Greves em cadeia
A cobertura dos canais de notícias 24 horas da França revela um indisfarçável sentimento de rejeição ao movimento dos trabalhadores. Durante paralisação dos ferroviários iniciada em abril, jornalistas e comentaristas se revezaram para contar as “mortes” provocadas pela interrupção, enumerar prejuízos a estudantes e comerciantes e denunciar o que chamaram de “grevicultura”
Em 3 de abril de 2018, primeiro dia da greve dos ferroviários na França, a mesma imagem foi exibida por horas na BFM TV (rede francesa de notícias 24 horas): a de uma plataforma lotada, com uma seta vermelha apontando para uma “passageira empurrada na via”. O apresentador interpelou um representante da União Nacional dos Sindicatos Autônomos (Unsa): “Você viu as cenas de confusão que foram mostradas! Desse jeito, isso não poderá durar três meses!”. Vai haver mortes!
Lançada no dia anterior, em uma coluna da revista Point intitulada “Contar as mortes relacionadas a greves, que boa ideia!”, a proposta ganhou a telinha. “Listamos dois feridos e toneladas de desconforto nos trens”, alertou Emmanuelle Ménard, deputada da Frente Nacional (extrema direita) convidada do programa 24h Pujadas, na rede LCI (outra rede francesa de notícias 24 horas). “E isso poderá durar 36 dias nos próximos três meses!”, acrescentou o apresentador David Pujadas, que se voltou para Adrien Quatennens, deputado do partido de esquerda França Insubmissa: “Quando vemos o que aconteceu, as pessoas entrando pelas janelas, os dois feridos, você diz: ‘Estamos prontos para fazer 36 dias dessa greve?’”. Correndo o risco de causar uma hecatombe?
“Essa greve em setores específicos, para os usuários, é uma espécie de tortura chinesa”, assegurou Gilles Le Gendre, deputado pelo partido do presidente Emmanuel Macron, A República em Marcha (LREM – centro). Se pelo menos os ferroviários matassem suas vítimas instantaneamente, mas eles as torturam primeiro… No dia seguinte, o debate nacional lançado pelas redes de informação contínua seguiu se aprofundando. Convidada pela CNews (para falar sobre o tema “Greve e saúde, alguma ligação?”), a médica Brigitte Milhaud revelou que a greve gera “um estresse negativo de todos os pontos de vista, misturado ao medo de perder o trem, ao medo de chegar atrasado.Há esse sentimento de impotência, e isso é muito ruim para a saúde. Isso terá repercussões no sono, levará a uma diminuição na imunidade, a transtornos de humor, até a depressões”. E nem haverá mais trens para que as pessoas possam se jogar na frente deles…
Esse programa reforça a análise1 que a cobertura das greves de 1995 inspirou ao sociólogo Pierre Bourdieu. Na época, ele baseou seus comentários na cobertura dos jornais de três emissoras de rádio, bem como de dois programas de TV de atualidades, La France en direct e La Marche du siècle. Hoje, existem quatro redes de notícias 24 horas gratuitas: BFM TV, CNews, LCI e Franceinfo (a France24, a Euronews, a RT e a i24News são mais confiáveis). O sucesso de C dans l’air, noticiário diário da France 5 intercalado com reportagens, comentários de especialistas, bate-papos com opinião…, levou à sua replicação nas redes de notícias (programa 24h Pujadas), assim como no Canal Plus (programa L’info du vrai). Hoje em dia, existe uma dúzia de programas como o La Marche du siècle!
Assim, a “circulação circular de informação” diagnosticada por Bourdieu intensificou-se. É necessário preencher esse imenso espaço, inventar todos os dias temas, ângulos, polêmicas. Depois da saúde, a violência. “Vamos lhe mostrar os prejuízos que você viu durante a tarde na BFM TV”, diz com arrogância um apresentador após as manifestações do 1º de Maio. Enviados especiais deslocados para muitas estações ferroviárias e universidades ou, ao contrário, concentrados em 200 metros quadrados de cortejo recolhem declarações de passageiros “exasperados”, estudantes “revoltados” (por não poderem fazer suas provas), comerciantes “à beira das lágrimas” diante de sua loja “devastada”. Trechos de seus comentários serão publicados nos jornais a cada meia hora, acompanhados de anúncios alarmantes: “SNCF: TRÁFEGO QUASE NULO NA ESTAÇÃO DE LYON” pela manhã, “SNCF: UMA MULTIDÃO DESORDENADA NO CAMINHO DE VOLTA” à noite; em resumo, “UMA TERÇA-FEIRA NEGRA, COMO PREVISTO”, enquanto nas “UNIVERSIDADES: A REVOLTA CONTINUA”. Resultado: “[comuna de] ARCUEIL BLOQUEADA, EXAMES CANCELADOS”; pior: “CENAS DE VIOLÊNCIA EM PLENA PARIS”. E não mais: “VIOLÊNCIA: VAI DURAR UM POUCO”.
Uma seta vermelha aponta para a vítima dos ferroviários: a janela quebrada de uma concessionária de automóveis, parte da sequência de vídeo que ocupa a maior parte da tela, enquanto, em um canto, debatem doutos comentaristas. Em 1995, eles ainda não eram chamados de “editocratas”; permaneciam confinados às colunas de seus jornais. Hoje, eles se cruzam, brincam uns com os outros, se revezam de bancada em bancada. O grosso das tropas vem de títulos tão subversivos quanto Le Figaro, Le Journal de Dimanche (alinhado com as posições presidenciais e particularmente popular na BFM TV), Valeurs Actuelles, Le Point, L’Opinion, Atlantico. Para representar a “esquerda”: Laurent Joffrin (Libération), Françoise Fressoz (Le Monde) e Matthieu Croissandeau (L’Obs), raramente acompanhados de Patrick Le Hyaric (L’Humanité). Um exército de especialistas os auxilia, como o onipresente Bernard Vivier, presidente de um “Instituto Superior do Trabalho”, por trás do qual o intitulado acadêmico esconde um lobby patronal.
Em 3 de abril, das 17 horas de transmissão da BFM TV, a greve e seus horrores ocuparam 11 horas e 30 minutos, ou seja, 85% do tempo (excluindo-se publicidade e previsão do tempo). Desse fluxo de palavras emergem os novos conceitos destinados a substituir os antigos, atingidos pelo descrédito. Este ano, a “grevicultura” sucedeu à “tomada de reféns”, vítima de uma séria avaria. Em 27 de fevereiro, no dia seguinte ao anúncio da reforma do estatuto do ferroviário, Pujadas apresentou na LCI “a questão do dia: temos o direito de bloquear a França?”. Sobre imagens de trens a vapor, um jornalista evoca “um estatuto que tem mais de um século”, conservado “mesmo que as condições tenham mudado”, enquanto, desde o início do conflito, a ministra dos Transportes não conseguiu apresentar outras justificativas que não ideológicas para sua supressão.2 O publicitário François De Closets, tornado famoso por seu best-seller antissindical Toujours plus (“Sempre mais!”), de… 1982, abusa da indignação pela milésima vez em sua carreira: “Os sindicatos ameaçam nos fazer reféns em condições escandalosas!”. À sua frente, Bruno Poncet, jovem representante sindical da Sud-Rail, não consegue se conter.
“– Não use a palavra ‘sequestrador’.
– Ah, sim, eu uso, eu me sinto refém.
– Fui feito refém.
– Vocês estão se referindo a quê? – pergunta David Pujadas.
– Fui feito refém no Bataclan. Os sequestradores, os terroristas, eu sei o que é isso.”
Sai então a “tomada de reféns” (exceto nos depoimentos dos usuários) e chega a “grevicultura”, muito mais distinta. Depois que um porta-voz do partido A República em Marcha usou esse termo, todas as redes o adotaram – não sem antes terem “investigado”, como exige o profissionalismo. “Pergunta-se sobre a existência ou não de uma cultura da greve, uma grevicultura”, anunciou Pujadas em 2 de abril, inquirindo um jornalista da LCI: “Você colocou as mãos em um documento, um documento que não estamos acostumados a ver…”. Um relatório secreto? “Um documento bastante singular”, confirma a parte interessada. “Esses números foram encontrados no site da SNCF.” Esse troféu jornalístico “lista os dias não trabalhados desde 1947. E nos damos conta de que há uma cultura da greve”. Os números (da direção) não mentem.
“–Há setenta anos, David, não se passa um ano sem uma greve nessa empresa.
–Nem um ano sem greve na SNCF – repete David.” Então, essa grevicultura existe.
A França está sendo atingida e suas polícias sofrem da “síndrome de Sivens”, ou “síndrome de Malik Oussekine”,3 que as impede de intervir quando “profissionais do terrorismo urbano destroem tudo em seu caminho”, a ponto de um perito da BFM TV, “especialista em segurança”, ver “o centro de Paris saqueado” no 1º de Maio, enquanto todos puderam ver a extensão muito limitada dos prejuízos (essencialmente um restaurante do McDonald’s e uma concessionária).
Promessas de pluralismo, os manifestantes convidados nas bancadas se reúnem diante de um tribunal cuja imparcialidade salta aos olhos, como evidenciado pelos títulos escolhidos por Yves Calvi em L’info du vrai, em 2 e 19 de abril: “GREVES: BADERNA ASSEGURADA”; “UNIVERSIDADES, NOTRE-DAME-DES-LANDES: A DESORDEM REPUBLICANA”. Para falar em nome dos “franceses”, as redes têm um batalhão de profissionais da opinião. Pesquisador nomeado da BFM TV, Bernard Sananès afirma: “Até agora, as pessoas estavam se pronunciando sobre o espírito da reforma, a favor ou contra a reforma. Agora, vão se pronunciar mais se: ‘Somos a favor ou contra a greve?’”. Somente se sua empresa de pesquisas decidir isso, já que ela é que faz a pergunta. Então Christophe Barbier, expulso do L’Express, instalou sua tenda de campanha na bancada. “O silêncio do presidente da República desde o início desse conflito é uma força ou uma fraqueza?”, perguntou o apresentador (4 abr.). “É uma força!”, respondeu o comentarista. “Tal qual Napoleão, ele se mantém em reserva como a cavalaria de Murat para se precipitar no campo de batalha no dia em que for necessário.” Será o Waterloo dos ferroviários.
Nesta primavera, a comemoração do Maio de 68 teve ecos estranhos. “Cinco mil estudantes impedem que outros 600 mil trabalhem”, lamentou o então ministro da Educação, Alain Peyrefitte.4 “Finalmente!”, exclamou Pascal Praud, apresentador da CNews, após a evacuação da faculdade de Tolbiac. “Quando um punhado de pessoas impede muitas outras de trabalharem… Os insurgentes de pijama deixaram o anfiteatro Dodo. Ao despertarem os estudantes, os policiais despertaram nossa consciência.”
*Samuel Gontier é jornalista. Autor de Ma vie au poste. Huit ans d’enquête (immobile) sur la télé du quotidien [Minha vida na TV. Oito anos de pesquisa (imóvel) sobre a TV do cotidiano], La Découverte, Paris, 2016.