Frigoríficos: muitos acidentes e a necessária preservação da proteção legal
O destaque financeiro e internacional, lamentavelmente, contrasta com o alto adoecimento e acidentalidade do setor
No período compreendido entre os dias 8 de outubro e 8 de novembro de 2021, o governo federal, por meio do Ministério do Trabalho e Previdência Social, abriu consulta pública sobre a revisão da Norma Regulamentadora 36, que trata da Segurança e Saúde no trabalho em Empresas de Abate e Processamento de Carnes e Derivados, com o recebimento de 1.197 contribuições.
No dia 16 de novembro de 2021, a Comissão de Assuntos Sociais do Senado Federal realizou audiência pública para ampliar o debate relacionado à revisão da norma, oportunidade em que quase todos os participantes foram favoráveis à reabertura da consulta pública por causa da alta relevância da matéria e da controvérsia entre argumentos favoráveis e contrários à alteração, o que não chegou a ocorrer.
No dia 26 de janeiro de 2022, em mandado de segurança impetrado pelo Ministério Público do Trabalho, a Justiça do Trabalho da 10ª Região (DF-TO) concedeu liminar para suspender a revisão da NR 36 até o julgamento final por considerar o envolvimento de população vulnerável, como indígenas. Na ação, o Ministério Público do Trabalho alega que não houve a oitiva dos indígenas, o que contraria a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e precedentes do Supremo Tribunal Federal (ADPF 709) sobre o direito dos povos indígenas de participar na formulação e execução de ações de saúde que lhes são destinadas, sobretudo em razão da pandemia de Covid-19, face à maior vulnerabilidade dos povos indígenas a doenças infectocontagiosas para as quais apresentam baixa imunidade e taxa de mortalidade superior à média nacional.
E qual seria a relação entre o interesse dos indígenas, a Covid-19 e os frigoríficos?
A primeira morte em decorrência da Covid-19 que se tem notícia entre os indígenas ocorreu com uma funcionária da JBS, integrante da reserva indígena de Dourados (MS). Segundo Ernesto Galindo, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), “os frigoríficos se tornaram principais vetores da doença no Mato Grosso do Sul e no Oeste do Paraná, por provocarem o deslocamento de trabalhadores entre diferentes municípios e aldeias”. Galindo “estudou a proximidade entre terras indígenas e os frigoríficos no Centro Sul, além do deslocamento intermunicipal dos trabalhadores entre cidades”, constatando que o contágio é maior quando os estabelecimentos estão mais próximos das aldeias.
Com relação à disseminação da Covid-19, importante destacar, além do transporte dos trabalhadores, a “síndrome do edifício doente”, reconhecida pela Organização Mundial da Saúde (OMS), em 1982. Trata-se de conjunto de doenças desencadeadas pela proliferação de microorganismos infecciosos e partículas químicas em prédios fechados.
Uma das principais controvérsias em torno da alteração da NR 36 refere-se ao risco de supressão das pausas térmicas ou psicofisiológicas, previstas no art. 253, Caput da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), de 20 minutos, a cada 1 hora e 40 minutos de trabalho, em razão do trabalho em ambientes considerados frios, ponto de grande resistência na norma por parte de entidades ligadas aos empregadores do setor.[1]
O direito ao trabalho, em condições dignas, salubres e seguras, está assegurado em diversos instrumentos internacionais, como na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e na Convenção nº155 da OIT, e a Constituição brasileira designa a redução dos riscos inerentes ao trabalho como direito social fundamental (art. 7º, XXVI).
A proteção do meio ambiente inclui o meio ambiente do trabalho, como preveem os art. 200, VIII e 225, Caput, da Constituição, o que impõe ao poder público e à coletividade a defesa do meio ambiente e a sua preservação para as gerações presentes e futuras. Nesse quadro, essencial à manutenção das normas existentes, que regulam as condições especiais de trabalho, para a proteção da saúde e segurança dos trabalhadores, com a garantia de que o meio ambiente do trabalho seja adequadamente planejado e salubre.
Segundo dados da Empresa Brasileira de Pesquisas Agropecuárias (Embrapa), o Brasil é um dos mais importantes produtores de carne bovina do mundo, “resultado de décadas de investimento em tecnologia”, o que levou “não só à produtividade, como também à qualidade do produto brasileiro e sua competitividade no mercado internacional, chegando a atingir mais de 150 países”. A exportação de carne bovina já representa 3% das exportações brasileiras (6% do PIB) e um faturamento de bilhões de reais. O aumento do movimento do setor foi de quase 45% nos últimos cinco anos.
Dados de 2020 demonstram que o rebanho bovino brasileiro foi o maior do mundo, representando 14,3% do rebanho mundial, com 217 milhões de cabeças. No mesmo ano, o país foi considerado o maior exportador de carnes do mundo, com 2,2 milhões de toneladas, o que representou 14,4% do mercado internacional. Também em 2020, o Brasil conquistou o título de maior exportador de carne de aves, com 4,3 milhões de toneladas (20,9%), com o rendimento de US$ 6,6 bilhões.
O setor de frigoríficos emprega mais de 544 mil trabalhadores no Brasil, verificando-se aumento do número de contratações nos últimos anos. Assim, o assunto em destaque é de alta relevância, não só em razão do excelente resultado econômico, como também, diante do envolvimento de milhares de trabalhadores e dos impactos sociais que pode causar nas comunidades e famílias, com reflexos na saúde pública e, em consequência, na Previdência Social.
O destaque financeiro e internacional, lamentavelmente, contrasta com o alto adoecimento e acidentalidade do setor.
Dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho, vinculada ao Ministério do Trabalho e da Previdência, expostos no documento Análise de Impacto Regulatório – NR 36 – segurança e saúde no trabalho em empresas de abate e processamento de carnes e derivados, revelam que no período de 2017 a 2020, das 1.437 empresas fiscalizadas no setor, 917 (63,81%) foram autuadas por falta de observância da NR 36. Houve a constatação, ainda, da falta de conhecimento das empresas sobre segurança e saúde no trabalho, o que leva à não percepção dos riscos e na desconsideração da necessidade de investir recursos financeiros na prevenção de doenças e acidentes relacionados com o trabalho. Entre janeiro de 2016 e dezembro de 2020, foram registrados 85.123 adoecimentos ocupacionais e acidentes típicos no setor frigorífico, dos quais 64 foram fatais. Os acidentes do setor representam 4,59% do total do país e 6,48% de doenças ocupacionais. A maior parte desses acidentes está relacionada a cortes, laceração, ferida contusa ou ferida aberta (35,39%) e contusão e esmagamento (18,93%). Nos frigoríficos, a chance de desenvolver tendinite na desossa de perna de frango é 743% superior a outros setores da economia.
No citado documento, consta como objetivo fundamental da revisão da NR 36 conferir maior efetividade às ações de proteção e de segurança e saúde do trabalhador em setor de frigorífico, porém, como se sabe, nenhuma mudança de norma, de forma isolada, garante alteração no quadro de adoecimento e acidentalidade de trabalhadores, sendo necessária adoção de medidas efetivas.
O próprio relatório apresentado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho aponta a desconformidade entre as normas e a observância pelas empresas, segundo as fiscalizações do Trabalho sobre o cumprimento da NR 36 em todo o país e as análises de acidentes graves e fatais, revelando não só a ausência de aplicação da norma, como também a baixa efetividade das ações de prevenção, o deficitário investimento em medidas preventivas e a ausência de planejamento na área de segurança e saúde no trabalho.
Nesse sentido, não se vislumbra, concretamente, como se pretende alcançar os resultados previstos com a revisão da NR 36, que são: a) redução dos acidentes de trabalho; e b) redução dos custos decorrentes dos acidentes para a sociedade, governos e organizações.
No tocante ao aumento da fiscalização, é importante destacar que há déficit de 1.500 auditores fiscais do Trabalho e que, sem a realização de concurso público, torna-se vazio um dos objetivos específicos da revisão da norma.
Os trabalhadores do setor estão expostos a vários tipos de riscos, como os acidentes com cortes e perfurações, além de riscos ergonômicos seríssimos por posturas inadequadas, serviços repetitivos e peso; a ruídos, variações de temperatura, a ambientes extremamente frios e alagados; a riscos biológicos, como bactérias, fungos, vírus, etc., em razão do contato com carne, sangue, vísceras, entre outros excrementos de animais.
Todos esses riscos, como exposto, levam ao elevado adoecimento e à alta acidentalidade dos trabalhadores, com o gasto de milhões de reais no pagamento de benefícios previdenciários, o que tem levado a Procuradoria Geral Federal ao ajuizamento de ações regressivas (de 2008 a 2010 foram ajuizadas 1021 ações, com uma margem de procedência de 92%). Em 2015, por exemplo, um dos frigoríficos foi condenado ao pagamento de indenização no valor de R$ 1 milhão, em ação regressiva coletiva, pela exposição dos trabalhadores a frio, ruído, agentes biológicos, poeiras, más condições ergonômicas e psicossociais, em desacordo com a legislação trabalhista.
Outro ponto relevante a ser abordado é a ausência de qualquer limitação da jornada de trabalho ou controle do ritmo, intensidade e da carga de trabalho no setor, o que seria fundamental para o alcance dos objetivos pretendidos. Embora a legislação trabalhista imponha limites à jornada de trabalho e estabeleça pausas e intervalos, a NR 36 parte do princípio de que haverá horas extraordinárias, uma vez que, quando dispõe sobre as pausas, prevê jornadas superiores a 9 horas e 58 minutos, o que deveria ser impensável nesse tipo de atividade, com tantos riscos aos trabalhadores.
A CLT prevê jornada, em regra, de no máximo 8 horas diárias (art. 58), com a possibilidade de acréscimo de, no máximo, duas horas extras (art. 59). O diploma legal traz, ainda, o descanso obrigatório de 11 horas entre uma jornada e outra (art. 66). Além disso, o setor possui ambientes insalubres e, de acordo com o art. 60 da CLT, qualquer prorrogação de jornada em ambiente insalubre deve ser precedida de licença prévia das autoridades competentes em matéria de higiene do trabalho, que analisarão os métodos e processos do trabalho (a única exceção a essa regra é a jornada de 12 por 36 horas, prevista no parágrafo único do citado dispositivo).
Assim, não se pode prescindir das pausas, com a adoção de medidas alternativas como rodízio, por exemplo, e impõe-se clara limitação da jornada de trabalho, da intensidade, do ritmo e da carga de trabalho, o que não é objeto de discussão na revisão da NR 36.
Existe grande disparidade no porte das empresas do setor (80 mil empresas com até duzentos empregados e mais de 450 mil com mais de duzentos empregados), o que afasta a possibilidade de previsão de gerenciamento dos riscos pelos próprios estabelecimentos, uma vez que, de antemão, sabe-se que as normas de segurança, em regra, não são observadas pelas empresas.
O país não pode ostentar elevados níveis de produção e exportação no mercado internacional e apresentar resultados alarmantes em termos de adoecimento e acidentes de trabalho, como “celeiro do mundo” na área de prevenção em saúde e segurança do trabalho. O Brasil é o 2º país do G20 em número de acidentes do trabalho, ficando atrás apenas do México.
Sem medidas concretas para barrar o adoecimento e a acidentalidade das trabalhadoras e trabalhadores do setor, as previsões nesse sentido não passam de boas intenções, sem a densidade necessária para gerar mudanças nesse quadro.
Não se pode continuar a fechar os olhos para a necessária modificação dos processos produtivos, afastando-se o que Vincent Gaulejac chamou de “gestão como doença social”.
É necessário romper essa lógica, voltada apenas à produção, sem a consideração do elemento humano, para que revisões e reformas não signifiquem desintegração em termos de organização do trabalho e o aprofundamento da degradação do meio ambiente de trabalho.
Luciana Paula Conforti é professora, juíza do Trabalho do TRT da 6ª Região (PE), vice-presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra, 2021-2023), doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) e integrante do Grupo de Pesquisa Trabalho, Constituição e Cidadania (UnB-CNPq).
[1] Está em tramitação no Congresso Nacional o PL 2363/2011, que altera os requisitos para trabalhadores de ambientes artificialmente frios acessarem a “pausa térmica”, com o estabelecimento do teto de 4 ºC para as atividades em câmara frigorífica, o que, segundo o Ministério Público do Trabalho, retiraria o direito de 95% dos trabalhadores do setor.