Governança ambiental para a sobrevivência
Cada vez mais pairam dúvidas sobre a capacidade humana de garantir sua sobrevida, ao menos com qualidade, como consequência da atual perda de controle sobre o intenso metabolismo civilizatório
O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, perdeu as estribeiras ao avaliar o resultado do relatório do IPCC que atesta os mais altos índices de emissão de gases do efeito estufa já catalogados, chamando-o de “arquivo da vergonha” e que estamos “catalogando as promessas vazias que nos colocam firmemente no caminho para um mundo inabitável”.
O mundo está mergulhado em guerra e há perda de controle sobre matrizes de combustíveis fósseis. Há ainda sérias ameaças à paz mundial diante das rupturas do diálogo Ocidente-Oriente. As expectativas são baixas sobre possíveis avanços a serem obtidos, em menos de dois meses, na COP 27, que ocorrerá em Sharm-el-Sheikh, no Egito, em novembro.
Cada vez mais pairam dúvidas sobre a capacidade humana de garantir sua sobrevida, ao menos com qualidade, como consequência da atual perda de controle sobre o intenso metabolismo civilizatório.
Duas considerações são importantes nesse processo. A primeira é que a mudança climática é um fato cientificamente comprovado. A segunda é exatamente o que disse o climatologista da Nasa, James Hansen, o pai das mudanças climáticas, ao descobrir a progressividade das alterações climáticas na década de 1980: “O aquecimento global não é uma previsão. Está acontecendo”.
Enquanto o Paquistão se afoga em monções inéditas e os principais rios secam na Europa, qual é a percepção social sobre o retumbante fracasso do Acordo de Paris, que enfureceu Guterrez? Recentemente, afirmou que “as crianças estão suportando o peso das mudanças climáticas”, referindo-se às condições precárias no Chifre da África.
Como interferem nas tomadas de decisão climática a guerra da Ucrânia e as ameaças à paz mundial com a perda de diálogo entre as potências globais mais poluentes? Qual a possibilidade de uma retomada humanista, diante do cenário desastroso que visa apenas à manutenção de hegemonia geopolítica?
Como se comportará a humanidade diante deste imenso desafio de sobrevivência, depois de passar por profundo refluxo negacionista protagonizado a partir da era Trump — o que incluiu o Brasil?
Há populações cada vez maiores para alimentar e uma imensa riqueza em biomas ameaçados por um modelo que se mostra suicida. As previsões apontam um mundo com 10 bilhões de habitantes na década de 2050, portanto daqui a trinta anos. Se os 20 milhões da África Subsaariana já são um desafio para alimentar hoje, o que provocará o forte avanço na desertificação prevista com o aquecimento global?
A capacidade humana para construir conhecimento e referências legais, baseadas no ethos, estão sendo arrastadas para o abismo da prática política e econômica irresponsável, dentro de um cenário extremamente injusto para com os mais vulneráveis.
Avançar em conceituação e em estruturação normativa, enquanto sociedade, já nos permitiu evitar derrocadas e conter a barbárie latente, mas essa continua sua trajetória, minando a capacidade das condições naturais e rompendo expectativas futuras.
Diante dos fracassos que se revelam no caminho da mitigação climática, cujas possibilidades estão cada vez mais distantes, a proximidade do perigo deveria aumentar nossa capacidade de percepção sobre riscos e a necessidade de adaptação. Enquanto observamos o masterplan global de Paris fazer água, seria natural o forte afloramento de um plano “B”.
As tempestades de terra no norte de São Paulo, as chuvas que devastaram Recife e Petrópolis e as queimadas nos Pampas e no Pantanal sinalizam um trailer do que está por vir.
A falta de consciência pública e a ampliada escala predatória do Antropoceno não conspiram a nosso favor. São insuficientes para estancar o febril processo civilizatório. Será mais provável que sintomas muito fortes venham a ocorrer antes que a atenção da classe política se volte para a busca de soluções. Hansen disse que a mudança do clima será um fato visível para o homem comum em uma década. Ver para crer. A pergunta é se a reação só ocorrerá diante de uma convulsão intransponível.
Nos últimos seis anos o financiamento global aos combustíveis fosseis contabilizou US$ 4,6 trilhões, em plena vigência do Acordo de Paris. Estamos adentrando um estágio febril, com a potencialização dos conhecidos eventos climáticos como secas e inundações, fortemente ampliados em periodicidade e intensidade.
Será preciso reagir. Premidos por tempo curto, extremamente limitado para possibilitar medidas mais efetivas diante de devastadores cenários, temos que lidar com um agravante: a péssima governança ambiental, em contínuo desmantelamento, provocado por práticas econômicas retrógradas, que encontram espaço em governos inócuos e populistas, em busca de “governabilidade” fácil, uma espécie de burrinho sem cenoura e sem rédeas.
Faz-se imprescindível a estruturação de uma governança ambiental eficiente e dotada de caráter emergencial, como força-tarefa, com agilidade para a tomada de medidas que afastem, o máximo possível, os cenários de colapso das condições naturais necessárias ao contexto da vida.
Nesse aspecto, as tênues cartas de intenção que têm sido produzidas pelos atuais governos em nada auxiliarão a sociedade brasileira. Vide a destruição atual da região amazônica, a inaceitável paralisia do Fundo Amazônia. Dos R$ 3 bilhões alocados anualmente para o setor do agronegócio na região, apenas 2% são destinados à bioeconomia, o adequado apoio ao extrativismo ecológico que manteria a floresta em pé.
Medidas concretas, redirecionamento da economia e a comunicação dos riscos deste estágio civilizatório à população são elementos imprescindíveis. Isaac Asimov afirmou que “a única guerra permitida à espécie humana é a guerra contra a extinção”, que já está sinalizada.
Carlos Bocuhy é presidente do Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam).