
Se um país não atende a alguns critérios mínimos, o FMI suspende sua ajuda e, quando o faz, outros doadores costumam imitá-lo. O Banco Mundial e o FMI, compreensivelmente, só emprestam a países cuja situação macroeconômica é saudável. (…)
O social ou o financeiro?
Se a Suécia conceder uma ajuda financeira à Etiópia, para que construa escolas, a lógica do FMI impõe conservar o dinheiro na forma de reservas
Não só as bases econômicas da Etiópia eram saudáveis, mas o Banco Mundial tinha provas diretas da competência do governo e de seu envolvimento em favor dos pobres. A Etiópia havia elaborado uma estratégia de desenvolvimento rural voltada para os pobres, particularmente os 85% da população que vivia no campo. Havia reduzido de forma considerável suas despesas militares – iniciativa extraordinária, para um governo que chegou ao poder pelas armas – porque seus dirigentes sabiam que o dinheiro gasto em armamentos não iria para a luta contra a pobreza. Tratava-se, evidentemente, do tipo de governo que a comunidade internacional deveria ter ajudado. Mas o FMI havia suspendido seu programa de empréstimos à Etiópia, a despeito de seus bons resultados macroeconômicos, porque se preocupava – dizia ele – com o equilíbrio orçamentário do país.
O governo etíope tinha duas fontes de receita: os impostos e a ajuda externa. O orçamento de um Estado é equilibrado quando as receitas cobrem as despesas. Como em muitos países em desenvolvimento, boa parte da receita da Etiópia vem da ajuda externa. O FMI preocupava-se com o fato de que, se essa ajuda viesse a se esgotar, o país teria problemas. Por conseqüência, afirmava, só se poderia considerar sólido o equilíbrio orçamentário da Etiópia se suas despesas não ultrapassassem a arrecadação fiscal.
Tudo para pagar juros
O presidente declarou-me que não havia lutado durante dezessete anos para ter um burocrata internacional a lhe dizer que não podia construir escolas e hospitais
A lógica do FMI coloca um problema evidente: implica que, se obtiver ajuda para realizar alguma coisa, um país pobre nunca poderá gastar o dinheiro. Se, por exemplo, a Suécia conceder uma ajuda financeira à Etiópia para que construa escolas, a lógica do FMI impõe a esta última conservar esse fundo em suas reservas. (…) Mas não é para isso que os doadores internacionais concedem ajuda. Na Etiópia, os doadores, que trabalhavam independentemente e não tinham nenhuma obrigação para com o FMI, queriam que novas escolas e novos hospitais fossem construídos, o que era também a intenção do governo. Meles não mediu suas palavras: declarou-me que não havia lutado ferrenhamente, durante dezessete anos, para ter um burocrata internacional a lhe dizer que não podia construir escolas e hospitais para seu povo quando havia conseguido que doadores financiassem sua construção.
O ponto de vista do FMI não se explicava em função de dúvidas sobre o futuro, a longo prazo, do projeto. Viram-se países utilizarem os dólares da ajuda para construir escolas ou hospitais e, depois, acabado o dinheiro da ajuda, não terem meios de garantir seu funcionamento. Os doadores haviam tomado consciência do problema e o levavam em conta em seus projetos, na Etiópia como em outros lugares. Mas o que pretendia o FMI no caso etíope ia muito além dessa preocupação: afirmava que a ajuda externa era demasiado instável para que se pudesse contar com ela. Eu considerava que a posição do FMI não tinha o menor sentido, e não só por causa de suas conseqüências absurdas. Sabia que, muitas vezes, a ajuda é infinitamente mais estável que a arrecadação fiscal, que pode variar consideravelmente, segundo a situação econômica. Voltando a Washington, pedi a meus colaboradores que verificassem as estatísticas e eles me confirmaram: a ajuda externa era mais estável que a arrecadação fiscal. Portanto, se quisessem aplicar de forma lógica o raciocínio do FMI, a Etiópia e os outros países em desenvolvimento deveriam prever seu orçamento contando, sobretudo, com a ajuda externa, e não com o produto dos impostos. E, se não tivessem o direito de inserir na coluna da receita o dinheiro da ajuda, nem o dos impostos, todos os países estariam numa posição muito ruim!
Manter a dívida, continuar dependente
Os EUA e o FMI protestaram contra o pagamento antecipado da dívida. Não aceitavam o fato da Etiópia ter decidido sem pedir autorização
Ora, o raciocínio do FMI era ainda mais absurdo. Há várias reações apropriadas para enfrentar a instabilidade das receitas: por exemplo, constituir reservas suplementares, ou manter flexibilidade nas despesas – se as receitas, de onde quer venham, diminuem, e se não há reservas onde se abastecer, o Estado deve estar preparado para gastar menos. Mas a ajuda que recebe um país pobre, como a Etiópia, é, em sua maior parte, intrinsecamente flexível. Se não recebe dinheiro para construir uma escola a mais, o país não a constrói. Os dirigentes do Estado etíope tinham consciência do problema. Compreendiam que era preciso refletir sobre o que poderia acontecer se as receitas (impostos ou ajuda) diminuíssem, e tinham concebido planos para enfrentar essas eventualidades. O que não compreendiam – e eu tampouco – é porque o FMI não conseguia ver a lógica da posição deles. E o que estava em jogo era importante: escolas e hospitais para alguns dos habitantes mais pobres do planeta.
Além dessa divergência quanto à maneira de levar em conta a ajuda externa, também fui imediatamente envolvido num outro desacordo entre o FMI e a Etiópia. Esta, usando suas reservas, antecipara o pagamento de um empréstimo que havia tomado junto a um banco norte-americano. Economicamente, tal decisão era muito sensata. A despeito da qualidade da garantia (um avião), a Etiópia pagava uma taxa de juro muito mais alta do que aquela que recebia por suas reservas. Também eu a teria aconselhado o pagamento (…). Os Estados Unidos e o FMI protestaram contra esse reembolso antecipado. Não era a lógica da decisão que criticavam, mas o fato da Etiópia a haver tomado sem o aval do FMI. Ora, por que um Estado soberano teria que pedir a autorização do FMI para cada decisão que toma? (…)
“Procedimento administrativo” ou recolonização?
A ingerência parecia muito com uma nova forma de colonialismo. Para o FMI, era apenas um procedimento administrativo normal
Durante anos, no quartel-general do FMI, à Rua 19, em Washington, se dissera e se repetira: “responsabilidade financeira” e “nós avaliamos pelos resultados”. Os resultados das políticas seguidas pela Etiópia, e em grande parte concebidas por ela própria, deveriam ter convencido que o país era capaz de tomar o destino em suas mãos. Mas o FMI considerava que os países aos quais enviava dinheiro tinham obrigação de submeter-lhe tudo o que pudesse ter alguma relação com o empréstimo; se não o fizessem, dariam motivo suficiente para a suspensão do empréstimo, fosse isso uma iniciativa razoável ou não. Para a Etiópia, essa vontade de ingerência se parecia muito com uma nova forma de colonialismo. Para o FMI, tratava-se apenas de um procedimento administrativo normal.
Havia um outro ponto de atrito nas relações Etiópia-FMI: a liberalização dos mercados financeiros etíopes. O dinamismo dos mercados financeiros é o sinal distintivo do capitalismo, mas em nenhum outro setor é maior a distância entre países desenvolvidos e menos desenvolvidos. O conjunto do sistema bancário da Etiópia (medido, por exemplo, pelo volume de seus ativos) é um pouco inferior ao da cidade de Bethesda, no Estado de Maryland, um pequeno subúrbio da periferia de Washington que conta com 55.277 habitantes. O FMI queria não só que a Etiópia abrisse seus mercados financeiros à concorrência ocidental, como também que cindisse seus principais bancos em vários pedaços. Num mundo em que algumas mega-instituições financeiras norte-americanas – como o Citibank e o Travelers, ou a Manufacturer Hanover e a Chemical – declaram que fizeram a fusão para poder participar da concorrência de forma eficiente, um estabelecimento do porte do North East Bethesda National Bank não tinha, é evidente, nenhum meio de competir com um gigante planetário do estilo Citibank. (…)
Entregar o sistema bancário, para “maior eficiência”
Queriam que a Etiópia não só abrisse seus mercados financeiros à concorrência ocidental como também que cindisse seus bancos em vários pedaços
O FMI queria mais que a mera abertura do sistema bancário à concorrência estrangeira. Pretendia “fortalecer” o sistema financeiro, criando um mercado de adjudicação para as obrigações do Tesouro do Estado etíope – reforma que, por mais desejável que pudesse ser em inúmeros países, não tinha nada a ver com o nível de desenvolvimento da Etiópia. Também queria que esta “liberalizasse” seu mercado financeiro, isto é, deixasse as forças do mercado determinarem livremente as taxas de juros – o que os Estados Unidos e a Europa ocidental não fizeram até a década de 70, época em que seus mercados, e o necessário aparelho de regulação, eram infinitamente mais desenvolvidos.
O FMI confundia os fins com os meios. Um dos primeiros objetivos de um bom sistema bancário é fornecer créditos, mediante condições interessantes, a pessoas que os pagarão. Em um país predominantemente rural, como a Etiópia, é importante que os camponeses pobres tenham acesso ao crédito em condições razoáveis para a compra de sementes e adubo. Assegurar-lhes isso não é uma tarefa fácil. Mesmo nos Estados Unidos, em fases cruciais de seu desenvolvimento, quando a agricultura era importante, o Estado desempenhou um papel capital para fornecer o tipo de crédito necessário.
O sistema bancário etíope era, pelo menos à primeira vista, muito eficaz, já que a diferença entre o saldo credor e saldo devedor era muito inferior à de outros países em desenvolvimento que haviam seguido os conselhos do FMI. Mas o Fundo não estava satisfeito: considerava que as taxas de juro deviam ser determinadas livremente pelas forças dos mercados internacionais, fossem esses mercados competitivos ou não. Para o FMI, liberalizar o sistema financeiro era um fim em si. Sua crença ingênua nos mercados o persuadia de que um sistema liberalizado diminuiria as taxas de juro dos empréstimos e, portanto, aumentaria os fundos disponíveis. Estava tão seguro de que sua posição dogmática era correta, que tinha pouco interesse em examinar as experiências reais.
Que os agricultores paguem mais aos bancos
O Fundo não estava satisfeito. Queria que as taxas de juros fossem ditadas livremente pelas forças dos mercados internacionais
A Etiópia tinha excelentes motivos para resistir ao FMI, quando este exigia que “abrisse” seu sistema bancário. Tinha visto o que se passara em um de seus vizinhos da África oriental – o Quênia – que havia cedido. O FMI insistira para que esse país “liberalizasse” o mercado financeiro, persuadido de que a concorrência entre os bancos iria provocar a queda das taxas de juro. Os resultados foram catastróficos. A medida fez-se acompanhada pelo crescimento muito rápido de bancos de negócios indígenas, numa época em que a legislação bancária e a fiscalização dos bancos eram inadequadas, com os resultados previsíveis: quatorze falências somente nos anos 1993 e 1994. Na prática, as taxas não caíram, mas aumentaram. O governo etíope, compreensivelmente, foi cuidadoso.
Preocupado em elevar o nível de vida no setor rural, temia que a liberalização tivesse um efeito devastador sobre sua economia. Os camponeses, que até então haviam conseguido tomar dinheiro emprestado, iriam ficar sem poder comprar as sementes, e depois o adubo, porque não teriam crédito ou seriam obrigados a pagar taxas de juro mais altas, o que dificilmente poderiam fazer. Falamos de um país devastado pelas calamidades da seca que disseminou a fome. Seus dirigentes não queriam piorar as coisas. Os etíopes temiam que o conselho do FMI acarretasse uma queda na renda dos camponeses, o que iria exacerbar uma situação já crítica.
Aos que desobedecem, adeus
Vendo a Etiópia reticente em ceder, o FMI deu a entender que o governo não se empenhava com seriedade no caminho da reforma e suspendeu as operações
Vendo a Etiópia reticente em ceder a suas exigências, o FMI deu a entender que o governo do país não se empenhava com seriedade na via da reforma, e suspendeu as operações. Felizmente, outros economistas do Banco Mundial e eu conseguimos persuadir a direção do Banco de que aumentar nossos empréstimos à Etiópia seria uma boa decisão. (…) O Banco Mundial triplicou seus empréstimos, ainda que tenham sido necessários meses para o FMI, enfim, rever suas posições. (…)
Aprendi que se precisava de tempo e esforços consideráveis para produzir alguma mudança, mesmo internamente, numa burocracia internacional. Essas organizações são opacas, sem transparência: não só a circulação da informação de dentro para fora é muito insuficiente, como talvez seja mais insuficiente ainda no outro sentido, tal é a dificuldade para as informações externas penetrarem em seu interior. E a opacidade constitui também a dificuldade para que a informação vinda da base da organização chegue até a cúpula.
O confronto (…) me ensinou muito sobre o modo como funciona o FMI. Seria possível demonstrar claramente que estava errado quanto à liberalização dos mercados financeiros e quanto à posição macroeconômica da Etiópia, mas seus economistas deviam seguir seu próprio caminho. Não buscavam opiniões de fora e não escutavam os outros, por mais informados e desinteressados que fossem. (…)
A foto que revela o papel do Fundo
Ouvir as reflexões dos “países clientes” sobre assuntos como a estratégia do desenvolvimento ou a austeridade orçamentária não interessa muito ao FMI que, com demasiada freqüência, se dirige a eles no tom do senhor colonial. Uma imagem pode valer mil palavras. E uma foto, tirada de surpresa em 1998 e mostrada no mundo inteiro, ficou gravada no espírito de milhões de pessoas, particularmente daquelas das antigas colônias. O diretor-geral do FMI, Michel Camdessus, um ex-burocrata do Tesouro francês, baixo e bem vestido, que outrora se dizia socialista2, está em pé, com olhar severo e braços cruzados, acima do presidente indonésio sentado e humilhado. Este, impotente, se vê obrigado a entregar a soberania econômica de seu país ao FMI em troca da ajuda de que a Indonésia necessita. No final das contas e paradoxalmente, uma boa parte desse dinheiro não serviu para ajudar a Indonésia, mas para salvar seus credores – que pertenciam ao setor privado das “potências coloniais”. (Oficialmente, a “cerimônia” era a assinatura de uma carta de acordo – seus termos são ditados pelo FMI, mas, por artifício, faz-se como se o “protocolo de intenções” venha do governo em questão!)
Camdessus afirma que a foto é injusta: não percebera que estava sendo tirada. Mas é justamente essa a questão: trata-se exatamente da atitude que, nos contatos habituais, longe das câmeras e dos jornalistas, adotam os agentes do FMI – do diretor-geral ao burocrata do mais baixo escalão. (…) A atitude do FMI, como a de seu chefe, era clara: ele era a fonte viva da sabedoria, o detentor de uma ortodoxia demasiado sutil para ser compreendida no mundo em desenvolvimento – mensagem que ele disparava com muita freqüência. Na melhor das hipóteses, haveria ali um membro da elite – um ministro das Finanças, ou o diretor de um banco central – com quem o FMI poderia, eventualmente, ter um diálogo sensato. Fora desse círculo, nem pensar em tentar discutir: não valia a pena. (…)