Grito de alerta no Pantanal brasileiro
Importantíssima para a integração do Mercosul, a navegabilidade dos rios Paraguai e Paraná poderia ser uma obra magnífica. Projetada até agora segundo interesses de grandes empresas, ela ameaça transformar-se numa nova catástrofe ambientalEdouard Bailby
Regado por chuvas torrenciais no inverno, transformado em prados pontilhados de poças d’água e pântanos no verão, o Pantanal Matogrossense, no Brasil, ressoa em mil ruídos. É a maior superfície úmida contínua do planeta. Quando o viajante toma a Transpantaneira, única estrada, de terra, que atravessa verticalmente o norte da região, numa distância de 147 km entre Poconé e Porto Jofre, vê a alguns metros de distância dezenas de jacarés, capivaras — os maiores roedores do mundo —, macacos, uma multidão de pássaros, veados, cobras, onças, animais de todos os tamanhos e de todas as espécies. Para atravessar os rios e lagos onde pululam peixes — entre os quais alguns, como o jaú, pesam até 120 quilos — a estrada passa por 126 pontes de madeira parcialmente arruinadas.
Ao contrário do que haviam pensado os colonizadores portugueses do século XVI, não se trata de um imenso pântano, mas de uma planície aluvial de cuja área 80% estão situados em território brasileiro, o resto se dividindo entre Bolívia e Paraguai. Atravessado pelo rio Paraguai e seus 175 afluentes, o Pantanal é totalmente inundado na época das chuvas, de outubro a abril. Só emergem então estreitas faixas de terra, as cordilheiras, cuja altura não ultrapassa três metros.
Os poucos milhares de habitantes que ali vivem, entre os quais raras comunidades indígenas, não têm outros meios de locomoção a não ser as barcas de fundo chato. No entanto, há séculos o homem soube adaptar-se ao ambiente salvaguardando assim um dos mais extraordinários santuários naturais do planeta.
Fauna fantástica, proteção lastimável
A fauna do Pantanal é de tal diversidade que a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, fundada em 1973) pôde recensear, graças às fotos feitas por satélite, 32 milhões de jacarés, 2,5 milhões de capivaras, 35 mil cervos, 70 mil veados e 9,8 mil hordas de porcos do mato. Por outro lado, foi montada uma lista de 260 tipos de peixe e de 650 espécies de pássaros, alguns em vias de desaparecimento, como a arara azul. Os pesquisadores, afinal, contaram na copa das árvores até 15,8 mil ninhos de tuiuiu, o pássaro emblemático do pantanal, de pescoço vermelho, cabeça preta e com uma envergadura de asas de dois metros.
Para proteger esta fauna excepcional, a caça é estritamente proibida há anos e a pesca só é autorizada, sob certas condições, durante três meses por ano. Infelizmente, por falta de verbas, os guardas do Ibama [1] são cada vez menos numerosos para vigiar os contrabandistas.
O rio Paraguai, que tem sua nascente nos altos platôs do Brasil, uma centena de quilômetros ao norte de Cuiabá, atravessa o Pantanal por 1.278 quilômetros antes de se juntar ao rio Paraná, na Argentina. Juntos, os dois terminam sua corrida no estuário do Prata, entre Buenos Aires e Montevidéu. O Paraguai e o Paraná têm sido importantes vias de comunicação entre os países ribeirinhos, mesmo que hoje só as embarcações de pequena tonelagem, principalmente chatas, consigam chegar a Corumbá, na fonteira entre o Brasil e a Bolívia.
Distâncias menores, integração mais ampla
A modificação do curso do rio Paraguai permitiria baixar para a metade o custo do frete dos produtos agrícolas (soja e milho) e minerais (ferro e manganês) em direção à Europa e Japão. Seria igual para o petróleo e o trigo que a Argentina exporta para seus parceiros do Mercosul. Atualmente, mais de dois terços das trocas comerciais entre os quatro países do Mercosul e o Chile se fazem por estradas. Do seu lado, a Bolívia, que não tem mais acesso direto ao mar desde a guerra do Pacífico (1879-1884), é obrigada a exportar sua produção de ferro e de soja pelos portos de Santos e de Paranaguá. Aí, os trajetos são longos, as estradas em estado apenas razoável e o frete, caro.
Cinco países — Argentina, Bolívia, Brasil, Paraguai e Uruguai — criaram em 1990 o Comitê Intergovernamental da Hidrovia (CIH), para estudar os meios de modificar os rios Paraguai e Paraná numa extensão total de 3.442 quilômetros entre Cáceres, no Brasil e Nueva Palmira, no Uruguai. Trata-se de um projeto ambicioso — o Projeto Hidrovia — que permitiria quadruplicar em alguns anos as trocas comerciais do Mercosul por via fluvial e desenvolver vastas regiões. A amplitude das obras pretendidas se choca, entretanto, com muitas resistências, pois as conseqüências ecológicas ameaçam ser catastróficas para o mais vasto ecossistema úmido do mundo.
Pouco depois de sua criação, o CIH, cuja sede está situada em Buenos Aires, tentou obter um financiamento junto a dois organismos internacionais: o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). A resposta foi clara: nada de ajuda ao Projeto da Hidrovia sem um estudo prévio das obras pretendidas e de seu impacto sobre o ambiente. Para isso, o BID concedeu um empréstimo de 6,2 milhões de dólares e o PNUD, 500 mil dólares aos dois consórcios internacionais de consultoria [2] escolhidos pelo CIH. No início de 1997 eles entregaram aos cinco países um relatório de 20 mil páginas que, depois de tornado público, provocou um clamor geral e deflagrou a mobilização de uma centena de organizações não governamentais do Brasil e dos Estados Unidos. As obras pretendidas afetariam em primeiro lugar o Pantanal.
O que muda com o projeto, e quais as conseqüências
Minimizando as conseqüências sobre o ambiente, os dois consórcios sugeriram uma série de obras no Paraná e no Paraguai: dragagem de 92 passagens críticas, alargamento de cinco curvas no interior do território brasileiro, retirada das bases rochosas em cinco lugares diferentes, traçado de um canal de navegação de 90 metros de largura entre Assunção e Corumbá para permitir a passagem de comboios de uma largura de 280 metros e por fim a sinalização dos dois rios de Nueva Palmira a Cáceres. Só a dragagem custaria no mínimo 95 milhões de dólares e a sinalização 7,3 milhões, aos quais é preciso adicionar 18 milhões de dólares de manutenção anual, que poderiam ser em parte financiados pela cobrança de pedágio.
Se o projeto não apresenta maiores problemas para o Paraná, em território argentino, onde os navios de alto mar já sobem o rio até Santa Fé, para o rio Paraguai é diferente. Num estudo intitulado “Impacto Hidrológico e Ambiental da Hidrovia Paraná-Paraguai no Pantanal do Mato Grosso”, o professor Victor Miguel Ponce, da Universidade de San Diego (Estados Unidos) foi o primeiro a denunciar o problema. Em agosto de 1995, ele mostrou que a dinamitação das bases rochosas do rio Paraguai, que agem como barreiras naturais, faria com que imensas regiões do Pantanal deixassem de ser submetidas às inundações sazonais necessárias à sua sobrevivência.
Um outro pesquisador, o hidrologista norte-americano Stephen Hamilton, da Universidade de Michigan, mostrou, por sua vez, que a diminuição, de dez centímetros que seja, do nível do rio, fará desaparecerem 20 mil km2 de terras permanentemente inundadas, isto é, 9% da superfície do Pantanal brasileiro. No caso dessa diminuição atingir 50 centímetros, é quase a metade de sua superfície que ficaria seca. Os autores do projeto entregue ao CIH admitem, eles mesmos, que o nível do rio poderia eventualmente diminuir 20 centímetros!
No Brasil, o maior dano
Inquietos, onze pesquisadores brasileiros e norte-americanos inclinaram-se sobre o problema. Eles entregaram o resultado de seus estudos ao CIH em julho de 1997, sob o título: “Relatório de uma análise independente”. [3] As conclusões são arrasadoras. Presidente da Fundação Brasileira para o Desenvolvimento Sustentável, que é a autoridade no assunto, Israel Klabin é um dos autores do relatório. “Ninguém é contra a Hidrovia, afirma ele, mas não admitimos que o leito do rio Paraguai seja retificado para permitir a passagem de comboios mais longos e mais largos. As embarcações é que devem ser adaptadas ao rio e não o inverso”.
É de fato sobre o território brasileiro que o Projeto Hidrovia teria conseqüências irreversíveis. A chefe da delegação de seu país junto ao CIH, Maria Luiza Viotti, quer ser tranqüilizadora. “O relatório que nos foi entregue — diz ela — sugere obras que não se justificam atualmente, pois não haverá dificuldades maiores de navegação nos próximos cinco anos. Nós nos contentaremos, portanto, de continuar, como fazemos há vinte anos, as obras de manutenção do rio, para assegurar a livre navegação nas melhores condições de segurança”. Nada mais. Na verdade, desde sua criação, o CIH já teve numerosas reuniões para estabelecer regras comuns: documentação alfandegária, harmonização de regulamentos jurídicos, normas tarifárias, procedimentos administrativos, sinalização de passagens perigosas etc.
Falta resolver outros motivos de controvérsias, como o frete, as colisões de rebocadores e os vazamentos de óleo, a responsabilidade das companhias de seguros e dos governos. “Assim que um enquadramento jurídico for dado a todos esses problemas — precisa Maria Luiza — vamos poder elaborar um plano de ação”.
Os interesses em jogo
Na verdade, a posição brasileira está longe de ser clara. Há interesses demais em jogo. Atualmente, comboios de oito a dezesseis chatas transportam até 25 mil toneladas de mercadorias entre Assunção e Corumbá. A 670 quilômetros a montante, na direção de Cáceres, só comboios de cinco chatas no máximo, carregadas de 4 mil toneladas de frete, podem navegar sem obstáculo, enquanto a largura do rio entre os dois portos varia de 60 a 100 metros. Ainda que a navegação tenha sido reduzida durante três meses por ano e por vezes interrompida durante a estação seca, dois milhões de toneladas de mercadorias (soja, ferro e manganês) foram transportadas em 1997 — ou seja, 19,8% a mais que no ano anterior.
A modificação do curso do rio Paraguai na região de Corumbá não é tão urgente para o Brasil, já que essa cidade de 90 mil habitantes tornou-se entreposto comercial com a Bolívia. Além da estrada e a ferrovia que ligam São Paulo a Santa Cruz de la Sierra, atravessando 200 km do sul do Pantanal — sem causar até agora danos irreparáveis, segundo Israel Klabin — um gasoduto de 3.150 km entre as jazidas do Rio Grande, na Bolívia, e Campinas, no Brasil, fornecerá, nos próximos meses, 30 mil m3 de gás natural por dia. Mas a trinta quilômetros de Corumbá as reservas de ferro e manganês, atualmente em exploração, são estimadas em 400 milhões de toneladas. As obras necessárias para melhorar a navegação não podem então deixar indiferentes importantes setores da economia brasileira.
Num raio de 200 quilômetros em torno de Cáceres, as plantações de soja e de milho tendem a se desenvolver. Com a diminuiçào do custo do frete pela hidrovia, estes dois produtos agrícolas poderiam tornar-se competitivos no mercado mundial, mesmo que o Brasil, preocupado com seu poderio, se reserve outras alternativas aos projetos de desenvolviemnto do Alto-Paraguai tal como são definidos no plano governamental Brasil em Ação. [4]
A Constituição ? Ora, a Constituição…
A tentação também é grande de abrir o Pantanal aos turistas para retirar o máximo de lucros. Eles já foram quinze mil em 1998, hospedados nas trinta e cinco pousadas instaladas à margem dos rios. Só lhes são totalmente proibidas algumas resevas que cobrem no máximo 1% do território. Já 145 quilômetros ao sul de Cuiabá, um complexo hoteleiro de 2 mil hectares, “ecologicamente correto”, segundo seus promotores, deveria ser inaugurado no fim de 1999. Muitos se inquietam: traçados de estradas asfaltadas sobre diques artificiais, acumulação de dejetos domésticos, poluição… No entanto, o governo deu sua permissão estimando que não havia perigo.
Capital do estado de Mato Grosso, Cuiabá, às portas do Pantanal, é povoada por 463 mil habitantes. A cidade carece de usinas de tratmento de dejetos domésticos, os entrepostos frigoríficos e as fábricas poluem o Cuiabá, afluente do rio Paraguai. Enfim, com o crescimento urbano, as agressões ao ambiente se multiplicam. O que farão os setores público e privado para limitar as conseqüências disso? Na Constituição de 1988 está escrito que o Pantanal pertence ao patrimônio natural do Brasil e que sua exploração se fará legalmente “em condições que assegurem a preservação dos ambientes naturais”. [5] O Pr