Gás lacrimogêneo, lágrimas de ouro
Como os manifestantes franceses – os de Maio de 68, mas também os de hoje –, os ativistas de todo o mundo compartilham uma experiência comum: a inalação de gás lacrimogêneo. Em um século, essa arma apresentada como inofensiva impôs-se como ferramenta universal de manutenção da ordem
Diferentemente de outros mercados, a indústria da manutenção da ordem não teme a agitação social nem as crises políticas – muito pelo contrário. As revoltas da Primavera Árabe em 2011 e as manifestações que abalaram o mundo nos últimos anos fizeram explodir a venda de gás lacrimogêneo e de equipamentos antimotim. Com o talão de pedidos na mão, os vendedores cruzam o planeta. Exércitos de especialistas saem à procura da menor agitação popular para aconselhar fabricantes e compradores sobre os bons negócios do dia. O gás lacrimogêneo é, sem dúvida, seu principal produto: universalmente considerado pelos governos o remédio mais confiável e mais indolor para a contestação social, como uma panaceia contra a desordem, ele não conhece fronteiras nem concorrência.
Que danos ele causa a suas vítimas? Que problemas coloca em termos de saúde? Ninguém sabe, porque ninguém se preocupa com isso. Em nenhum país há uma obrigação legal de contar o número de suas vítimas e também nenhuma obrigação de fornecer informações sobre suas entregas, seus usos, os lucros que ele gera ou sua toxicidade para o meio ambiente. Há quase um século, ouvimos dizer repetidamente que ele não faz mal a ninguém, que não é nada mais que uma nuvem de fumaça que faz arder os olhos. Quando pessoas morrem por causa dele – a associação Physicians for Human Rights, por exemplo, contabilizou 34 mortes ligadas ao uso do gás lacrimogêneo nas manifestações no Bahrein em 2011-20121 –, os poderes públicos retrucam que se trata simplesmente de acidentes.
Na realidade, o gás lacrimogêneo não é um gás. Os componentes químicos que produzem efusão lacrimal exibem os belos nomes de CS (2-clorobenzilideno malonitrilo), CN (cloroacetofenona) e CR (dibenzoxazepina). Trata-se de agentes irritantes que podem ser acondicionados tanto sob a forma de vapor como de gel ou líquido. Sua combinação é projetada para afetar simultaneamente os cinco sentidos e infligir um trauma físico e psicológico. Os estragos que o gás lacrimogêneo ocasiona são incontáveis: lágrimas, queimaduras de pele, distúrbios da visão, secreção nasal, irritação das narinas, dificuldade para engolir, salivação, compressão dos pulmões, tosse, sensação de asfixia, náuseas, vômitos. Os lacrimogêneos também foram questionados no caso de aborto espontâneo e em problemas musculares e respiratórios de longo prazo.2
Forma “humana” da violência de Estado
O uso de armas químicas remonta pelo menos à Antiguidade. Durante a Guerra do Peloponeso, os beligerantes usavam gases sulfurosos contra as cidades sitiadas. Foi em meados do século XIX, porém, que os avanços da ciência geraram debates éticos sobre seu uso. As primeiras tentativas de restringir o uso de armas químicas e biológicas remontam às conferências de Haia de 1899 e 1907, mas sua formulação ambígua reduziu esses acordos a quase nada. A Primeira Guerra Mundial iria servir como um laboratório aberto para o desenvolvimento de uma nova gama de venenos.
Em geral admite-se que as tropas francesas inauguraram o reinado do gás lacrimogêneo na Batalha das Fronteiras, em agosto de 1914, atirando nas trincheiras adversárias granadas cheias de brometo de xilil, uma substância irritante e neutralizante, porém não letal ao ar livre. Os alemães responderam em abril de 1915 com um produto infinitamente mais mortal, o gás de mostarda – o primeiro caso na história de uso maciço de uma arma química com cloro.
De início distantes nessa corrida pela inovação, os norte-americanos não tardariam a recuperar o atraso. No mesmo dia de sua entrada na guerra, os Estados Unidos criaram uma comissão de pesquisa “para conduzir investigações sobre os gases tóxicos, sua fabricação e seus antídotos para fins de guerra”,3 mas também um Serviço da Guerra Química (Chemical Warfare Service, CWS), generosamente dotado de recursos e pessoal. Em julho de 1918, o tema monopolizou a atenção de mais de 2 mil cientistas.
Depois do conflito, os militares se mostraram divididos. Os que viram com os próprios olhos a devastação causada pela arma química denunciaram seu caráter desumano, agravado pelo medo e a ansiedade que ela espalhava. Os outros a viram com certa magnanimidade, pelo fato de que faria menos mortos que um fogo de artilharia. Um bioquímico de Cambridge, John Burdon Sanderson Haldane, defendeu a eficácia dos gases de guerra, tachando seus detratores de sentimentalistas; se podemos “lutar com uma espada”, por que não “com o gás de mostarda”?
Para o historiador Jean-Pascal Zanders, as controvérsias que se seguiram à Primeira Guerra Mundial nos legaram uma dupla herança.4 De um lado, consagraram a distinção entre os “gases tóxicos” – a respeito dos quais outrora se discutia em Haia – e as novas armas químicas inventadas entre 1914 e 1918. Essa distinção voltaria a aparecer em muitas ocasiões nas convenções internacionais, legitimando que se proibissem certas armas para aprovar outras, apresentadas como não letais. Foi em virtude desse raciocínio que o gás lacrimogêneo trilhou um caminho legal mais favorável que outros agentes tóxicos. De outro lado, hoje se levam muito a sério os interesses comerciais ligados à expansão da indústria química. Refrear sua criatividade no campo militar lhe traria um prejuízo insuportável – um argumento ainda em vigor um século depois. A partir do Tratado de Versalhes (1919) e do Protocolo de Genebra (1925), os interesses econômicos das potências aliadas se fundiram ao direito internacional. Virada a página da guerra, manter a paz dentro das próprias fronteiras – e no exterior, em suas dependências coloniais – tornou-se uma prioridade para norte-americanos e europeus. Daí seu constante interesse pelos gases lacrimogêneos, dos quais o CWS e seu diretor, o general ganhador de muitas medalhas Amos Fries, seriam os ardorosos pioneiros.
Os anos 1920 anunciaram a idade de ouro dos gases lacrimogêneos. Tirando partido do crescimento das armas químicas durante a guerra, Amos Fries converteu esse veneno em uma ferramenta política de uso cotidiano. Graças a um lobby aguerrido, ele conseguiu moldar uma nova imagem do gás lacrimogêneo, não mais associado a uma arma tóxica, mas a um meio inofensivo de preservar a ordem pública. Amparado em um advogado e um oficial, ele aliou à sua causa uma grande rede de publicitários, cientistas e políticos encarregados de promover nos meios de comunicação esses “gases de guerra para tempos de paz”.
A imprensa de negócios se mostrou, logicamente, a mais dedicada a difundir o refrão do “gás para a paz”. Em sua edição de 6 de novembro de 1921, a revista Gas Age-Record fez um retrato extasiado do general Fries. Ali se podia ler que o “chefe dinâmico” do CWS “estudou de perto a questão da utilização do gás e das fumaças para lidar com multidões e selvagens. Ele está sinceramente convencido de que, quando os policiais e os administradores coloniais estiverem familiarizados com o gás como meio de manter a ordem e de proteger o poder, os distúrbios sociais e as insurreições selvagens diminuirão até desaparecerem por completo. […] Os gases lacrimogêneos parecem notadamente apropriados para isolar o indivíduo do espírito da multidão. […] Uma das vantagens dessa forma suavizada de gás de combate reside no fato de que, em sua relação com a multidão, o policial não hesitará em utilizá-lo”.
Essa amostragem precoce dos argumentos comerciais baseia seu equilíbrio em um fio estreito: elogiar as virtudes repressivas do produto e ao mesmo tempo celebrar seu caráter indolor. A moda dos gases lacrimogêneos num mercado que até então só conhecia o cassetete e o fuzil deve muito a essa arte de conciliar antagonismos. O gás evaporava. A polícia podia, enfim, dispersar uma manifestação com “um mínimo de publicidade negativa”5 sem deixar sangue e hematomas em seu rastro. Em vez de ser visto como uma forma de tortura física e psicológica, o gás lacrimogêneo se impunha nas mentes como uma forma “humana” de violência do Estado.
Além de suas atuações no rádio e nos jornais, o general e sua equipe organizaram demonstrações públicas. Um belo dia de julho de 1921, um velho amigo e colega de Fries, Stephen J. De La Noy, posicionou-se com uma carga de gás num terreno perto do centro de Filadélfia. A fim de ilustrar os benefícios de seu arsenal, ele convidou policiais da cidade para testar sua mercadoria. Os jornalistas compareceram em grande número para imortalizar a cena: duzentos agentes uniformizados jogando gás em pleno rosto.
Seria preciso esperar alguns anos para passar da experimentação para o trabalho prático. A ocasião se apresentou em 29 de julho de 1932, quando a guarda nacional recebeu ordem de dispersar milhares de veteranos da Primeira Guerra Mundial reunidos diante do Capitólio, em Washington. Apelidados de “exército bônus”, esses ex-soldados e suas famílias estavam exigindo o pagamento de um saldo salarial que seu ministério se recusava a desbloquear. Uma chuva de granadas lacrimogêneas se abateu sobre a multidão, provocando pânico. A evacuação brutal teve como resultado três mortos. Entre as vítimas, uma criança morta algumas horas depois do ataque – oficialmente em consequência de uma doença, mas o fato de haver respirado o gás envenenado “definitivamente não ajudou”, diria um porta-voz do hospital.
Entre os veteranos expulsos, o gás lacrimogêneo foi rebatizado de “ração Hoover”, em referência ao presidente Herbert Hoover (1929-1933), que lhes enviara a tropa, e em alusão às desigualdades sociais que se aprofundavam no país. Em contrapartida, para os chefes de polícia, os industriais e seus representantes, a operação havia sido um sucesso. O serviço de vendas da Lake Erie Chemical, a empresa que produzia o gás utilizado no Capitólio, ficou feliz de incluir em seu catálogo fotos da evacuação sangrenta. Mais tarde, figurariam nele também imagens dos grevistas de Ohio e da Virgínia fugindo sob nuvens de gás. “Um único homem equipado com gás Chemical Warfare pode derrotar mil homens armados”: o slogan enfeitava orgulhosamente folhetos publicitários. O fabricante se vangloriava de fornecer uma “explosão irresistível de dor cegante e sufocante”, a qual ele garantia, no entanto, que não ocasionava “nenhuma ferida perene” – sempre o marketing do equilíbrio. Durante a Grande Depressão, nos anos 1930, os Estados Unidos recorreram cada vez mais aos gases lacrimogêneos para reprimir os protestos sociais. Segundo uma comissão do Senado, as compras de gás entre 1933 e 1937, efetuadas “principalmente durante e em antecipação a movimentos grevistas”, chegaram a US$ 1,25 milhão (US$ 21 milhões em valor atual).
Outro horizonte promissor para a indústria da “dor cegante e sufocante”: as colônias. Em novembro de 1933, Sir Arthur Wauchope, o alto comissário britânico na Palestina, reclamou sua parte do produto milagroso. Em uma carta para o escritório das colônias, ele argumentou: “Considero que o gás lacrimogêneo seria um agente altamente útil nas mãos das forças de polícia na Palestina para dispersar as reuniões ilegais e as multidões amotinadas, particularmente nas ruas tortuosas e estreitas dos velhos bairros da cidade, onde o uso de armas pode provocar ricochetes que conduzam a perdas desproporcionais em vidas humanas”.
Dispersão e desmoralização
Uma demanda similar emanou em 1935 de Serra Leoa, onde os administradores coloniais enfrentaram greves por aumento de salário. Depois foi a vez do Ceilão, que depois passaria a se chamar Sri Lanka. Foi dada uma instrução ao novo secretário de Estado britânico nas colônias, Malcolm MacDonald, de elaborar uma política global para o gás lacrimogêneo. Com esse fim, ele criou uma lista com os lugares onde essa arma tinha comprovado sua eficácia: na Alemanha, onde servira contra os grevistas de Hamburgo em 1933; na Áustria, onde se destacara contra os comunistas em 1929; na Itália, onde acabava de ser incorporada ao equipamento de base das forças da ordem; ou ainda na França, onde seu uso se banalizara.
Durante esse período, o gás lacrimogêneo tornou-se para os países um meio privilegiado de obstruir as demandas por mudança. Sua função bífida, ao mesmo tempo física (dispersão) e psicológica (desmoralização), parecia ideal para conter as tentativas de resistência às medidas impopulares. Como, ainda por cima, é possível hoje usar gás de forma totalmente legal em manifestantes pacíficos ou passivos, as autoridades não têm mais que se preocupar com lutas coletivas não violentas. O gás lacrimogêneo se impôs como uma arma multifuncional capaz não somente de conter uma manifestação, mas também de minar qualquer forma de desobediência civil.
Essa função política persiste até hoje. Enquanto o uso de armas químicas é proibido pelos tratados internacionais no contexto das guerras, as forças da ordem permanecem, em âmbito nacional, mais que nunca autorizadas a jogar gás tóxico em indivíduos ou grupos à sua escolha. Um policial pode, assim, exibir um atomizador de gás lacrimogêneo na cintura, enquanto um militar não tem esse direito. A aceitação quase unânime dessa incoerência contribui muito para a florescente prosperidade da indústria da manutenção da ordem – e para as lágrimas dos manifestantes do mundo inteiro.
*Anna Feigenbaum é pesquisadora da Universidade de Bournemouth (Reino Unido). Autora de Tear Gas. From the Battlefields of World War I to the Streets of Today [Gás lacrimogêneo. Dos campos de batalha da Primeira Guerra Mundial às ruas de hoje], Verso, Londres, 2017.