Tudo (re)começou, mas não em Porto Alegre1 e, sim, em Paris, onde tudo terminara. Foi, efetivamente, na capital francesa que Bernard Cassen recebeu, em fevereiro de 2000, a visita de dois diretores de organizações não-governamentais brasileiras que lhe fizeram a proposta de organizar um Fórum anti-Davos. O então presidente do Attac na França reagiu favoravelmente à idéia, porém imprimindo-lhe características que se tornariam o núcleo central do movimento que estava em vias de nascer: o Fórum Social Mundial (FSM) deveria ser realizado na periferia do capitalismo – em alguma parte do mundo “globalizado”, e não nos países “globalizadores”. No Brasil, por exemplo, devido ao peso que tinha a esquerda neste país e, mais precisamente, em Porto Alegre, devido à notável e singular experiência de uma política pública: a do orçamento participativo.
Era a oportunidade de reatar a teia rasgada cerca de quinze anos antes, quando o presidente François Mitterrand, empenhado na consolidação da hegemonia liberal com a dupla Reagan-Thatcher, optou por se alinhar às novas tendências dominantes, abandonando o papel histórico da esquerda francesa, de solidariedade e aliança com os movimentos da periferia do capitalismo. Os futuros fóruns sociais mundiais iriam reativar os vínculos entre os movimentos do centro e da periferia do sistema, desenhando, dessa maneira, uma nova cartografia internacional das lutas pela emancipação humana.
Bernard Cassen faz o inventário dos avanços dos fóruns e dos problemas a serem ainda resolvidos para passar da “acumulação primitiva” para a “reprodução ampliada”
Em seu livro, Bernard Cassen narra na primeira pessoa o nascimento dos fóruns sociais mundiais que viriam coroar um movimento nascido com o “grito de Chiapass”, em janeiro de 1994, prosseguindo em Seattle, cinco anos depois, e desembocando em Porto Alegre, em janeiro de 2001. Um processo que o autor qualifica, corretamente, como de “acumulação primitiva” da construção de um modelo alternativo à hegemonia neoliberal e para o qual o Attac e o Monde diplomatique – cada um à sua maneira – seriam referências básicas fundamentais. Foi deles que nasceram expressões – como a luta contra a “ditadura dos mercados”, ou “Um outro mundo é possível” (título de um artigo de Ignacio Ramonet, em maio de 1998) – que, longe de serem meros slogans, passaram a fazer parte da identidade do próprio movimento.
Bernard Cassen faz o inventário dos avanços dos fóruns e dos problemas a serem ainda resolvidos para passar da “acumulação primitiva” para a “reprodução ampliada”. Entre esses problemas, alguns são o do poder das instâncias do FSM, o da representatividade dos movimentos participantes, o da exclusão dos partidos políticos de um processo que não pretende se limitar à chamada “sociedade civil”, o dos conceitos de liberalismo, antiestatismo, antipartidarismo ou antipolítica. O livro de Bernard Cassen é, desde já, um instrumento de referência para todos aqueles que, na luta por um outro mundo (ou, para retomar a expressão do subcomandante Marcos, “por outros mundos possíveis”), pensam que esta deverá ser uma luta consciente, organizada e travada por coalizões da maior amplitude possível.
(Trad.: Jô Amado)
1 – Ler, de Mohammed Larbi Bouguerra, Les Batailles de l?eau. Pour un bien commun de l?humanité, col. “Enjeux Planète”, Edições do Atelier e Edições Charles Léopold Mayer, Paris, 2003; e L?Eau, res publ
Emir Sader é jornalista, professor da FFLCH-UPS e coordenador do Laboratório de Políticas Públicas da UERJ. Publicou, entre muitos outros livros, Século XX: uma biografia não autorizada (Boitempo Editorial). É coordenador editorial de Latinoamericana, enciclopédia contemporânea da América Latina e Caribe.