Fukuyama, neoconservador arrependido?
Em seu mais recente livro, o formulador da hipótese de “fim da História” critica duramente o governo Bush, reconhece o papel dos Estados nacionais e admite que o poder dos EUA tem limitesHubert Védrine
Na sua mais recente obra, America at the crossroad [1], Francis Fukuyama, que se tornou célebre por seu controverso livro sobre o “fim da história” [2] após a queda da URSS e que, durante muito tempo se dizia um neoconservador ? entrega-se a um verdadeiro ato de ruptura com o governo Bush, e talvez com todo o neoconservadorismo.
Certamente, ele continua prestando homenagem a essa corrente de pensamento pelo seu “anticomunismo eterno”, dos anos 1930 até hoje. E ainda lembra a constante oposição dessa corrente à “realpolitik” de Henry Kissinger (assunto que mereceria uma ampla discussão). Na verdade, Fukuyama não se afasta dos grandes princípios do neoconservadorismo. Ele sempre pensa que ? contrariamente ao que afirmam os “realistas” ? a natureza interna dos regimes não é indiferente nas relações internacionais, sendo preciso preocupar-se com ela e, se necessário, transformar as ditaduras em democracias. Ele não contesta ? pelo contrário ? a tese de que os Estados Unidos devem estar engajados nos assuntos internacionais, já que eles estariam, quase por sua própria natureza, a serviço de “fins morais”. Ele acredita que é necessário desconfiar das ambições excessivas de transformação social e, finalmente, que não se deve alimentar ilusões quanto à lei e às instituições internacionais, pouco capazes de impor a segurança e a justiça.
É sobre o grau de importância da natureza dos regimes nas relações internacionais que está a maior polêmica entre os neoconservadores (dentre os quais Fukuyama ainda hoje) e os realistas clássicos, à maneira de Kissinger. Sobre o multilateralismo, os neoconservadores se opõem aos liberais internacionalistas wilsonianos (democratas americanos; social-democratas europeus e europeus em geral). Quanto à necessidade do engajamento dos EUA (a “nação indispensável”, segundo Madeleine Albright), sobressai o isolacionismo recorrente, mas impraticável nos nossos dias, da opinião pública norte-americana. Os neoconservadores podem ter forjado um coquetel ideológico original, mas se inspiraram em antigas correntes norte-americanas de pensamento.. Durante seu primeiro mandato, George W. Bush foi talvez uma caricatura, mas não uma aberração.
Se de certa maneira Fukuyama continua neoconservador, com quem ele rompe hoje e por quê? Essencialmente com o governo Bush, por causa da sua política para o Iraque. Segundo Fukuyama, o governo cometeu três erros graves com a guerra: enganou quanto à ameaça, não previu a virulenta oposição mundial ao exercício da pretensa “benevolent hegemony” (hegemonia benevolente) norte-americana e avaliou muito mal as dificuldades da pacificação e reconstrução do país.
Uma crítica aos preconceiros sobre o Islã
Remontando à raiz desses erros, Fukuyama começa por se distinguir completamente da retórica que ele julga imprópria, ilusória e prejudicial da “guerra contra o terrorismo”. Prestando homenagem a Olivier Roy e Gilles Kepel, ele estigmatiza as confusões permanentes, nos Estados Unidos, entre fundamentalistas islâmicos, islamitas, islamitas radicais e muçulmanos. Afirma que a democracia ocidental não é uma solução a curto prazo ao problema do terrorismo. Admite ? posição corajosa para um norte-americano ? que o rancor antiamericano no mundo árabe, derivado do que é visto como um apoio unilateral dos EUA a Israel, facilita a ação dos terroristas. E, sobretudo, mesmo que lembre algumas ações preventivas justificadas ao longo da história e lamente que outras não tenham ocorrido, estima que uma ação preventiva seja extremamente difícil contra um programa nuclear (ela pode deixar este último mais lento, mas não interrompê-lo por completo). Além disso, acredita que tal ação poderia inclusive estimular a proliferação desse programa, e que o processo de mudança de regime, que supostamente decorreria, é extremamente incerto.
Fukuyama não se mostra mais flexível quando julga insuperável a contradição entre a crença dos EUA no seu “excepcionalismo” (ele o vê como algo próximo a uma religião, que remonta ao próprio George Washington e justifica hoje o perigoso conceito de guerra preventiva) e a necessidade de legitimação internacional. “Não é suficiente que os americanos creiam em suas boas intenções ? reconhece ele ? e ainda é necessário que estejam convencidos disso aqueles que não são americanos!”. Principalmntequando os Estados Unidos não chegam a provar ex post a legitimidade de suas intervenções, a competência do “poder hegemônico” não está à altura de suas pretensões. Em resumo, o governo Bush teria se equivocado em todas as suas ações, como escreveu o especialista democrata Philip Gordon (“The end of the Bush Revolution” [3]), em Foreign Affairs.
Fukuyama faz mais duas observações que parecem essenciais, especialmente para os europeus que refletem sobre suas futuras políticas externas. Ele redescobre que, antes de falar em democratização, é necessário haver um Estado. A construção do Estado (“state building”) é uma coisa em si, a promoção da democracia não o assegura ipso facto. Além disso, a receptividade das forças democráticas de um país à ajuda externa, particularmente a oferecida peldos Estados Unidos, depende muito da história particular da sociedade e do tipo de nacionalismo em ação. Em outras palavras, a democracia não é facilmente imposta do exterior e os países ocidentais ? colonizadores de ontem e poder dominante de hoje ? não estão, necessariamente, bem posicionados para tanto. Estou bem contente de ver Fukuyama admitir, por sua própria conta, a diferença que destaco há anos entre “processo de democratização” – necessário, longo e difícil – e uma ilusória “democracia instantânea”, sobretudo imposta do exterior. Nada de instituição, nada de democratização sem demanda interna. Na mesma via, e isso é fundamental, ele desmente o pretenso (e supostamente salutar) desaparecimento dos Estados.
Permanece a desconfiança em relação à ONU
Não façamos de Fukuyama um intelectual europeu multilateralista. A “hegemonia benevolente” norte-americana tem limites, mas Fukuyama não compartilha nenhuma das ilusões dos europeus e da esquerda norte-americana com relação às instituições internacionais. Ele chega a estimar que, pelo próprio fato da sua existência, a Organização das Nações Unidas dispensa a reflexão sobre esse assunto. Prova disso é que a ONU não é reformável. Ele vê, antes de tudo, o desenvolvimento de um leque de formas de cooperação internacional extremamente diversas, da mais formal e legítima (ONU) à mais informal (os códigos das empresas, ISO, ICANN [4]), sendo que a mais legítima não significa a mais eficaz.
Como qualquer outro norte-americano, Fukuyama não contesta o leadership de seu país. Além disso – como os wilsonianos, os neoconservadores americanos, grande parte das organizações não-governamentais e das opiniões ocidentais -, ele não renuncia de forma alguma ao proselitismo e continua a pensar que é preciso mudar os regimes não-democráticos. Mas a questão continua colocada: uma vez que Fukuyama está completamente consciente dos limites do unilateralismo, e como um wilsoniano realista, em nome de que e de que forma lhe parece ilusório esperar pelas instituições internacionais?
Fukuyama lamenta que as idéias neoconservadoras ? nas quais acreditou e ainda acredita, em grande parte ? tenham sido utilizadas por péssimas equipes, em lugares inapropriados e da pior forma, o que acabou por desacreditá-las amplamente. Mas ele está consciente de que os Estados Unidos não podem exigir que o resto do mundo lhes dê confiança, se eles não demonstram que são capazes de ver mais longe do que os outros e se não percebem que o poder é mais forte quando é apenas sugerido. Assim, Fukuyama se separa do governo atual, talvez para marcar sua disponibilidade para uma nova política externa norte-americana por vir. Ele previne: “Restaurar a credibilidade americana não será somente uma questão relativa às relações públicas, mas requererá uma nova equipe e novas políticas”.
Seria muito bom para os europeus ler e pensar sobre Fukuyama. Sua reflexão é forte e sua progressão, interessante, mesmo que ambas sejam naturalmente contestáveis. E, sobretudo, essas discussões lhes interessam diretamente. De fato, as manifestações européias contra a guerra no Iraque mascararam uma convergência ocidental mais profunda: há mais europeus do que se pensa que compartilham certas convicções dos neoconservadores, incluindo a esquerda francesa. Desde o fim da URSS, ocidentais, norte-americanos e europeus sentem-se mais do que nunca engajados na sua secular missão civilizadora, de democratizar o resto do planeta: Rússia, China, mundo árabe-islâmico e África.
Tornou-se um “lugar-comum”, por parte das mídias e de certos políticos, denunciar as políticas “realistas” ? bode expiatório cômodo ? que supostamente “sacrificam os direitos do homem” em nome de considerações econômicas, comerciais, energéticas, etc. Sendo que o pressuposto dessas posições seria a indiscutível legitimidade dos ocidentais em propagar os direitos humanos, assim como também se vê como incontestável sua capacidade de realizar tal ação de forma eficaz e durável. Os neoconservadores norte-americanos não dizem outra coisa. A principal divergência entre norte-americanos e europeus se refere aos meios ? recorrer ou não à força armada ? e não aos fins.
Portanto, considerando as diversas correntes que ? tanto no seio da direita como no da esquerda francesa ? militam, neste ano pré-eleitoral, em favor de um abandono da linha diplomática da 5ª República (supondo-se que ela tenha sido seguida), em benefício de uma diplomacia mais militante e “transformacional” (para retomar a linguagem de Condoleeza Rice), pode-se dizer que essas correntes se expõem aos mesmos desapontamentos ou decepções que a política neoconservadora. Mesmo que essas correntes sejam apenas uma pálida cópia. Assim, antes de montar novamente ? com um ardor renovado e correndo riscos ? sobre o cavalo manco e “supermaquiado” do “dever de civilização”, essa