Futuro incerto em Rojava
A Federação Democrática da Síria do Norte abriu conversações, rapidamente suspensas, com o regime de Damasco para consagrar sua autonomia de fato. A organização permanece sob a ameaça do Exército turco e da Organização do Estado Islâmico. Internamente, as tensões entre árabes e curdos se dissipam, mas uma desconfiança recíproca permanece
Pequena vila empoeirada entre as cidades sírias de Kobanê e Rakka, Ain Issa é a nova capital administrativa da Federação Democrática da Síria do Norte, também conhecida como Rojava.1 Ilham Ahmed nos acolhe. Essa curda originária de Afrin, uma cidade retomada pelo Exército turco em março de 2018, preside o Conselho Democrático Sírio (CDS), o braço político das Forças Democráticas Sírias (FDS), que controlam todo o nordeste do país. Imediatamente, ela detalha o projeto de autonomia que defende essa aliança curdo-árabe: “Exigimos que a Síria de amanhã compreenda zonas autônomas. Queremos uma nova Constituição, na qual a descentralização estará inscrita”, explica ela, que em julho de 2018 conduziu uma delegação do CDS a Damasco para as primeiras conversas com o regime de Bashar al-Assad.
Um reencontro oficial já tinha acontecido em Tabka, onde uma barragem de uma hidrelétrica no Rio Eufrates precisava de reparos urgentes. Apenas o governo local poderia fornecer os técnicos e as peças necessárias para as válvulas defeituosas. Se uma cooperação técnica entre o CDS e Damasco é possível, por outro lado um acordo político permanece improvável. “Percebemos, escutando as declarações do regime, que as negociações eram uma questão tática para ele. Não há esforços sérios nesse sentido para fazê-los avançar no acordo”, prossegue Ahmed. É dessa forma que ela justifica sua ausência no encontro da oposição síria baseada em Istambul: “Nós somos a verdadeira oposição. A maior parte dos grupos armados do território é extremista e apoiada pelo governo da Turquia. Tentar um acordo com esses grupos radicais e jihadistas seria um suicídio para nós”.
O grupo de negociadores do CDS foi a Damasco sem impor condições prévias. Hikmet Habib, árabe de Qamishli, adjunto de Ahmed e integrante da delegação, explica: “Não utilizamos grandes slogans como ‘Queremos a queda de Bashar al-Assad’. Não é o ponto principal. O que importa é modificar a Constituição e a base do sistema político da Síria. Há um déficit democrático enorme. As decisões são tomadas em Damasco e o sistema depende de algumas famílias que governam o país”. De seu lado, Al-Assad muda de opinião constantemente. Diversas vezes prometeu que retomaria cada parcela da Síria e, em dezembro de 2017, acusou os curdos de traição. No início de maio de 2018, contudo, afirmou em uma declaração televisiva que a porta estava aberta para um diálogo com as FDS, qualificando as instituições criadas no norte e leste da Síria como “estruturas temporárias”. Neste fim de ano, as negociações entre Damasco e o CDS congelaram enquanto a situação se decanta em Idlib, cidade que o regime pretende cedo ou tarde retomar dos jihadistas.
Depois da reconquista de Kobanê, em 2015, pelas Unidades de Proteção do Povo (YPG) e pelas Unidades de Proteção das Mulheres (YPJ), ajudadas pelo Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), os curdos decidiram não proclamar a independência do Curdistão, e sim instaurar uma federação democrática inspirada no comunalismo,2 sem colocar em questão as fronteiras. A desconfiança no interior de comunidades árabes, turcomenas e outras diante dos curdos era, então, grande. Elas temiam que os vencedores da Organização do Estado Islâmico (OEI) se vingassem delas pelos maus-tratos das autoridades sírias sobre os curdos. “Os curdos sofreram muito com a política de assimilação levada adiante pelo regime de Al-Assad”, lembra Habib. “Desde que as FDS libertaram zonas tomadas pela OEI, fizemos grandes esforços para restabelecer a confiança criando comitês de reconciliação e conselhos com representação de todos. Hoje, podemos dizer que 60% dos membros das FDS provêm de tribos árabes”, completa. De acordo com as estimativas mais frequentes, as FDS contam com 40 mil combatentes.
Até 2017, Rojava era formada por três zonas de maioria curda: Afrin, Kobanê e Cezire. Após a conquista de Rakka, em outubro de 2017, e a perda de Afrin, em março de 2018, a federação autônoma abriga menos curdos e mais árabes – daí a importância de uma aliança sólida entre esses dois povos. O ambiente estranho de Qamishli, capital do cantão de Cezire, ilustra a complexidade da situação, com bairros inteiros que permanecem sob controle do regime de Damasco. A população cristã siríaca está dividida entre o apoio a Damasco e a adesão ao projeto de governo autônomo. Elizabeth Gawryie, integrante do governo autônomo pela comunidade cristã siríaca e da delegação de negociação, nos acolhe na sede de sua associação. Ela evoca a questão do compartilhamento de recursos naturais, notadamente o petróleo, cujos principais poços estão sob controle do governo autônomo. “A Síria é um país rico. A repartição das riquezas será abordada nas próximas negociações. Propusemos a Damasco criar comitês bilaterais para os serviços públicos, a saúde e a economia”, explica.

A ocupação de Afrin, um trauma
O governo autônomo deve também compor com as dificuldades relacionadas à educação. Uma das prioridades foi implementar um programa escolar em três idiomas: árabe, curdo e siríaco, com novos conteúdos pedagógicos para as matérias não científicas. “Não temos problema com o programa escolar do regime nas matérias científicas, são programas universais. Por outro lado, temos muitas questões em matérias como História, Sociologia, Geografia, porque as comunidades árabes não aparecem nesses conteúdos”, explica Musim Nebo, professor.
Em agosto de 2018, algumas dezenas de siríacos se manifestaram em Qamishli para denunciar a introdução do novo programa escolar entoando palavras de ordem glorificando Al-Assad. Protestavam por dois motivos: porque o governo autônomo acabara com as aulas em siríaco e porque os diplomas emitidos por suas escolas não eram reconhecidos por Damasco, nem no exterior. Para se defender, as autoridades argumentaram que a maior parte dos estudantes siríacos se escolariza em instituições privadas, o que explica o fechamento de salas no setor público. Algumas escolas privadas, nas mãos da Igreja, foram temporariamente fechadas por terem se recusado a aplicar o novo programa escolar. Finalmente, estabeleceu-se um acordo: o programa foi introduzido apenas nos dois primeiros anos do primário. Para as outras aulas das escolas privadas, o programa de Damasco foi mantido, o que garante o reconhecimento do diploma.
Em Kobanê, participamos da reunião de uma comunidade, uma assembleia na qual os habitantes de um bairro discutem os problemas cotidianos mais urgentes. Um habitante, Hevi Zora, denunciava a hipocrisia de alguns, que não hesitavam em enviar seus filhos para estudar em escolas fora de Rojava: “Por que alguns ricos, e mesmo integrantes do governo autônomo, matriculam seus filhos em escolas árabes de Latáquia, Alepo ou Damasco, enquanto os outros estudam em curdo?”, questionava. Uma semana depois, um decreto proibiu funcionários do governo autônomo de matricular seus filhos em escolas do regime.
O entendimento entre comunidades, contudo, parece melhorar, e as novas instituições funcionam. Em Qamishli, o copresidente do conselho legislativo, Hakem Khalo, explica: “Aqui, nos cantões de Cezire, o Estado não redistribuía nada. Seu sistema centralizado nunca levou em conta as outras comunidades étnicas ou religiosas. Hoje, o regime sírio acredita que pode voltar à situação anterior à revolução de 2011, mas muitos árabes agora participam do governo autônomo, ocupam cadeiras nos conselhos civis de Rakka, em Tabka, Manbidj, em Deir Ez-Zor; perceberam que podem se ocupar da comunidade muito mais que antes”.
Em Tell Abyad, pequena cidade próxima à fronteira turca, a tensão é palpável. A OEI, perseguida pelas FDS em 2015 depois dos combates, tinha lá uma base social. A ingerência da Turquia e seus aliados é permanente na cidade, ao que se soma o peso de um passado doloroso, já que fazia parte de uma região onde o regime de Al-Assad havia instalado populações árabes nos anos 1960 e despojado os curdos de suas terras. Estes últimos se esforçam para não se mostrar revanchistas, como explica Reshad Kurdo, cuja família perdeu suas terras: “Quando as FDS libertaram Tell Abyad da OEI, não perseguimos ninguém. Não recuperamos nossas terras tomadas pelos árabes há cinquenta anos. Esperamos uma solução política”, afirma.
Questionado, um mecânico curdo se mostra cético: “Mesmo que construíssemos um paraíso, os árabes não confiaram em nós. Eles acham que os curdos querem subjugá-los. E temos medo de que a Turquia faça aqui o mesmo que fez em Afrin”.
Afrin… Cada vez que pronunciamos esse nome, os olhos de nossos interlocutores se enchem de lágrimas. A ocupação dessa província de maioria curda pela Turquia é vivida como um trauma. Em janeiro de 2018, após negociações, a Rússia autorizou a Turquia a invadi-la. A coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos fechou os olhos, e as mesmas forças curdas que tinham expulsado a OEI de Kobanê e Rakka e salvo os curdos da OEI em Sinjar foram massacradas sob indiferença da “comunidade internacional”.
Impossível chegar lá. Paramos na cidade mais a oeste da federação autônoma: Manbidj. Protegida pela coalizão e defendida pelo conselho militar local, essa cidade é um exemplo de convivência entre comunidades. Muitas pessoas testemunharam as violências infligidas contra os curdos depois da queda de Afrin. Em um relatório publicado em 14 de junho de 2018, a organização Human Rights Watch denunciou que “grupos armados do Exército Livre da Síria, apoiados pela Turquia, pilharam, destruíram e roubaram bens de civis curdos depois da queda de Afrin. Instalaram combatentes e suas famílias nas casas sem oferecer nenhuma indenização aos proprietários”.3 Desde então, a organização espera uma autorização da Turquia para continuar a pesquisa in loco.
Imbróglio de alianças contraditórias
Hoje, a Síria é um imbróglio de alianças contraditórias. Os curdos de Afrin, a oeste do Eufrates, eram protegidos pela Rússia, que os abandonou. Os curdos a leste do Eufrates e em Manbidj hoje são protegidos pela coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos e pela França. Mas até quando? No território, as populações consideram indispensável uma proteção aérea internacional, sem a qual os exércitos turco ou sírio não teriam nenhuma dificuldade em massacrar a frágil Federação Democrática. Mas uma proteção aérea a que preço? Para responder a essas questões, fomos ao encontro do PKK, o bode expiatório da Turquia e, segundo alguns especialistas, “mestre do jogo curdo na Síria”.
Passamos o Tigre, fronteira entre Síria e Iraque, em um pequeno barco e atravessamos o norte do Iraque até Kandil, uma cadeia de montanhas que abriga as tropas do PKK. Encontramos Riza Altun. É a primeira vez que um alto responsável do PKK fala a jornalistas desde o assassinato, em agosto de 2018, de Mame Zeki, um comandante yazidi do PKK, por um míssil turco. Durante toda a entrevista, um drone invisível zumbe sobre nossa cabeça. Sob a folhagem das árvores, Altun permanece imperturbável. “Hoje, há contradições por todos os lados. Originalmente, os Estados Unidos não tinham a intenção estratégica de apoiar as FDS. Os curdos sabem muito bem que os Estados Unidos são imperialistas; mas nós somos obrigados a manter essa relação paradoxal, porque nossa sobrevivência está em jogo.” E a recente atitude dos Estados Unidos de colocar a cabeça de dirigentes do PKK a prêmio mostra a fragilidade dessa aliança. Os jogos de poder e o enfrentamento entre grandes potências estão no auge sobre o território sírio…
*Mireille Court é professora de inglês e integrante da coordenação Solidariedade Curdistão; Chris Den Hond é jornalista. Ambos coordenaram, com Stephen Bouquin, La Commune du Rojava. L’alternative kurde à l’État-nation [A comuna de Rojava. A alternativa curda ao Estado-nação], Critica-Syllepse, Bruxelas/Paris, 2017.