Fogo é usado como arma de expulsão de povos e comunidades
Dossiê mostra relação intrínseca entre desmatamento, grilagem e incêndios. O fogo é usado como arma de expulsão de comunidades de seus territórios para defender os interesses do agronegócio
“Tudo que a gente tinha foi queimado. Foi aquele alvoroço, as pessoas tentando salvar o que podia, e os pistoleiros atirando também. Dois dias depois, eles voltaram e queimaram o restante. Fizeram muita tortura na casa de um idoso, que um dia depois infartou, uma mulher teve um derrame por conta de todo o terror. Mas não temos como ir para outro lugar, voltamos e resistimos. Estamos construindo tudo de novo, devagarinho, pois ficamos até sem alimentos”.
O relato acima é do camponês Melquisedek Gomes da Silva, da Comunidade Jaqueira, situada a 13 quilômetros do município de Timbiras, no Maranhão. O ato criminoso ocorreu no dia 13 de agosto de 2019. De acordo com informações da comunidade e da Comissão Pastoral da Terra (CPT), três homens com uniformes da empresa Agromaratá atearam fogo nas casas – sendo a do Melke a primeira incendiada –, em duas farinheiras e em toda a estrutura para produzir a farinha, além de queimar alimentos como sacos de milho, arroz e outros produtos que as famílias haviam cultivado nas comunidades Santa Maria e Jaqueira. “Eles andavam sempre armados, atirando nas árvores, para o alto, na porta da casa da gente”, relembra o trabalhador.
Após esse primeiro episódio, no dia 15, os jagunços retornaram à localidade e novamente o terror tomou conta. Segundo a CPT, pelo menos 36 casas foram incendiadas, o que resultou em cerca de 450 famílias sem moradia e sem as suas plantações. Esses fatos narrados não são recentes, entretanto, a comunidade sofre com tentativas de expulsão do território, ameaças de morte, intimidações, matança de animais, queima de plantações e de suas moradias desde o ano de 2004. Resistir e sobreviver a todos esses tipos de violências e violações há quase duas décadas nunca foi tarefa fácil: “mesmo com isso as pessoas decidiram continuar no território e resistir. A terra é nossa, pois somos nós que vivemos lá o tempo todo, sempre trabalhando e tirando o nosso sustento”, atesta Melk.
Os usos do fogo
Ao relembrar a luta pela permanência na Comunidade Jaqueira, Melk Gomes afirma que a primeira violência sofrida pelas famílias foi a queima dos barracos. Esse ato criminoso, no qual o fogo é utilizado como uma arma de expulsão contra os povos e comunidades do campo, está presente em inúmeras situações conflituosas registradas pela Pastoral da Terra ao longo das quase cinco décadas de trabalho junto a essas populações.
“Os invasores de terras públicas, muitas das quais tradicionalmente ocupadas por povos indígenas e comunidades quilombolas e tradicionais, não hesitam em realizar ataques com fogo para apropriar-se dessas terras e saquear seus bens naturais. […] Nesse processo, veem o fogo ser usado contra suas casas, roças, barracões comunitários e áreas de uso comum, como forma de aterrorizá-los e expulsá-los de seus territórios”, analisam Diana Aguiar, Ginno Pérez e Valéria Santos em texto intitulado “Fogo como arma contra povos e comunidades”, presente na última do relatório Conflitos no Campo Brasil.
Outra problemática enfrentada pelas comunidades do campo são as narrativas e acusações sobre a responsabilidade dos incêndios florestais, como a do próprio presidente Bolsonaro (sem partido) na abertura da Assembleia da ONU no ano passado. Valéria Santos, coordenadora editorial do “Dossiê Agro é Fogo: grilagens, desmatamento e incêndios na Amazônia, Cerrado e Pantanal”, lançado em abril de 2021, explica que é necessário diferenciar os usos do fogo, como as queimadas e os incêndios: “O fogo secularmente tem sido usado pelas comunidades, tanto para práticas relacionadas a sua cultura, quanto para o preparo das roças e dos alimentos. O fogo usado pelas comunidades tradicionais tem uma lógica ancestral e é manejado de forma responsável e controlada, tanto que há mais de 500 anos povos indígenas e comunidades tradicionais brasileiras o utilizam nas roças de toco, que tem como um dos elementos de preparo do solo o fogo, são áreas que continuam a conservar todas as características ecológicas”.
Em contraponto, como apresentado na publicação, há o “fogo capitalista”, que, de acordo com Santos, é de cunho criminoso e faz parte do ciclo da grilagem de terras e desmatamento na expansão da fronteira agrícola. “A gente tem observado que onde há conflito e a expansão da mineração, também há o desmatamento e os incêndios. E identificamos a presença do fogo de duas formas: tanto o incêndio florestal criminoso quanto os incêndios utilizados contra as pessoas e suas casas, com o objetivo de expulsar essas pessoas desses lugares”.
Incêndios, desmatamento e grilagem
Nos últimos anos, o desmatamento na Amazônia tem atingido recordes, como em 2019 (10.129 km²) e em 2020 (11.088 km²), em relação a toda década anterior, de acordo com análise no relatório da CPT. E o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) aponta que 48,1% dos focos de queimadas na Amazônia estão associados ao desmatamento recente. O trabalhador Melk observa a relação entre esses elementos no município em que vive. “Hoje, em nossa região, está um desmatamento louco, por todo lado, os grileiros estão destruindo tudo, até as nascentes, que estão aterrando tudo”.
Esse processo de destruição da vegetação em terras públicas, sendo, em sua maioria, devolutas e tradicionalmente ocupadas por povos e comunidades, visa à consolidação da grilagem. Por isso, a análise “Fogo como arma contra povos e comunidades” aponta que “desde o princípio, com a perspectiva de posterior regularização fundiária sobre as terras griladas, ou mesmo com a conivência dos Cartórios de Imóveis, e com a anistia do desmatamento ilegal, mesmo sobre áreas de reserva legal obrigatória de imóveis rurais já regularizados. É um ciclo histórico de desmatamento, fogo, grilagem e anistia, baseado na certeza da impunidade, e aprofundado por um governo que desmonta os órgãos de fiscalização e monitoramento e arma as classes proprietárias rurais para avançar com a pistolagem e conflitos no campo”.
Os municípios de Novo Progresso e Itaituba, no sudoeste do Pará, se tornaram protagonistas do chamado Dia do Fogo, ocorrido em 10 de agosto de 2019, data que remete a uma ação orquestrada e criminosa. Essa é uma região cortada pela BR-163, intenso caminho de escoamento da soja, mas que também é considerada como conservada por conta de unidades de proteção ambiental e parques. A soma de todos esses elementos torna esse espaço alvo de muita cobiça, que se revela no desmatamento ilegal e nos conflitos socioambientais.
Várias lideranças camponesas estão ameaçadas de morte nestes municípios e outras têm enfrentado incêndios criminosos em seus territórios. “A causa das ameaças de morte está diretamente relacionada à luta por direitos e garantias fundamentais que não chegam por meio do Estado, e à luta dos povos para sobrevivência e em defesa da Terra e Território. Essas lideranças são vistas como um obstáculo para a grilagem de terras, para o desmatamento e outros interesses que visam à destruição da Amazônia em nome do lucro e da ganância do capitalismo. Além do desmatamento e da grilagem, a região também tem sido palco da implementação de grandes projetos, como portos, já em curso; hidrelétricas; ferrovia (ferrogrão) e mineração”, explica a CPT presente no estado do Pará, que ainda ressalta os ataques de madeireiros e fazendeiros inclusive contra os órgãos de fiscalização ambiental, como ICMBio e Ibama.
Fogo proibido?
No último dia 29 de junho, Bolsonaro editou, novamente, um decreto que proíbe, por 120 dias, alguns tipos de queimadas no Brasil, como em práticas agropastoris e florestais. A atividade fica liberada na prevenção e combate a incêndios realizados ou supervisionados pelas instituições públicas responsáveis pela prevenção e pelo combate aos incêndios florestais no país; em práticas agrícolas de subsistência executadas pelas populações tradicionais e indígenas; e no controle fitossanitário, desde que autorizado pelo órgão ambiental competente.
O Instituto Socioambiental (ISA) relembra que em julho do ano passado o governo federal também editou um decreto proibindo as queimadas em todo o país e, mesmo assim, “o Brasil registrou o maior número de focos da última década, de acordo com o Programa Queimadas. Frente ao corte de 60% no orçamento federal para ações de monitoramento a queimadas em 2021, a tendência é que novos recordes sejam registrados”. A avaliação de Valéria Santos também segue no mesmo sentido: “O decreto não traz novidades e não mostra ações efetivas de combate aos incêndios criminosos. Ao contrário, edita o decreto em meio ao sucateamento dos órgãos ambientais de fiscalização (Ibama e ICMBio) e monitoramento (Inpe)”.
Para a Human Rights Watch, o presidente brasileiro, desde que assumiu, em 2019, apresenta apenas “promessas vazias para proteger a Amazônia”. A avaliação da organização internacional foi tornada pública durante a Cúpula de Líderes sobre o Clima. “O governo Bolsonaro sabotou agências ambientais, acusou sem provas organizações da sociedade civil de crimes ambientais e enfraqueceu os direitos de povos indígenas. Essas políticas têm contribuído para o aumento das taxas de desmatamento na Amazônia brasileira, um ecossistema vital para conter as mudanças climáticas”, manifestou Maria Laura Canineu e Luciana Téllez Chávez, integrantes da Ong.
Para este ano de 2021, mesmo ainda não estando no período de maior incidência de incêndios no Brasil, as perspectivas não são animadoras. Não são porque o Inpe, por exemplo, já apresenta dados alarmantes. Também preocupa pastorais e movimentos populares desse campo o fator chamado impunidade. Organizações que atuam no Pará e denunciaram o Dia do Fogo explicam que, passados quase dois anos, “não há respostas da Justiça sobre os culpados por aqueles incêndios. As investigações não avançaram, e ninguém foi responsabilizado por aqueles crimes”. Sabe-se que a batalha de Melk em prol da vida em seu território não deve cessar tão brevemente diante desse cenário, e também é sabido que se há vida em Timbiras, Novo Progresso, Itaituba e em tantos outros lugares, é porque gente assim não arreda o pé de lutas necessárias.
A reportagem entrou em contato com a Agromaratá por e-mail e não obteve retorno.
Elvis Marques é jornalista.