GM, chantagem explícita
Como a maior empresa automobilística do mundo usa a ameça de demissões para impor a seus funcionários rebaixamentos de salários, aposentadorias e assistência socialRick Fantasia
Que termo empregar para descrever o acordo proposto pela Delphi Corporation a seus assalariados? A direção do principal fabricante de autopeças dos Estados Unidos fez a seguinte proposição aos seus operários, a fim de retirá-los de uma situação na qual ela própria os havia mergulhado: “Vocês nos oferecem três quintos de seu pagamento e nós aumentaremos o nosso em um terço”. Nos termos desta “oferta” insólita, o salário de 24 mil operários, todos sindicalizados, teria sido reduzido de 60%, enquanto os quatro principais diretores da Delphi teriam recebido mais de 50 milhões de dólares suplementares em salários, benefícios diversos e planos de compra de ações; 486 funcionários de alto nível teriam obtido depósitos em dinheiro que representavam de 30% a 250% de seu salário. Como se não bastasse, receberam uma vantagem suplementar: caso eles escolhessem deixar a empresa (coisa que, tendo em vista os mimos oferecidos, teria representado uma escolha pouco compreensível…) seriam recompensados por indenizações de 145 milhões de dólares.
É preciso ter em mente que este programa de conjunto tinha por objetivo evitar a bancarrota e não o inverso. O paradoxo era ainda mais explosivo na medida que esta proposição tão atraente foi feita apenas alguns meses depois do Partido Republicano conseguir endurecer as leis relativas às bancarrotas, a fim de impedir os indivíduos endividados de se protegerem de seus credores (grandes empresas na maior parte dos casos). Cara, eu ganho; coroa, você perde.
Quando a imprensa começou a tornar públicos alguns dos detalhes mais sórdidos da ruína da Delphi, a direção deu a entender que mudaria de idéia. O presidente da sociedade, Robert S. Miller, especialista em “recuperações” de grandes empresas em dificuldade, anunciou que os vinte dirigentes de Delphi aceitariam reduções de salário de 10% e ele mesmo renunciaria a um ano de vencimentos. No entanto, acrescentou que não cogitava em restituir os 3 milhões de dólares que a fabricante de autopeças lhe havia concedido como bônus de participação nos lucros alguns meses antes.
Para os operários norte-americanos, a situação atual resume-se a uma mobilidade social invertida, a uma desclassificação
Aceitar a proposta ou perder o emprego
A Delphi havia feito uma “oferta” irrecusável aos trabalhadores. Em caso de rejeição, o contrato já negociado como empregador seria pura e simplesmente anulado por um juiz especialista em falências. Isso permitiria à empresa pilhar os fundos de aposentadoria do sindicato, como ela já havia ameaçado fazer. A Delphi herdou estes fundos de sua matriz, General Motors, quando a fábrica de autopeças foi reorganizada em 1999 como entidade “independente”. Um provérbio diz: “A maçã nunca cai longe da árvore”. Justamente, a semelhança entre parentes apareceu quando a General Motors anunciou, durante uma coletiva de imprensa, um acordo provisório com o sindicato dos operários do setor automobilístico, o United Auto Workers (UAW). Nos termos deste acordo, a General Motors reduziria em três bilhões de dólares por ano suas contribuições ao auxílio-saúde dos trabalhadores e em 24% o montante de seus compromissos em reembolso de despesas médicas de seus aposentados.
Por mais substancial que seja, esta redução não basta para apaziguar os deuses de Wall Street. Vários dias depois, durante uma segunda coletiva de imprensa, a General Motors divulgou que se apressaria em dispensar 10% de seu pessoal no decorrer de 2006, suprimindo 30 mil empregos. Em seguida, aconteceu o contágio: a Ford, que já havia anunciado o fechamento de 10 usinas na América do Norte, a supressão de 30 mil empregos de operários e 4 mil postos de trabalho de nível superior em cinco anos, indicava que seria preciso aumentar também as prestações de assistência médica pagas por seu pessoal. A outra grande montadora, Chrysler, já havia concluído um acordo com o UAW para reduzir quase à metade a cobertura de saúde de seus trabalhadores sindicalizados.
Para os operários norte-americanos, a situação atual resume-se a uma mobilidade social invertida, a uma desclassificação. Os custos explosivos do sistema de seguridade médica privada são colocados a cargo dos trabalhadores ativos ou aposentados. Não dispondo de um sistema de saúde público e universal, eles dependem dos planos comprados por seus empregadores. Mas, agora, apenas 60% dos patrões continuam a cobri-los – eram 69% em 2000 – e este percentual não pára de cair. Num país onde os auxílios sociais dependem com tão pouca freqüência do governo federal ou dos Estados, o essencial depende do mercado de trabalho e do poder coletivo dos assalariados. Atualmente, os empregadores só concordam em financiar seguridade social para atrair e conservar os funcionários dos quais eles têm mais necessidade.
No contexto de unidade nacional pós-II Guerra Mundial, os dirigentes operários procuraram criar um sistema nacional de seguridade social. Esta tentativa fracassou
Ascensão e queda da seguridade social
A origem de uma organização deste gênero remonta há mais de 60 anos. No contexto da unidade nacional consolidada pela Segunda Guerra Mundial e pela existência de um movimento operário que exercia então forte influência política, os dirigentes operários procuraram criar um sistema nacional de seguridade social. Esta tentativa fracassou. Ela foi rapidamente seguida por uma legislação trabalhista que impedia qualquer forma de ação demasiadamente militante, que isolava ou eliminava os líderes sindicalistas radicais, a pretexto do combate contra o comunismo. Assistia-se ao nascimento de um movimento operário “domesticado” que renunciou aos esforços visando a criação de um mecanismo nacional de proteção social. Apoiando-se sobre uma miríade de acordos descentralizados para compensar esta ausência, ele conseguia que o empregador se encarregasse de boa parte de um sistema de benefícios sociais privados.
Como estes benefícios são determinados mais pelo contrato de trabalho estabelecido no âmbito da empresa que em virtude de acordos nacionais, a adesão a um sindicato torna-se um passaporte que dá ao operário acesso a uma cidadania social e permite que ele se beneficie de vantagens provenientes de convenções coletivas. Mas resulta de tudo isto uma paisagem social altamente diversificada. Nos setores em que a maioria não é sindicalizada, como agricultura e serviços, encontramos uma massa de trabalhadores com rendas próximas da faixa de pobreza, pouco protegidos contra a doença ou o despotismo patronal. No coração manufatureiro do país (setor automobilístico, de aciaria, de equipamentos elétricos, etc) a taxa de sindicalização aproxima-se dos 100% e os sindicatos exercem um poder que permite garantir a seus membros condições de trabalho bastante próximas das normas sociais européias.
Desde o governo Roosevelt, em 1935, os Estados Unidos dispõem de um sistema público de previdência. Mas seu caráter minimalista requer que ele seja complementado pelo empregador. Estes últimos procuram escapar desta obrigação e do auxílio-saúde de seus empregados, a cada ano mais caro. Hoje, menos da metade da mão-de-obra do setor privado dispõe de uma aposentadoria financiada pela empresa.
Mas, no setor público também, o questionamento se generaliza. E é para defender sua proteção social que mais de 33 mil empregados dos transportes públicos e do transporte rodoviário recorreram recentemente a uma greve ilegal em Nova York. Neste último caso, os grevistas recusaram um sistema de aposentadoria em dois níveis, nos termos do qual as pessoas recentemente empregadas deveriam pagar aos planos de saúde contribuições mais altas que as dos funcionários mais antigos, além de aceitar que a idade de aposentadoria aumentase de 55 para 62 anos. Os empregadores norte-americanos recorrem com freqüência a este tipo de contrato, que lhes permite questionar as condições de trabalho a longo prazo, favorecendo em curto prazo uma clivagem geracional entre os assalariados.
Foi para defender sua proteção social que mais de 33 mil empregados dos transportes públicos e do transporte rodoviário recorreram recentemente a uma greve ilegal em Nova York
Acionistas comemoram corte de direitos
Os sindicatos do setor público, obrigados também a defender o nível de vida de seus membros, representam apenas 16% da mão de obra norte-americana. Mas é no setor privado que o combate é mais duro. Como o essencial dos gastos sociais é, nos Estados Unidos, assumido pelos empregadores, a derrota de um sindicato numa empresa pode acarretar imensas vantagens comparativas para os acionistas. O setor privado representou o campo de batalha de um confronto brutal entre sindicato e patronato há mais de três décadas. A própria existência do sindicalismo depende disto.
Nas grandes empresas onde os sindicatos não existem, como a Wal-Mart, maior empregador privado do país, os gestores de pessoal dispõem muitas vezes de “comandos” de especialistas — essencialmente juristas e consultores — prontos para apagar o incêndio, onde houver o menor sinal de militância operária. Exímios na arte de driblar proteções legais (muitas vezes frágeis) dos empregados e dos sindicatos, estes comandos também apelam para meios de coerção mais brutais a fim de impedir a criação de uma seção sindical: a cada ano mais de 10 mil assalariados são despedidos por este motivo. Ainda que ilegal, é pouco custoso; as penalidades financeiras às quais as empresas são condenadas permanecem mínimas. Mas o efeito das demissões destes militantes sindicalistas pesa negativamente sobre a disposição dos trabalhadores não-sindicalizados para a luta.
Nos locais onde o sindicalismo garantiu sua presença há várias décadas – indústria automobilística, por exemplo – as empresas privilegiam a descentralização de atividades e o deslocamento geográfico dos pólos tecnológicos, a fim de diminuir os custos de mão de obra. Resultados: a taxa nacional de sindicalização nacional (determinante. num país onde as organizações operárias conseguem para seus membros melhores condições de trabalho e salários) caiu para 8% (era de 35% nos anos 50). O número de empregos nas grandes empresas de manufatura foi dividido pela metade, em 30 anos. A queda atual do nível de vida operário derorre amplamente de tudo isto.
No último mês de janeiro, a imprensa e a televisão norte-americana trataram amplamente do drama da morte de 12 mineiros na Virgínia no decurso da explosão numa mina (pensou-se que haviam sido salvos, antes de se descobrir que estavam todos mortos). Mas quase nenhum grande meio registrou que nenhum destes trabalhadores era sindicalizdo. Também não se falou que eles não tinham nenhum poder e pouca proteção, numa mina que havia transgredido as regras de segurança em vigor 270 vezes apenas nos dois últimos anos. Sem falar dos nove incidentes acontecidos em 2005, que haviam rendido à empresa um processo por não respeitar disposições rel